Em segundo plano: o SUS cresceu em ambiente pouco acolhedor. A sociedade brasileira nunca abraçou o sistema – ao contrário do que ocorreu com o NHS, que tem o apoio maciço dos ingleses CRÉDITO: VÂNIA MIGNONE_2024
O complexo: parte II_o dinheiro, sempre
A segunda reportagem da série aborda as agruras, os rigores e as ganâncias para bancar o maior sistema de saúde do mundo
Fabiane Leite | Edição 218, Novembro 2024
Em uma tarde de Brasília no início de maio, a equipe do Consultório na Rua se preparava para iniciar o atendimento de pessoas que vivem nas ruas da Asa Norte. Faltava, porém, um veículo que levasse o médico, a enfermeira e uma médica residente até os locais. Sem maiores explicações, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal havia retirado uma velha ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). O médico de família Rodrigo Lima decidiu então recorrer ao próprio carro, um Hyundai HB20, ano 2019.
A primeira parada de Lima e sua equipe foi debaixo da Ponte do Bragueto, que passa sobre o Lago Paranoá. É um local cercado de mato e lixo onde se concentram usuários de crack e catadores de material reciclável, todos vivendo em casebres de madeirite. O médico foi recebido como um velho conhecido. Quem já era seu paciente, chamava-o de Rodrigo, sem o “doutor”. Ao lado dele, a residente de medicina de família Juliany Lourenço observava tudo com atenção. Era seu primeiro dia de estágio na Unidade Básica de Saúde (UBS) nº 13, onde funciona o Consultório na Rua.
Uma mulher de 25 anos contou que havia chegado da Bahia no mês anterior, com a companheira e a filha de 2 meses, para ajudar seu pai nos serviços de reciclagem. Ela já estava em tratamento para as feridas nas pernas: usava uma pomada bactericida fornecida pela UBS. A mulher aproveitou a visita do médico para mostrar que sua bebê agora apresentava o mesmo problema, sobretudo nas costas. Lima examinou a garotinha e recomendou que a mãe aplicasse a mesma pomada nas feridas e, caso não tivesse melhora, a levasse até a unidade de saúde.
Um rapaz muito jovem e magro, usuário de crack, aproximou-se dos médicos de maneira tímida, esfregando os braços. Pediu para ser examinado porque estava com falta de ar havia alguns dias. Lima auscultou os pulmões e detectou sinais de uma crise de asma. “Tô ligado que é a fumaça, né?”, disse o rapaz. “Isso aí você já sabe, já é ciência, né?”, respondeu o médico, que o aconselhou a ir ao posto de saúde para retirar uma bombinha contra asma, acrescentando: “Vai aliviar os sintomas.” Ao entrar no carro, preparando-se para ir embora, Lima comentou: “Nós apagamos o fogo, mas sempre vem mais gasolina.”
O médico e sua equipe se dirigiram para uma área perto dali, conhecida como Chacrinha da UnB, à margem da Via L3 Norte, onde encontraram outros catadores e usuários de crack. Uma catadora de 60 anos varria com vigor a frente de seu barraco de madeira. Ela estava recebendo a visita de seu filho de 43 anos, que também vive na rua, mas em outro ponto. Ele percorre Brasília empurrando um carrinho de supermercado em busca de recicláveis. Usuário de crack, também muito magro e um tanto abatido, o homem estava confuso, mas conseguiu dizer ao médico que sentia fraqueza em um dos braços. Lima examinou e percebeu que ele havia sofrido uma fratura e que os ossos cicatrizaram em posição incorreta. Pediu que o homem fosse ao posto fazer uma radiografia. “Vamos cuidar desse braço para você trabalhar”, disse o médico.
Conversador e sorridente, Lima fixa os olhos e a atenção nos pacientes. Não pede detalhes sobre a vida deles nas ruas, mas aprendeu a conhecê-los. “Alguns moram longe, fora do Plano Piloto, mas vêm para cá em busca de trabalho e ficam longos períodos. Outros vêm de outras cidades, acreditando que terão acesso a melhores serviços públicos em Brasília. E tem ainda os que estão na rua porque não suportam seguir normas e expectativas”, diz. O médico sabe que precisa cuidar de uma coisa de cada vez, com paciência. “Nunca é apenas uma dor de garganta, por exemplo. Você começa a investigar e aparecem outras doenças e problemas psicológicos.”
