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    Ilustração: Carvall

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As seis lições de outubro

Como canta o Clube da Esquina, é hora de fazer o que queremos viver

Marcelo Paixão | 11 out 2022_12h25
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O tão esperado 2 de outubro passou. Para além das zangas e desarmonias, ao menos naquele dia pudemos assistir a um raro consenso que unificou todos os brasileiros e brasileiras para além das distintas posições ideológicas: uma compartilhada curiosidade sobre qual seria afinal o resultado daquele pleito. Nas próximas semanas, a eleição presidencial irá dominar corações e mentes e será a cereja do bolo. Será que Lula, depois de quase vencer no primeiro turno com 48,4% dos votos, conseguirá confirmar sua liderança? Ou será que Bolsonaro, partindo de 43,2%, logrará virar o jogo? Façam suas apostas!

Para além dos resultados do pleito no primeiro turno, podemos tirar importantes lições sobre como anda o nosso humor – ou a ausência dele – coletivo. Outubro é o mês em que se comemora o dia dos nossos heroicos professores. Nada mal que seja também o mês onde possamos refletir sobre o produto de nossa ação coletiva em termos socioeconômico, cultural e político. Ele vem sendo um mês generoso em lições. Sejamos seu reverente estudante, pois.

 

Lição 1: As pesquisas não mostraram tudo

 

Começando pelas pesquisas de intenção de voto para os cargos eletivos estaduais e para o Senado Federal, paira uma sensação geral de que elas mais erraram do que acertaram. O atual mandatário e os candidatos apoiados por ele tiveram uma performance melhor do que as indicadas pelos “surveys” divulgados até um dia antes das eleições. No caso do pleito presidencial, Bolsonaro teve uma votação de cerca de seis pontos percentuais para mais do que a indicada até então pelas principais pesquisas. No que diz respeito aos demais pleiteantes, o resultado das urnas não ficou distante do que vinha sendo divulgado, considerando-se as margens de erro: Lula 48,4%, Simone, 4,2%, Ciro, 3%.

Números são números, mas como o objetivo deste artigo é recolher lições, vamos ver o que estas informações podem sugerir. Primeiramente, desde o pleito de 2018, parece um fato que as estimativas dos órgãos de pesquisa de preferência eleitoral vêm tendo dificuldade de captar as intenções de voto na extrema direita. Vim lendo que alguns cientistas políticos e estatísticos indicam que o atraso no Censo Demográfico também vem afetando os desenhos amostrais e assim involuntariamente enviesando os resultados das pesquisas. Mais recentemente a explicação evoluiu para que o eleitorado deixou para decidir seu voto no dia da eleição. Certamente esses fatores têm alguma influência. Mas tenho motivos para ceticismo quanto ao peso dessas explicações. Por que, com a exceção dos candidatos radicais de direita, o resultado das urnas e dos surveys se espelhou tão bem para o conjunto dos candidatos à presidente, governadores e senadores?

Sem ter como fundamentar essa hipótese em indicadores empíricos mais bem fundamentados, esta primeira lição pode emergir de um princípio lógico. Não é novidade que o eleitor de extrema direita vem expressando sua inconformidade contra a mídia tradicional, aqui incluindo as empresas que realizam pesquisas de intenção eleitoral. Houve registros de entrevistadores sendo agredidos verbal ou mesmo fisicamente durante seu trabalho de coleta de informação nas semanas que precederam o pleito. Não parece tão absurdo que, por desconfiança ou motivo correlato, uma determinada parcela desse eleitorado, diante de uma pesquisa daquela natureza, não esteja mais disposto a cooperar, assim exercendo seu direito de não reportar sua preferência para os entrevistadores, e assim enviesando os dados. 

E daqui emerge a segunda lição.

