Loide Ostrufka e sua companheira Sueli Silvia Adriano consolam uma a outra em meio as cinzas. Crédito: Sismuc/Altivista/Quem TV
Esperança além das cinzas
Casa de sindicalistas é incendiada enquanto elas estavam na posse de Lula, mas episódio ocasionou rede de solidariedade
O ônibus em que a professora e sindicalista Loide Ostrufka, de 51 anos, voltava de Brasília a Curitiba, às 7h20 de terça-feira (3), quando o celular dela tocou. Ela tinha acordado havia pouco e rememorava cenas de um fim de semana que classificou como inesquecível e histórico. A docente tinha viajado em caravana com “companheiros de luta” para assistir à posse do presidente Lula (PT). A ligação telefônica, no entanto, afastou de imediato as boas recordações, com uma notícia dura: do outro lado da linha, um vizinho informava que a casa em que Ostrufka morava tinha sido incendiada, e os bombeiros terminavam de debelar o fogo. A sindicalista caiu em um pranto desesperado.
Sentada em uma poltrona duas fileiras atrás, a também professora e sindicalista Juliana Mildemberg, de 33 anos – que divide a casa com Ostrufka – ouviu o choro da amiga. Só quando a colega se refez do baque é que Mildemberg entendeu o que tinha acontecido e entrou em estado de choque. Minutos depois, o vizinho fez uma nova ligação, dessa vez de vídeo, mostrando a cena que desolou as professoras: o interior do cômodo enquadrado na tela tinha se reduzido a cinzas. Além disso, ele informou que o carro da sindicalista Sueli Silvia Adriano, de 57 anos e companheira de Ostrufka – um HB20 – tinha desaparecido.
“A gente estava a seis horas de Curitiba. Foram as seis horas mais longas da minha vida. A gente ficava longos períodos sem sinal de telefone ou de internet, sem conseguir falar com ninguém, sem ter o que fazer. Pelas imagens de fora da casa, dava para ver tudo queimado, os vidros estourados. Os bombeiros chegaram em oito minutos, mas o vizinho disse que não tinha dado para salvar nada. Foi desesperador”, contou Ostrufka.
Assim que chegaram a Curitiba, pouco depois das 13h30, Ostrufka, Adriano e Mildemberg foram direto à casa, localizada no bairro Abranches. Trata-se da sobreloja de um imóvel comercial, adaptada para fins residenciais. Lá, elas encontraram cerca de 25 pessoas esperando, entre familiares, amigos e colegas. Já havia, então, indícios de que o incêndio tinha motivação criminosa. Extraoficialmente, peritos do Instituto de Criminalística (IC) informaram que encontraram sinais de que a casa tinha sido arrombada. O fogo teve como epicentro uma pilha feita sobre a cama de Mildemberg, com livros, fotos, documentos e bandeiras de movimentos políticos, sindicais e sociais – como a que representa o grupo LGBTQIA+. Além disso, cartões de crédito e documentos que estavam no carro de Adriano tinham sido deixados ao lado do local onde ela o tinha estacionado.
“Nós tínhamos umas dez bandeiras: do nosso sindicato, da pasta de raça, a bandeira LGBTQIA+, do PT… Só sobrou, entre as cinzas, um pedaço da bandeira da CUT (Central Única dos Trabalhadores), que tinha o tecido bem fininho. Também queimaram todos os meus livros, inclusive o Olga, que li na adolescência e que me fez entender que há um mundo além de mim”, contou Mildemberg. Além de ter ficado apenas com a roupa do corpo, a professora também sofreu uma perda inestimável: o fogo consumiu toda sua pesquisa de mestrado em políticas educacionais, incluindo fichamentos, anotações e rascunhos. “Eu tinha prazos para cumprir já em janeiro. Artigos para entregar, capítulos para escrever. Meus professores me ligaram e estão dispostos a me ajudar. Estou me organizando para ver qual é a melhor saída”, disse.
Como os quartos de Mildemberg e Ostrufka eram separados por divisórias de drywall – uma placa de gesso cartonado e inflamável –, o fogo tinha se alastrado rapidamente. Ainda assim, os bombeiros conseguiram impedir que o incêndio atingisse a cozinha. O calor, no entanto, derreteu eletrodomésticos, como a geladeira e o fogão. Entre as cinzas, as moradoras conseguiram resgatar os destroços de uma árvore de natal, que havia sido decorada com fotos. O que chamou a atenção é que apenas as fotografias em que Ostrufka aparecia com sua companheira, Sueli Adriano, tinham desaparecido. As vítimas dizem que não tinham inimigos e não têm ideia de quem pode ter cometido o ataque.
“Era um cenário de destruição e ódio que a gente nunca imaginou passar. É uma sensação de desespero, de pensar que alguém entrou em sua casa e pôs fim a sua história. A gente se sentiu violentada. E tudo isso nos causou muita estranheza. Nunca colocamos nada que indicasse que somos sindicalistas, que somos lulistas”, disse Ostrufka. “Tinha muitas fotos, todas chamuscadas. Mas nenhuma minha com a minha companheira. A gente não sabe se queimaram ou se levaram embora, mas isso indica que o crime tem um viés de homofobia. Tem também esse lado político. A sensação que dá é de que o autor quis dar um recado: ‘Nós perdemos as eleições, mas continuamos aqui’. Essa é a sensação que eu tenho”, apontou.