Rodrigo Lima tem 45 anos de idade, mais de vinte deles dedicados à saúde da família, sua área de especialização e sobre a qual dá aulas no Centro Universitário Euro-Americano (Unieuro) e, como professor voluntário, na Universidade de Brasília (UnB). Em novembro do ano passado, começou a trabalhar no Consultório na Rua, um desdobramento da chamada Estratégia Saúde da Família, implantada há três décadas pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. O objetivo é organizar o atendimento básico, de modo a prevenir doenças ou conter seu agravamento, evitando assim a superlotação dos hospitais.
Criado pela Constituição de 1988, o SUS provocou uma mudança radical na saúde dos brasileiros ao universalizar o atendimento, o que beneficiou, sobretudo, as camadas mais pobres da população.
Como atende todos os casos – de resfriado a cirurgia cardíaca –, o SUS está dividido em três níveis. O primeiro é a atenção primária, dedicada à prevenção e aos cuidados essenciais, como o acompanhamento de grávidas, crianças, diabéticos, hipertensos, idosos. É o trabalho das UBS (ou postos de saúde). A segunda camada é a assistência de média complexidade, como fratura localizada ou dor aguda, oferecida, por exemplo, em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). O terceiro pilar é o de alta complexidade, como são considerados os acidentes de trânsito com ferimentos graves. Esse atendimento ocorre nos hospitais públicos e nos hospitais privados que têm convênio com o SUS.
Em todos os três níveis de assistência, o SUS também fornece gratuitamente os medicamentos, além de cobrir os serviços especializados e de reabilitação, como os de fisioterapia para quem perdeu os movimentos. É um espectro imenso de casos médicos, que inclui ainda a maior parte dos partos, das consultas e dos serviços de emergência. Só no ano passado, foram 400 milhões de consultas médicas, 27 milhões de consultas odontológicas e 12,4 milhões de internações, segundo números do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O SUS cuida das pessoas antes do nascimento e mesmo depois da morte, com suas ações de vigilância sanitária no manejo dos corpos.
Todo esse aparato gigantesco, único no mundo, mobiliza cerca de 4 milhões de profissionais e – eis o primeiro e grande nó górdio – exige uma montanha de dinheiro. Em 2021, o gasto público com saúde no Brasil alcançou 363,4 bilhões de reais, o que corresponde a 4% do PIB. Mesmo assim, foi pouco dinheiro. É uma das razões para as filas, a escassez de médicos, a falta de medicamentos, os equipamentos quebrados, a demora nas consultas e todo o rosário de deficiências das quais os usuários do SUS tanto reclamam.
Pelas regras da Constituição, a União deve destinar para o SUS pelo menos 15% de suas receitas com impostos de empresas e cidadãos. O total é distribuído para estados e municípios, seguindo critérios técnicos (demográficos, econômicos, epidemiológicos). Os governos estaduais, por sua vez, destinam 12% de suas receitas para o SUS local. São Paulo, o estado mais rico do país, aplicou 23,2 bilhões de reais no ano passado – ou 757 reais por habitante. Roraima, o mais pobre, bancou apenas 1,1 bilhão, mas gasta mais por habitante: 1,7 mil reais. Completando o tripé, as prefeituras devem despachar pelo menos 15% das suas receitas para o SUS de suas cidades. Além de aplicar o dinheiro, as três esferas de governo – federal, estadual e municipal – fazem uma gestão coordenada de ações e serviços de saúde. Casos de média e alta complexidade ficam com a União e os estados. A atenção primária está a cargo das prefeituras.
Apresentado assim, esse enorme complexo que é o SUS parece bem equilibrado entre os poderes, mas a realidade é outra. Nos últimos anos, o governo federal reduziu sua parcela na contribuição. Em 2012, a União respondia por 45,3% do total destinado ao SUS, enquanto os estados e o Distrito Federal custeavam 25,3%, e os municípios, 29,4% Em 2022, dez anos depois, a parcela da União havia caído para 37,6%, ao passo que a dos estados e municípios aumentara. Segundo um estudo do Ipea, os estados passaram de 25,3% para 28,4%, e as prefeituras saltaram de 29,4% para 34%. Ou seja, a União, maior arrecadadora de tributos, deixou boa parte da conta para os municípios, que recebem uma fatia menor de impostos.