 

Lição 2: O duplipensar

 

Números, coitadinhos, são representados por frios algarismos. Tanto podem evidenciar como ocultar. O que está em jogo é uma disputa por sua leitura. Até aí tudo bem, cada qual pode interpretar os resultados eleitorais como quiser. O problema é que, daquele desencontro, parece inevitável que as mesmas urnas eletrônicas que consagraram alguns dos mais lídimos representantes da extrema direita no dia 2 de outubro voltarão a ser questionadas pelos seguidores do atual mandatário. É a lógica orwelliana – do lugubremente famoso livro de George Orwell, 1984 – do duplipensar: “guerra é paz, ódio é amor, escravidão é liberdade.” Seguindo a linha, portanto, “derrota é vitória”. Assim, como o atual presidente já teria ganhado o segundo turno três semanas antes do pleito, ou as urnas confirmam o resultado já supostamente sabido de antemão ou elas estão fraudadas. Ou seja, dessa “guerra” de narrativas reemerge um tipo de compreensão de que o segundo turno só pode ter um resultado independemente de qualquer aritmética. Um verdadeiro abraço de tamanduá na democracia, portanto. Mas que nos convoca à terceira lição, esta mais estrutural que conjuntural.

Já tive a oportunidade de comentar aqui nesta coluna que desde 2013 o Brasil – com alguma ironia pegando carona da luta contra a carestia no transporte público – testemunhou o começo da mobilização dos setores conservadores e retrógrados de sua sociedade costumeiramente alheios ao andamento do processo político. Todavia, o “bloco histórico” do boi (latifúndio e agribusiness), da bala (conservadores em geral, policiais e milicianos) e da Bíblia (fundamentalistas religiosos cristãos católicos e evangélicos) já vinha de muito antes. Com razoável margem pode-se dizer que ele veio acompanhando o processo de redemocratização do país. Outrora dispersos nos centrões da vida, esses segmentos ao seu modo souberam fazer a sua guerra de posição nos seus segmentos específicos de atuação avançando em meio às veredas das contradições do sistema político brasileiro e da longa estagnação econômica que tomou conta do país desde o começo dos anos 1980.

Sem intenção de esgotar um conjunto de fatores certamente mais complexos, aqui podemos enumerar três. Em primeiro lugar, os descaminhos da qualidade do espaço urbano mortalmente ferida pela perda da densidade do mercado de trabalho formal, acompanhando o colapso do modelo desenvolvimentista. Daí se aprofundaram antigas tendências, como o crescimento desordenado das cidades, a favelização e periferização e a ação dos grupos de extermínio. E se manifestaram outras, como a fragilização de laços familiares e comunitários nos bairros mais pobres e favelas, o enfraquecimento dos movimentos sociais de base territorial (acompanhando o paralelo processo de enfraquecimento planejado da Teologia da Libertação pela cúpula da Igreja Católica), o crescimento do tráfico de drogas e a institucionalização miliciana dos esquadrões da morte. É nesse contexto que veio se dando a progressiva influência das lideranças religiosas conservadoras junto aos amplos segmentos metropolitanos relegados à informalidade e carência de solidariedade social em diferentes planos. Em segundo lugar, as contradições da nova dinâmica do desenvolvimento regional e a perversa associação entre o declínio industrial, a reprimarização da economia brasileira e o avanço de brasileiros do Sul-Sudeste sobre os recursos naturais das regiões Centro-Oeste e Norte baseados na lógica da terra e da água abundantes e baratas e da correlata depredação ambiental e conflitos com comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas. Em terceiro lugar, a partir da década de 2000, se somaram os deslocamentos econômicos e simbólicos causados pelas políticas redistributivas (crescimento do salário mínimo e Bolsa Família) e as ações afirmativas consolidando junto a setores de classes médias mais tradicionais a saudade “dos velhos tempos”.