Assim que foi informado do incêndio, o delegado Geraldo Celezinski, do 4º Distrito Policial (DP), enviou uma equipe ao local e no mesmo dia ouviu as vítimas. O responsável pelas investigações ainda aguarda a conclusão do laudo do Instituto de Criminalística, mas conversou informalmente com peritos. Ele não tem dúvidas de que o incêndio teve motivação criminosa.
“Ninguém arromba uma casa, faz uma pilha com livros e objetos pessoais dos moradores e taca fogo sem querer, de forma culposa. Tinha sinais de arrombamento. Está claro que foi um crime”, disse Celezinski. “Esse crime pode decorrer de homofobia, pode ser por motivação política. Mas para sabermos isso precisamos chegar à autoria”, acrescentou.
Criada pela mãe e pela avó, que trabalhavam como domésticas, Juliana Mildemberg nasceu em Curitiba. No curso de magistério, aproximou-se do grêmio estudantil e começou a participar de discussões relacionadas à educação. Aprovada em concurso da prefeitura de Curitiba para lecionar na Educação Infantil, ela foi às ruas nas manifestações de 2013, que tiveram como estopim o preço das passagens de ônibus, mas que logo se amplificaram para outras pautas. “Ali, eu decidi participar do sindicato e não saí mais de lá”, disse.
Loide Ostrufka, por sua vez, nasceu em Foz do Iguaçu, mas mora em Curitiba desde os 11 anos. Filha de uma inspetora de alunos e de um pastor evangélico, ela começou a militar em 2014, depois de ter também passado no concurso em Curitiba. Ostrufka e Mildemberg se conheceram em um cursinho voluntário e foram colegas do curso de Pedagogia, na Universidade Federal do Paraná. Desde então, se tornaram bastante próximas, até que Ostrufka chamou a amiga para dividir a casa. Em 2021, elas montaram uma chapa e venceram as eleições para dirigir o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba (Sismuc).
“Toda a história do sindicato estava documentada. Conquistas como um plano de carreira para educação infantil, a conquista do piso da enfermagem e aberturas de mesas de negociação que estavam fechadas havia anos. Todos esses documentos se perderam no fogo”, lamentou Mildemberg.
Em sua militância, Mildemberg e Ostrufka acompanharam de perto alguns dos momentos políticos de maior impacto da história recente do PT. Em abril de 2018, quando Lula foi preso, elas estavam entre os apoiadores que permaneciam em frente ao prédio da Polícia Federal (PF), em Curitiba. Nos meses que seguiram, estiveram inúmeras vezes na “Vigília Lula Livre”, que se instalou ali. Em 2019, elas viajaram a Porto Alegre, para se manifestar em frente ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), durante julgamento de recursos que poderiam implicar na soltura do petista. E foram também à posse de Lula na presidência. Em Brasília, logo no início da manhã de 1º de janeiro, conseguiram posição privilegiada na Praça dos Três Poderes, bem em frente à rampa do Palácio do Planalto.
A polícia analisou imagens de câmeras de segurança de um ponto comercial localizado quase em frente à casa das sindicalistas. O sistema, no entanto, só armazenava gravações de um período de até 24 horas. Assim, os investigadores tiveram acesso a imagens captadas a partir da zero hora de 3 de janeiro – dia do incêndio. As gravações não mostram o HB20 sendo conduzido para fora do imóvel, o que leva o delegado a crer em um crime cometido em dois atos. “Fica sugerido que o carro foi levado antes do dia 3. Depois disso, já na manhã do dia 3, a pessoa deve ter voltado e provocado o incêndio. Os bombeiros foram acionados às 6h23”, explicou Celezinski. O prazo para a conclusão do inquérito é de 30 dias, prorrogáveis. Informações podem ser repassadas ao 4º DP pelo telefone (41) 3251-2500.
Por enquanto, Mildemberg está hospedada na casa da mãe, em São Francisco do Sul, Santa Catarina. Ostrufka permanece na casa da companheira, em Florianópolis, capital catarinense. Logo após o incêndio, colegas sindicalistas criaram uma vaquinha virtual para ajudar as professoras a se restabelecerem. Até esta terça (10 de janeiro), mais de 87,5 mil reais já haviam sido arrecadados, superando a meta de 75 mil reais. Elas também receberam inúmeras manifestações de solidariedade, pessoalmente ou por ligações e mensagens. “A gente se sente acolhida com tanta solidariedade que temos recebido. Tem gente que nem nos conhecia ajudando, oferecendo a casa para a gente ficar. Nossa gratidão será infinita. Nada que a gente fale vai expressar o tamanho da nossa gratidão”, disse Ostrufka. E, apesar do medo, dizem que não vão se esconder nem se amedrontar. “Se quem fez esse ataque contra nós tinha o intuito de nos amedrontar, não vai adiantar. Somos muito maiores. A luta por igualdade é a nossa essência.”
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