Diante desse desequilíbrio, as prefeituras vêm gastando mais do que o piso de 15% previstos na Constituição. Afinal, elas estão encarregadas da atenção primária, cujo atendimento representa 80% do total dos serviços e ações em saúde. “É importante para a sustentabilidade do SUS que o seu financiamento seja tripartite (União, estados e municípios), consideradas as capacidades de arrecadação de cada ente federado”, diz Eduardo Melo, coordenador do Observatório do SUS, ligado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Considerando que a despesa total em saúde pública no Brasil está limitada a 4% do PIB, o país está hoje aquém do gasto recomendado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que sugere a destinação de uma fatia de 6% do PIB nos países que mantêm sistemas de saúde pública universal. O Reino Unido gasta 10,3%, a Colômbia, 7,1%, e o Chile, 5,9%. Tudo considerado, o gasto público com saúde no Brasil hoje é de 363,4 bilhões, enquanto o gasto privado chega a 509,3 bilhões. E isso logo no país com o maior sistema público de saúde do mundo.
Uma análise técnica do próprio Ministério da Saúde indica que, para desafogar os municípios, a União – apenas a União – deveria aplicar hoje 295,5 bilhões de reais – 77 bilhões a mais do que o previsto para este ano. No Orçamento atual, o SUS é o quinto maior gasto. Perde para o pagamento da dívida pública federal (que compromete astronômicos 46% do PIB), a Previdência Social (17%), as transferências a estados e municípios (10%) e as despesas do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (5%).
Nos anos 1970, ainda durante a ditadura militar, surgiu um movimento promissor entre os médicos sanitaristas e pesquisadores de saúde: eles queriam universalizar a saúde para os brasileiros. Na época, parecia um sonho distante, mas, durante a elaboração da Constituição na década seguinte, já sob o regime democrático, as coisas tomaram um enorme impulso. O então deputado Luiz Inácio Lula da Silva, líder da bancada do PT, escolheu o deputado e médico sanitarista Eduardo Jorge para representar o partido nas discussões sobre seguridade social. “Mas, Lula, eu não entendo de previdência”, disse Jorge na época, como ele rememorou à piauí. Lula respondeu: “E quem é que entende?”
Uma das grandes batalhas era o financiamento do sistema de saúde que nascia. “Nós queríamos que o SUS tivesse as mesmas regras da Educação, que já tinha um piso mínimo”, diz Jorge. “Mas o governo e os deputados economistas conseguiram impedir: Delfim Netto, Cesar Maia e José Serra.” Quando os trabalhos se encerraram, o SUS estava contemplado com 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS), criado pela nova Constituição para financiar saúde, previdência e assistência social para todos. Mas, já na largada, não foi o que aconteceu. E nunca aconteceria.
O governo José Sarney (1985-90) alegou que precisava de dinheiro para garantir outros benefícios criados pela Constituição de 1988, como a inclusão dos trabalhadores rurais na Previdência Social, e barrou a transferência integral para o SUS. Em 2020, os pesquisadores Alexandre Marinho e Carlos Octávio Ocké-Reis, do Ipea, junto com Francisco Funcia, da Associação Brasileira de Economia da Saúde (abres), calcularam quanto o SUS teria recebido naquele ano se a ideia dos 30% do OSS tivesse vingado. Concluíram que seria mais do que o dobro. Ou seja: em vez dos 125,4 bilhões de reais que recebeu, o SUS teria sido contemplado com 271,5 bilhões.
Em seus primeiros anos de vida, o SUS vivia com recursos provenientes do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, o antigo Inamps. Havia um desequilíbro evidente, já que o Inamps atendia somente trabalhadores com carteira assinada – o que, na época, correspondia a uma parcela da população inferior a 30%. “E o SUS, por sua vez, foi concebido para atender toda a população brasileira”, comenta a advogada Lenir Santos, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), que também atuou no movimento sanitarista. Para piorar, o SUS recebia apenas parte do dinheiro do Inamps.