Finalmente, os escândalos de corrupção ocorridos desde 2003 (Mensalão e Petrolão) ajudaram a inflamar o discurso reacionário e retrógrado com um poderoso combustível de natureza moral, malgrado toda a hipocrisia. Os seguidos episódios de corrupção no atual governo, envolvendo as “rachadinhas”, o superfaturamento das compras de vacinas contra Covid, a aquisição de dezenas de imóveis pela família do atual mandatário com dinheiro vivo, o gabinete paralelo “de ouro” no Ministério da Educação, o controle do orçamento público pelos neo-Anões do Orçamento ligados ao Centrão, parecem não afetar um tal moralismo de ocasião tão afiados para condenar o erro alheio quanto para esquecer os cometidos pelos próprios aliados. Aqui voltamos ao domínio do duplipensar: “corrupção é honestidade.” Fatos, ora os fatos. Como o atual mandatário disse que no seu governo não há corrupção então fica-se automaticamente entendido que corrupção não pode haver. Aqui, todavia, sejamos sinceros. Não foram os apoiadores do atual mandatário que iniciaram essa prática de acusar impenitentemente o oponente de corrupção e esquecer as próprias falhas. Apenas eles a seguiram e aperfeiçoaram com admirável obstinação e talento.

Seja como for, diante de tantos impasses socioeconômicos e estruturais, vem sendo a extrema direita que vem navegando com mais agilidade conseguindo, com notável destreza, agregar no entorno de sua narrativa um novo realinhamento de forças. Os pífios resultados eleitorais do MDB, do PSDB, dos partidos de centro-esquerda (PDT e PSB) e das agremiações do Centrão não diretamente relacionadas ao atual mandatário são provas peremptórias. Esse movimento igualmente se nutre de um contexto internacional favorável ao ódio e à intolerância. Se na antiguidade europeia todos os caminhos levavam a Roma, infelizmente, arregimentado pelo “general mídias sociais” hoje em dia parece que todas as estradas nos levam a alguma – gosma fedorenta e grudenta – variante do fascismo (a recente vitória eleitoral de Giorgia Meloni na Itália sugere que a analogia a Roma seja mais que mera coincidência). Por influências externas e, principalmente internas, no Brasil essa corrente ganhou corpo e discurso. Sua base social vem se mostrando forte e arrogante e os resultados eleitorais deste último outubro só a tornaram mais autoconfiante. 

 

Lição 3: Bolsonaro não é Figueiredo

 

Chegamos, portanto, à terceira lição.

 

 

O fato de Bolsonaro ter chegado ao segundo turno com condições de vitória confirma a consistência de sua base política e eleitoral. Ignorar este fato é deixar de lado o que é o mais grave neste momento. Dentre aqueles minimamente interessados na vida política do país – para fins do corrente debate, os alienados que não foram votar ou votaram em branco ou nulo não nos importam –, 43,2% preferem as delícias de um regime autoritário, independentemente das lambanças e estragos que o atual mandatário foi capaz de produzir ao longo dos últimos quatro anos. Na minha última coluna para a piauí, fui enfático na necessidade do voto do Lulajá no primeiro turno. Se escrevi um artigo tão veemente isso foi causado não pela atual fraqueza da extrema direita no Brasil. Mas por sua força. Não confundamos o movimento político encabeçado pelo atual mandatário, que definitivamente tem ampla base popular, com o velho general Figueiredo tentando juntar os cacos de um regime político já senil e desmoralizado.

A terceira lição, de que o arranjo de forças articulado no entorno do atual candidato à reeleição é competitivo, neste exato segundo soa como um truísmo. Mas esse dado não o era ainda às vésperas do primeiro turno. O desânimo que tomou conta de parte da oposição depois da divulgação dos resultados eleitorais de 2 de outubro de 2022 comprova que a maioria da militância contrária ao atual governo não passou de ano nesse quesito, imaginando que a extrema direita brasileira iria sair totalmente derrotada do pleito. Sua vitória não foi acachapante, mas supor o contrário também não soa verdadeiro. Essa lição e suas causas mais profundas, infelizmente, terão de ser revistas muitas mais vezes se quisermos reverter essa triste realidade que tomou conta do Brasil.