O descumprimento da receita prevista na Constituição levou, nos anos seguintes, a uma disputa constante por recursos. Em 1995, o cardiologista Adib Jatene, então ministro da Saúde, iniciou uma queda de braço com a equipe econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso que acabou resultando na criação de uma nova fonte de receita para o SUS: a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cuja arrecadação total foi destinada ao Ministério da Saúde. Foi uma vitória de pirro, pois a equipe econômica retirava do orçamento da Saúde o valor que entrava via CPMF, deixando tudo no mesmo patamar. No ano seguinte, Jatene, incomodado, deixou o ministério.
Em 2000, em nova tentativa de organizar o financiamento. O Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 29, definindo que os estados destinariam 12% de suas receitas ao SUS, os municípios investiriam 15%, e a União aplicaria o valor do ano anterior, reajustado segundo a variação do PIB. Tudo parecia estar muito claro, mas não estava. A equipe econômica, ainda sob comando de Pedro Malan, entendeu que a base de cálculo para o reajuste seria sempre 1999, o ano anterior à aprovação da emenda. José Serra, então transferido da equipe econômica para a Saúde, queria que o reajuste tivesse como base sempre o ano anterior – 2002, por exemplo, com base em 2001 e assim por diante.
O entendimento de Serra vingou a partir de 2001, mas os estados e municípios não demoraram a fazer suas próprias interpretações da nova lei. Alguns estados tentaram colocar na conta dos gastos com saúde o fornecimento de merenda escolar, obras de saneamento e até despesas com hospitais que atendiam servidores públicos – e que não eram, portanto, parte do SUS. O Ministério da Saúde fazia recomendações para vetar algumas manobras, mas faltava uma regulamentação oficial.
No primeiro governo Lula (2003-06), as espertezas continuaram. O então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, quis colocar na conta da saúde as despesas com o programa Fome Zero. O Ministério Público Federal impediu. No segundo governo Lula (2007-10), o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, insistiu o quanto pôde para que a Emenda n° 29 fosse regulamentada. Em meio à epidemia de gripe suína, alertou, pela enésima vez: “O SUS está subfinanciado.” Só no primeiro governo Dilma Rousseff (2011-14), a regulamentação saiu, ampliando o investimento público. Em 2001, equivalia a 2,9% do PIB. Passou para 4% do PIB, nível mantido até hoje.
Houve uma leve melhora. Ampliou-se a Estratégia Saúde da Família, com a expansão dos núcleos com novas especialidades médicas, como psiquiatria e ginecologia. O aumento da verba permitiu também a criação dos consultórios itinerantes para atender a população em situação de rua. Mas os defensores do SUS continuaram a pressionar para que o investimento chegasse a 6% do PIB, como recomenda a Opas, e passaram a defender um novo mecanismo para calcular o piso da União destinado à Saúde.
Encaminharam um projeto de iniciativa popular propondo que o Congresso definisse em lei que a União tinha que destinar 10% de suas receitas brutas. Não deu certo. Em 2015, o Congresso aprovou um piso de 15% das receitas líquidas da União – o que dava menos do que as receitas brutas, mas era mais do que o total em vigor. A nova lei estabelecia que a elevação deveria ser feita de modo escalonado até 2020. Mas o governo Michel Temer (2016-18) chegou, congelou as despesas públicas por vinte anos e, mais uma vez, o SUS morreu na praia.
Temer definiu que o investimento em saúde seria apenas corrigido pela inflação oficial. Esse entendimento – muito festejado pelo mercado financeiro, pois continha os gastos públicos – permaneceu inquestionado durante toda a gestão de Jair Bolsonaro (2019-22). O resultado foi dramático. “Entre 2018 e 2022, o SUS perdeu aproximadamente 76 bilhões de reais com esse congelamento”, calcula Ocké-Reis, do Ipea, sem incluir na conta os créditos extraordinários liberados em função da pandemia. Em 2018, o pesquisador Davide Rasella, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Imperial College London, do Reino Unido, com a participação de Ocké-Reis e outros, estimou que, se o congelamento durasse até 2030, como queria Temer, custaria a morte – por causas evitáveis – de quase 30 mil crianças.