 

Lição 4: Um país muitas vezes dividido

 

Olhando o resultado eleitoral de 2 de outubro através do mapa do Brasil, vemos que ele espelha parte dos comentários elaborados acima sobre o desequilibrado ritmo do crescimento socioeconômico das diferentes regiões brasileiras. Mas ele traz um componente complementar que terá de ser tratado nas próximas semanas com a máxima atenção. O povo brasileiro não está somente dividido. Há nesse celeuma um forte componente geográfico, de classe social, racial, de gênero e religioso. Algumas dessas características, como a regional e em alguma medida de classe social, provêm da localização das sessões eleitorais não demandando estatísticas. As demais emergem dos institutos de pesquisa de intenção de voto que, mesmo com todas as dificuldades, ainda servem para nos dar uma ideia sobre como o voto no primeiro turno se distribuiu entre as diferentes camadas. Lula teve um voto predominantemente nordestino, afro-brasileiro, feminino, católico ou espírita ou candomblé e dos segmentos sociais das classes C/D. Bolsonaro conseguiu votações mais expressivas no Centro-Sudeste-Sul, branco, masculino, evangélico e nas classes médias e altas. Alguma novidade nisso? Talvez não, desde 2006 o voto veio assumindo mais ou menos esse perfil. Por que, então, outubro de 2022 trouxe alguma lição, a quarta, específica a esse respeito? De novo, a explicação demandará algumas linhas a mais e uma certa paciência dos que me leem.

A ciência política brasileira nasce no contexto da independência (a começar por José Bonifácio) e se aprofunda no Império e período republicano. Como o bicentenário Brasil se consolida como unidade nacional no mesmo momento em que o conjunto de modernos Estados-nações na Europa e nas três Américas o faziam, o eixo de toda problemática era a questão da identidade nacional, e isso remete ao processo de formação do povo. Para a finalidade desse debate, a segunda metade do século XIX se caracteriza pela emergência do racismo científico e do darwinismo social que dizia que a qualidade dos povos era função de sua ancestralidade, que por sua vez era determinada pela sua raça. Esse termo remetia à aparência física predominante das coletividades e conjunto de práticas institucionais, sociais, culturais e religiosas – reais ou inventadas pelo agente imperialista – correspondentes. Assim, Estado-nação era função do povo que, por sua vez, era função de sua raça. Como é conhecido, o Brasil era e é um país marcado pela forte presença dos descendentes dos africanos e indígenas escravizados, e isso transmitiria ao povo brasileiro características que seriam contrárias às existência de um país com instituições políticas democráticas. Por qual motivo?

Teoricamente democracia é um regime político marcado pela liberdade dos cidadãos em termos ideológicos, religiosos e morais. Assim, eles são intitulados para escolherem seus representantes e governantes, que elaborarão as leis racionais e impessoais que ordenarão o funcionamento da sociedade e a aplicação da justiça. Mas para que esse princípio prevaleça é preciso que cada indivíduo seja ele também governado pelo imperativo racional e moral dos limites da própria liberdade individual. Pois se cada um for regido pelos próprios instintos e desejos não haverá princípios ordenadores comuns como a solidariedade, a empatia e o autocontrole. E o resultado natural disso é o caos na sociedade, que terminará afundando na anarquia e não em um regime civil. E aqui podemos juntar as pontas. Na branca Europa e nos Estados Unidos, esse princípio seria válido por uma questão histórica e genética. Já os países de predominante matriz demográfica não europeia seriam incapazes de sustentar um regime de instituições democráticas, pois lhe faltariam os ativos socioculturais e biológicos necessários à sua realização. Nesse cenário se faria necessário um regime autoritário para o controle da gentalha e a garantia do ordenamento social. A fábula fala do Brasil.