Já na fase de transição de Bolsonaro para Lula, a nova equipe de governo pôde devolver 30 bilhões de reais ao SUS, o que permitiu ampliar o Farmácia Popular, programa que dá acesso a medicamentos. Para alívio do SUS, a medida de Temer foi finalmente sepultada em agosto de 2023, com a aprovação do novo arcabouço fiscal pelo governo Lula. O piso da Saúde voltou aos 15% das receitas líquidas.
Quando as coisas pareciam começar a se ajeitar, o governo atual resolveu ressuscitar um debate: será mesmo que é preciso vincular 15% dessas receitas ao SUS?
Em 2017, um relatório do Banco Mundial apontou ineficiências do SUS e calculou que o desperdício de recursos na atenção básica e hospitalar era da ordem de 22 bilhões de reais por ano. Esse diagnóstico, muito duro, é bastante criticado até hoje porque não passou por uma revisão independente, mas seu objetivo está claro: indicar que os gastos públicos precisam ser aplicados com mais eficiência. A atual gestão do Ministério do Planejamento, chefiado por Simone Tebet, segue o mesmo raciocínio, no seu intuito de alcançar o equilíbrio fiscal: quer que o sus faça mais com os recursos de que já dispõe.
“Quando alguma política pública não obtém resultados esperados, somos instados a acreditar que a origem é a falta de recursos”, afirma Gustavo Guimarães, secretário executivo do Planejamento. “Mas, outros aspectos, como falhas de gestão, ineficiência e má coordenação, também são cruciais. Não sabemos se estamos extraindo o melhor de cada real gasto em diversas áreas, inclusive na saúde. E é isso que devemos ter coragem de medir e melhorar.” O Planejamento está, neste momento, concentrado nesse trabalho, em conjunto com outras pastas, diz ele.
A ideia causa urticária nos pesquisadores de economia da saúde. “Só teria sentido alguém dizer que temos ineficiência no SUS se já estivéssemos aplicando em saúde os 6% do PIB”, rebate Francisco Funcia, da abres, que acumula o cargo com o de secretário de Finanças em Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo. Para ele, não dá para debater uma economia de recursos quando o sistema não recebe o que os especialistas consideram como um bom financiamento. É como se, na vida de uma família, o dinheiro desse apenas para comprar carne de segunda, mas alguém exigisse ser servido com filé mignon.
Há outro sinal ainda mais preocupante para os especialistas em saúde que defendem o SUS. Desde o fim do ano passado, circula entre as equipes econômica e de planejamento a proposta de acabar de vez com as vinculações de gastos sociais, a fim de equilibrar as contas do governo. Na prática, a medida implicaria a extinção do piso de 15% das receitas da União que deve ser aplicado na saúde pública. “No Brasil, cada vinculação criada tende a se perenizar sem que se possa verificar os resultados das vinculações”, diz Guimarães, do Planejamento. “A discussão deve ser aprofundada, mediante a necessidade de harmonizar os anseios da sociedade com a capacidade fiscal do Estado.” Em entrevistas, a ministra Simone Tebet tem chamado a discussão de “modernização das vinculações”.
“O fim do piso da saúde é como se fosse o retorno de algo tão nefasto quanto o teto de gastos do governo Michel Temer”, diz o médico Eduardo Melo, do Observatório do SUS da Fiocruz. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, também reagiu às especulações. Em entrevista ao jornal O Globo em abril passado, disse que “o presidente Lula colocou claramente no programa de governo a importância de termos investimentos em saúde. Sou a favor da manutenção da vinculação”. Em meados de outubro, o debate sobre o corte de gastos e o fim das vinculações voltou à tona. Os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet alegam que não há mais como buscar novas receitas para a União e defendem que o corte é prioritário para o equilíbrio fiscal.
Ocké-Reis diz que há uma deformação na própria visão de que a saúde consiste em um gasto. “Hoje, existe no mundo, do ponto de vista teórico e político, uma compreensão de que meio ambiente e saúde acabam se pagando”, diz ele. “Existe esse debate, inclusive, nos círculos que defendem uma política fiscal mais restritiva. As pessoas estão pensando na própria estabilidade do sistema capitalista, como no caso de uma pandemia que arrebenta as cadeias de produção e distribuição do conjunto da economia internacional. O gasto público em saúde redistribui renda e reduz a desigualdade, pode contribuir para atenuar a inflação do setor saúde e melhorar o bem-estar das famílias brasileiras e a produtividade dos trabalhadores em geral”, acrescenta.