Essa interpretação foi forjada na transição da monarquia para o regime republicano brasileiro e aprofundada por intelectuais do Estado Novo como Oliveira Viana, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia. Aos que quiserem se aprofundar no assunto, leiam as fundamentais contribuições de, entre outros, Ana Flávia Magalhães, Ângela de Castro Gomes, Antônio S. Guimarães, Élide Rugai Bastos, Flavio Gomes, Jessica Lynn Graham, Lúcia Lippi Oliveira, Jerry Dávila, Maria José Campos, Petrônio Domingues, Olívia Cunha, Raimundo Faoro, Thomas Skidmore ou Ynaê Lopes dos Santos. Mas talvez não precisemos ler texto por texto para tentarmos entender as consequências do pensamento político autoritário brasileiro. As usuais preferências autoritárias das elites branco-mestiças brasileiras, que se manifestaram ao longo de toda República do Café com Leite (a história de Nilo Peçanha antes reafirma que nega o que está sendo dito aqui agora), do já mencionado Estado Novo e da ditadura militar 1964-1985 se autojustificavam dentro da lógica de que o povo brasileiro, devido às suas peculiaridades, não estava preparado para o exercício das franquias democráticas. Ela expressava uma imagem que implícita ou explicitamente tinha nos determinantes raciais (ou aspectos correlatos como a xenofobia regional) o seu pano de fundo. Isso malgrado o discurso da democracia racial que, a depender da interpretação (tal como a que adoto), pode ser vista como um elemento central na constituição dessa longa memória autoritária.

Sabemos que, ao longo da história brasileira, frequentemente emergiram reticências quanto ao voto dos de baixo ou dos nortistas e nordestinos. A própria esquerda brasileira não raramente se deixou envolver por essa narrativa elitista ao longo da história. Somente após 1988 os analfabetos tiveram seu direito de voto reconhecido, e as usuais desproporcionalidades regionais, de classe social e racial, do analfabetismo no Brasil não permitem uma atitude inocente perante essa questão. Mas nesse contexto eleitoral, considerando o modus operandi da extrema direita, aqui emerge um conteúdo mais apimentado. Primeiro, de que por conta do conjunto de seus atributos, os que estão inclinados a votar na oposição no segundo turno não são verdadeiramente preparados para fazê-lo. Segundo, de que eles devem ser demovidos a todo custo dessa intenção, inclusive com pagamentos extemporâneos e ilegais de benefícios sociais às vésperas das eleições ou pela criação de óbices ao seu deslocamento até as sessões eleitorais. Terceiro, de que se expressarem seus votos tal como fizeram no primeiro turno, esse ato deve ser considerado inválido, ilegítimo ou fraudado, pois como supostamente sabido eles não estão preparados para votar. Desta quarta lição, concluímos que seria bom que os que pensam de forma contrária começassem a afiar seus argumentos, pois não preciso da bola de cristal para dizer que será exatamente isso o que irá acontecer no caso de uma previsível – e desejável – derrota eleitoral do candidato à reeleição.

 

Lição 5: O copo está meio cheio

 

Já caminhando para a quinta lição de 2 de outubro de 2022, podemos, enfim, retomar algo que foi apenas enunciado quando da explicação do primeiro ensinamento. Trata-se, afinal de contas, de revisitar a conclusão de que o primeiro turno teria tido no atual candidato à reeleição o grande vencedor. Mais uma vez insisto, não parece razoável negar a força eleitoral da extrema direita neste momento, fato este explicitado pelas eloquentes vitórias de nomes expressivos do bolsonarismo para os governos dos estados, Senado e Câmaras de Deputados. Entretanto, se em tempos de duplipensar os números não falam por si só, ninguém é obrigado a abandonar os mais elementares princípios da lógica formal de que, no que tange às eleições presidenciais, o atual mandatário perdeu, não venceu, o pleito. 

O copo com água pela metade está meio cheio ou meio vazio? A pergunta pode soar já batida. Mas ela segue nos ajudando a produzir interpretações mais ponderadas sobre um tempo tão confuso e complicado como o que vivemos atualmente. Se havia alguma dúvida sobre como o povo brasileiro avaliava o atual (des)governo elas agora estão dissipadas. 