“O SUS é a coisa mais extraordinária que a gente fez, o mais próximo de uma revolução. Eu gostaria de saber como o feiticeiro da Fazenda e a feiticeira do Planejamento vão fazer, sendo que hoje gastamos apenas cerca de 1 dólar por dia, por pessoa, no sistema”, critica Eduardo Jorge, que apoiou a candidata Simone Tebet na eleição presidencial. “O Delfim Netto e o José Serra mudaram de ideia e reconheceram o valor do SUS. Quem sabe a dupla da Fazenda e do Planejamento mude de ideia também”, diz ele.
Chegou-se a imaginar que o sufoco financeiro do SUS pudesse ser reduzido com as novas receitas decorrentes de mudanças na tributação. A reforma tributária, já aprovada, criou o imposto seletivo, apelidado de “imposto do pecado”, que prevê a taxação dos cigarros, e bebidas alcoólicas e açucaradas. O imposto – cuja arrecadação ainda não foi calculada – poderia ter efeito duplo: diminuir o consumo desses produtos que fazem mal à saúde, reduzindo as despesas com as doenças associadas a eles, e reforçar o caixa do SUS. Mas a esperança de que a equipe econômica concordasse em destinar ao sistema essa nova receita não ganhou tração.
Entre os pesquisadores da economia da saúde circula já há alguns anos uma outra proposta que poderia ajudar no equilíbrio fiscal: a redução drástica dos subsídios do governo concedidos ao setor privado de saúde, o que ainda teria a vantagem de beneficiar o SUS. O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) avalia que, desde 2013, as desonerações fiscais para o setor privado da saúde aumentaram 88%, alcançando 70,7 bilhões de reais. A maior parte do subsídio recai sobre despesas médicas particulares e com planos de saúde, via deduções no Imposto de Renda, seguida por desonerações concedidas à indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos.
Para Ocké-Reis, do Ipea, mexer nas deduções de pessoas físicas, que estava na casa de 21,8 bilhões de reais em 2022, é um vespeiro. Ele considera mais viável racionalizar o benefício dado às empresas que pagam planos de saúde aos seus empregados – 11,5 bilhões de reais, no mesmo ano –, já que cada vez mais os usuários de planos empresariais pagam, eles mesmos, parte dos seus gastos com saúde. O pesquisador sugere, ainda, discutir os subsídios concedidos a poderosos hospitais filantrópicos – principalmente os que atendem tanto pacientes privados quanto do SUS –, cujo total atingiu 15,6 bilhões de reais em 2022. Só depois de melhorar o acesso ao SUS e a qualidade do atendimento é que se deveria discutir o abatimento de despesas pessoais com saúde no Imposto de Renda.
Toda essa discussão, porém, requer mudança no ir – e não está no horizonte do atual debate sobre a reforma tributária.
As raízes da fragilidade financeira do SUS estão fincadas no contexto mundial recente. “Em 1988, nós ousamos escrever na Constituição que a saúde seria um direito de todos e um dever do Estado, mas, naquele período, o pensamento neoliberal já estava avançando no mundo inteiro”, afirma a economista Rosa Maria Marques, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP. Ela conclui: “Então nós estávamos na contramão do movimento no resto do mundo.”
Nascido num momento histórico adverso, o SUS também cresceu num ambiente pouco acolhedor. A sociedade brasileira, como um todo, nunca abraçou o sistema. No Reino Unido, o NHS, criado no pós-guerra, tinha e continua a ter o apoio maciço dos ingleses, que inclusive homenagearam seu sistema de saúde na abertura dos Jogos Olímpicos, em Londres, em 2012. No Brasil de 1988, os trabalhadores, seus sindicatos e centrais, nunca levantaram a bandeira do SUS como sua causa porque tinham, e têm até hoje, seus seguros e planos de saúde. A massa dos servidores públicos também tem seus próprios planos, com acesso a bons hospitais, e não conhece a realidade dos subfinanciamentos e das longas filas. “Na verdade, nenhum gestor do SUS usa o SUS”, diz a advogada Lenir Santos, do Idisa.
O apoio da sociedade faria toda a diferença. Como aconteceu durante a pandemia de Covid, quando o SUS virou a tábua de salvação de todos os brasileiros, ricos e pobres. Naquele período, milhares, talvez milhões de brasileiros, foram às suas janelas e varandas para aplaudir o trabalho dos funcionários públicos de saúde. Torceram por eles, por seu empenho, pelo bom atendimento nos pontos de vacinação. Era uma forma de exprimir a indignação com o descaso fatal do então presidente Jair Bolsonaro com a pandemia, mas também era uma maneira de reconhecer que, sem o SUS, a tragédia teria sido ainda maior.
Superada a pandemia, voltou-se ao velho normal, com a população criticando as notórias deficiências do sistema, principalmente a dificuldade de acesso. Não se aproveitou o momento de popularidade do SUS para colocá-lo como prioridade, nem para entender como o sistema saía fragilizado da administração caótica da saúde no governo Bolsonaro. A tentativa de implantação do programa Previne Brasil na gestão Temer-Bolsonaro, por exemplo, só não provocou a ruína do sistema porque a pandemia atrapalhou sua implementação integral, poupando o SUS de efeitos ainda mais deletérios.
O Previne Brasil é um exemplo dos danos que uma visão amadora pode produzir na saúde. A iniciativa mudou o modo de financiar a atenção primária, área do SUS que deve resolver até 90% das demandas de saúde no país. Em vez de calcular seus repasses com base na população das cidades, a União adotou como parâmetro o número de usuários cadastrados nas unidades da Estratégia Saúde da Família. Além disso, as equipes passaram a ter que cumprir metas específicas de desempenho, que também serviam de base para o cálculo do dinheiro. O resultado foi um desastre.
Os agentes de saúde se ocuparam de correr atrás de cadastros, deixando de cuidar da saúde dos usuários. “De manhã, eu e meus colegas pegávamos uma Kombi e passávamos o dia percorrendo as ruas preenchendo novos cadastros”, conta uma agente de saúde que trabalha em Chapadinha, na região rural de Brazlândia, nos arredores de Brasília, e pediu para não ser identificada com receio de ser punida. As unidades de saúde se encheram de novos cadastrados, sem se preocupar se teriam – e muitas não tinham – capacidade para atendê-los.
As metas de desempenho também eram mal concebidas e minaram a qualidade do trabalho em alguns lugares. O médico de família Danilo Aquino Amorim, que há quatro anos trabalha na região brasiliense do Sol Nascente, hoje a maior favela do país, conta que bastava aferir a pressão do paciente para cumprir a meta do novo programa – mesmo que, constatada a hipertensão, o paciente não se submetesse a tratamento.
Não demorou para que começasse a divulgação de rankings das “melhores equipes”, com base nos indicadores do Previne. Uma médica de família em Planaltina, no Distrito Federal, que também pediu para não ser identificada, conta que solicitou mais recursos numa reunião com a Secretaria da Saúde. Em resposta, ouviu que sua unidade não tinha bons números de novos cadastros. “Não tínhamos nem agentes de saúde para se dedicar a isso”, diz ela, em cuja unidade faltam sete agentes até hoje.
Para Ocké-Reis, o Previne, com sua ênfase na estatística e na produtividade, estava matando a essência da Estratégia Saúde da Família, cujo objetivo é exatamente aumentar o tempo de permanência do paciente no médico para, no longo prazo, prevenir o agravamento de doenças e hospitalizações. “A ideia de produtividade do Previne era completamente absurda”, diz o pesquisador do Ipea. “Na saúde, em particular, existe uma relação inversa entre qualidade e produtividade do trabalho.” Ou seja, quanto mais demorado e cuidadoso o atendimento, melhor o resultado.
Neste ano, o Ministério da Saúde iniciou uma reforma para combater os danos deixados pelo Previne. Desvinculou o financiamento do número de cadastros e mudou os critérios de avaliação do desempenho dos profissionais. O médico de família Felipe Proenço de Oliveira, atual secretário de Atenção Primária à Saúde do ministério, explica: “Queremos ter as pessoas cadastradas para conhecê-las, mas queremos saber se estão sendo acompanhadas e qual é o grau de satisfação.” Segundo o último dado disponível, o Estratégia Saúde da Família atinge 60% da população do país. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, promete ampliar a cobertura para 80% da população até 2026. É uma meta ambiciosa.