Aqui não se trata de pesquisas de intenção eleitoral. O resultado das urnas em 2 de outubro nos diz que 56% do eleitorado brasileiro que manifestou sua opção política através do voto em algum candidato da oposição (não computo entre estes os percentuais do Padre Kelmon e do Felipe D’Ávila) prefere que o atual mandatário volte para uma das dezenas de imóveis que foram comprados por seus familiares com dinheiro vivo(!). Uma maioria qualificada, portanto, manifestou seu desejo de viver em regime democrático de direito e não em uma ditadura fascistoide de direita. Sim, ao menos lido pelo resultado das urnas no primeiro turno o copo está meio cheio. E tomara que assim o fique até o dia 30 de outubro. Esta é a nossa quinta lição. Talvez a mais importante, mormente considerando as próximas três semanas que nos esperam.

 

Lição 6: Simone Tebet

 

Acredito ainda haver uma sexta lição derivada deste pleito: Simone Tebet. Me sinto muito à vontade para falar isso. Sou de esquerda, ela é de centro. Ademais, estou muito distante de compartilhar suas simpatias com o agribusiness brasileiro. Mas em meio a tantas dificuldades, o Brasil vê na senadora do Mato Grosso do Sul a consolidação de um nome do mesmo porte dos saudosos Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Marcos Freire ou Teotônio Vilela, isso além de Bertha Lutz e Nísia Floresta, pioneiras na campanha pelo direito de voto das mulheres. O crescimento da extrema direita nos leva a entender a importância de termos um centro político forte no país (não me entendam mal, por favor, centro ideológico, não aquela mistura autodenominada Centrão). Aqueles nomes, junto com os de Brizola, Darcy Ribeiro, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez – estes mais à esquerda –, fazem muita falta atualmente. Seu nome já começou a emergir na CPI da Covid, mas nestas eleições Simone Tebet ajudou a preencher aquela lacuna emergindo do primeiro turno como uma liderança nacional. Seja bem-vinda. As divergências fazem parte da vida. Isso se resolve, democraticamente, no caminho.

 

Para terminar

 

Ao longo deste artigo vim reportando seis fundamentais lições que consegui aprender do pleito de 2 de outubro. Os que me leem concordam comigo? Ou o autor destas linhas não foi aplicado o suficiente deixando outras tantas pelo caminho? De qualquer sorte, se o primeiro turno foi tão generoso em aprendizagem, o segundo turno – o segundo tempo – apenas começou. Outubro ainda aguarda novas lições agora escondidas atrás das cortinas do futuro. E já que é assim, reconheçamos que não estamos mais em tempos de teorias. É hora de voltarmos para o campo de jogo e sermos nós, mais uma vez, os operários de nosso próprio futuro.

Motivos para esperança? Sempre. Não é esta a verdadeira profissão de brasileiras e brasileiros? Afinal não somos nós, os 215 milhões de Josés e Marias, os que carregam destino afora a insana “mania de ter fé na vida”? Porém, que isso não nos embace o juízo e o discernimento. Sigamos cantarolando o nosso eterno Milton Nascimento e seus companheiros do Clube da Esquina. “Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver.” Por ora basta de lições. Que seja em nome das utopias, do desespero ou do mais absoluto senso de premência e dever. Nas próximas semanas o nosso compromisso deve ser tão somente o de lutar.

 

*

P.S.: no último artigo que escrevi aqui na piauí eu indiquei expressamente o voto nas mulheres negras de esquerda. Mas não fiz referências às mulheres indígenas, não menos vítimas da violência, do machismo e do racismo. Creio que marquei bobeira e peço desculpas às candidatas indígenas de esquerda que se lançaram no pleito. Saúdo Sônia Guajajara (Psol-SP) e Célia Xakriabá (Psol-MG) e Juliana Cardoso (PT-SP), deputadas indígenas que foram eleitas. Meus melhores votos para que elas, junto às nove parlamentares negras eleitas pelo PT, Psol, PCdoB e Rede, façam valer os direitos do povo brasileiro no parlamento. Sem jamais lhe faltar o respeito, não menciono a parlamentar indígena eleita no estado do Amapá por ela não fazer parte do campo ideológico pelo qual nutro simpatia.