Além de erros como o Previne, o governo passado, para comprar apoio de deputados e senadores, entregou o manejo de verbas públicas ao Congresso por meio de um instrumento até então inédito – o orçamento secreto. Na folia geral do dinheiro distribuído por parlamentares que não se identificavam nominalmente, descobriu-se que havia uma folia específica – o desvio de recursos da saúde. Em julho de 2022, em reportagem publicada na piauí, sob o título Farra ilimitada, o repórter Breno Pires revelou que o valor das emendas dos deputados e senadores era calculado com base em dados grosseiramente fraudados. Além do desvio de dinheiro, os repasses desvirtuavam o próprio SUS, fazendo sobrar dinheiro em alguns lugares e faltar em outros.
Um estudo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), que canaliza doações privadas para ações de impacto social, mostrou que as emendas parlamentares – que consomem atualmente entre 8% e 10% do dinheiro da saúde – pouco beneficiam quem mais precisa. Cruzando indicadores de saúde, extensão da cobertura do Estratégia Saúde da Família e dados de arrecadação, o estudo concluiu que as cidades mais necessitadas de verbas na saúde estão concentradas no Piauí e em Tocantins. A farra ilimitada das emendas no Congresso destinava as verbas para o Maranhão.
Mesmo com tudo isso – a falta de apoio amplo da sociedade, as administrações caóticas e a ganância despudorada –, o SUS continua sendo a melhor política social brasileira. Dois dados servem para ilustrar seu papel: a vacinação em massa na pandemia de Covid, apesar do boicote criminoso do governo federal, e a taxa de mortalidade infantil, que, dos anos 1990 para cá, caiu quatro vezes.
Todos os casos de usuários e trabalhadores do SUS descritos nesta reportagem são de Brasília e do Distrito Federal – e por uma razão. O DF, de certa maneira, foi o primeiro lugar do país a ter algo parecido com o SUS, antes da Constituição de 1988. “Durante a construção da capital, foi preciso oferecer algum cuidado de saúde para a população, os trabalhadores e construtores, que vinham residir aqui no meio do nada”, explica Leila Gottems, pesquisadora da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde, em Brasília. “O Estado foi pressionado a desenvolver os serviços.”
No Distrito Federal, também surgiu o embrião da Estratégia Saúde da Família. Ainda assim, das 33 regiões administrativas do DF, 22 têm equipes do programa atualmente incompletas. A maioria dos usuários, de acordo com auditoria recente do Tribunal de Contas, reclama de dificuldades para serem atendidos. A oposição acusa o governo local, chefiado por Ibaneis Rocha (MDB), de não gastar corretamente o dinheiro da Saúde. Recentemente, manifestantes protestaram em frente ao palácio do governo depois da morte de quatro crianças por problemas no atendimento médico. No início de setembro, os médicos entraram em greve reclamando da falta de profissionais e de insumos para trabalhar.
Em outubro, a piauí voltou a entrar em contato com o médico de família Rodrigo Lima, da equipe do Consultório na Rua, em Brasília, para saber a situação de seus pacientes, cinco meses depois da visita descrita no início desta reportagem. O usuário de crack, cujos ossos cicatrizaram na posição incorreta, nunca apareceu para os exames no posto de saúde. O rapaz com asma vinha sendo acompanhado no posto de saúde e passou a usar a bombinha indicada, mas nem sempre vai às consultas. A mãe de 25 anos e sua bebê estão curadas das feridas na pele e deixaram a área sob a Ponte do Bragueto.
Lima deixou o Consultório na Rua e passou a integrar a equipe da UBS responsável por atender diferentes povos indígenas, no Plano Piloto. O Consultório na Rua agora divide uma ambulância com outra equipe, distante 13 km. O veículo fica estacionado em um hospital, no meio do caminho. Mas não pode ser usado todos os dias por uma razão prosaica: falta motorista.
A série O complexo conta com o apoio da Umane, uma associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas sobre saúde pública.