Carência: para que a cobertura do serviço de atenção básica chegue a 100% da população brasileira seriam necessárias 16 mil novas Unidades Básicas de Saúde e 25 mil novas equipes CRÉDITO: VÂNIA MIGNONE_2024
O complexo: parte III_o SUS bate à porta
Na terceira reportagem da série, as histórias de três famílias que dependem do sistema público de saúde
Tiago Coelho | Edição 219, Dezembro 2024
Em um sobradinho numa travessa da Vila Ema, em São Paulo, há um pequeno pátio ladrilhado na frente e uma garagem com um carro popular. É uma construção muito comum nos bairros de classe média baixa das capitais brasileiras. No sobradinho, moram quatro pessoas: Mariana Alline Fernandez Silva, de 28 anos, seu marido, o contador Rafael Menegasso, três anos mais velho, o filho do casal, Miguel, de 1 ano, e Maria Del Carmen Fernandez, a avó materna de Mariana, de 92 anos. A situação da família Fernandez Silva é, também, muito comum no país inteiro: eles não têm plano de saúde privado e são parte dos 150 milhões de brasileiros que dependem integralmente do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Na infância e no início da juventude, Mariana Silva chegou a ter plano de saúde. Era dependente do convênio de sua mãe, funcionária da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Nessa época, a família recorria aos serviços do SUS somente para vacinações ou casos de emergência. Em 2017, Silva conseguiu um emprego de auxiliar de enfermagem num hospital privado e passou a ter um novo plano de saúde. Mas, quando deixou o emprego, em 2019, tornou-se, pela primeira vez na vida, inteiramente dependente do SUS.
Isso ocorreu em um dos momentos mais críticos e desafiadores do sistema de saúde: a pandemia. Foi nessa época que um grande número de pessoas que nunca haviam tido relação com o SUS aderiram a ele, de acordo com Arthur Aguillar, diretor de Políticas Públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). “Testagens e vacinas aconteciam muito mais no SUS. Foi positivo, porque o SUS é um exercício de cidadania.” Mas Aguillar também aponta duas consequências negativas dessa aproximação coletiva ao sistema público de saúde: “Houve um redirecionamento de ofertas para combater a pandemia que represou o serviço para quem estava na fila tratando doenças graves. E, depois que a pandemia diminuiu, essas pessoas que tiveram seus tratamentos paralisados voltaram e sobrecarregaram o SUS.”
Em maio de 2020, a Rede Nossa São Paulo – uma organização da sociedade civil que propõe agendas de justiça, democracia e cidadania – fez uma pesquisa em parceria com o Ibope que mostrou que 6 em cada 10 pessoas das classes média e alta da cidade de São Paulo passaram a dar mais valor ao SUS com a pandemia. Mas, além da pandemia, a crise econômica, o aumento da inflação e o achatamento dos salários também fizeram com que muitas famílias nos últimos anos procurassem os serviços do SUS.
Em 2020, Mariana Silva foi diagnosticada com Covid na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de sua casa. Meses depois, com sintomas de resfriado, procurou novamente a unidade de saúde para fazer o teste. Na triagem, foi atendida por uma médica que se interessou por um exame mais completo. “Eles poderiam ter feito o teste de Covid e me mandado embora, mas ela perguntou sobre meus sintomas, percebeu os inchaços que eu tinha pelo corpo, quis saber quando eu tinha menstruado pela última vez”, conta. A médica sugeriu que a paciente fizesse um teste de gravidez. Minutos depois, a auxiliar de enfermagem descobriu que estava grávida. Já o teste de Covid deu negativo.
Ela deixou o local com um pedido de exame de ultrassom, que fez no Hospital Estadual de Sapopemba, no bairro do mesmo nome, próximo da Vila Ema. Quando iniciou o pré-natal, recorreu outra vez à UBS de seu bairro. “Todo mês eu ia me consultar com a dra. Patricia Molina. Na reta final da gestação, passei a ir semanalmente. Foi muito bom. Me surpreendi positivamente com o serviço do SUS.”
A médica a aconselhou a procurar a Casa do Parto de Sapopemba, uma unidade de saúde do SUS que recebe gestantes para fazer o chamado parto normal humanizado. “Eu tinha muito medo de parto normal. Mas fui, e as enfermeiras me mostraram o local, com duas grandes salas de parto e dois quartos. Tudo muito limpo, arrumado, lindo mesmo.” Ali, o parto é feito apenas por enfermeiras e uma obstetriz, sem ajuda de médicos, o que exige que a gestante não tenha nenhuma doença que possa aumentar o risco do parto.
No finzinho da gestação, bateu uma insegurança em Silva e seu marido. “E se a gente precisar fazer um parto de emergência numa maternidade pública tradicional e não tiver leito?” Por precaução, o casal achou melhor fazer um plano de saúde. Na hora H, com o plano em mãos, os dois foram para um hospital privado no bairro da Mooca, onde Silva fez uma cesariana. “Fiquei com medo de ir para um hospital do SUS porque dizem que demora muito para fazer cesárea. Eu pensava: ‘Será que vou ficar sofrendo?’”, ela conta.
Mariana Silva cancelou o convênio médico logo depois do nascimento de Miguel. “Agora, é tudo no posto de saúde. Toda hora estou lá, resolvendo alguma coisa.” Quando estava com 2 meses de idade, seu filho apresentou um quadro de dermatite. Ela deu ao menino todos os remédios receitados, sem resultado. Até que a médica recomendou a suspensão do leite de vaca. Funcionou. Na carteirinha de vacina de Miguel já consta que ele é APLV – alérgico à proteína do leite de vaca. Por essa razão, só pode receber vacinas sem essa proteína. “Um funcionário da UBS tem um conhecimento muito bom das marcas de vacinas de sarampo, rubéola, meningite que levam leite e as que não levam. Eu fico muito aliviada.”
Outra preocupação de Silva era com a fórmula infantil que Miguel precisava tomar, o Neocate, uma vez que ele não pode beber leite. Na época, a lata de 400 gramas, que dura em média três dias, custava em torno de 272 reais. A despesa pesaria para a família, cuja renda mensal é de 3,5 mil reais. “O pessoal do posto conseguiu que ele recebesse o Neocate pelo SUS”, conta a mãe. O sistema de saúde dá para Miguel dez latas do produto por mês. “A UBS me atende em todas as áreas que eu preciso. Por isso eu não faria plano de saúde nesse momento”, diz.
O SUS também foi providencial depois que a avó se mudou para a casa de Silva. Por causa da insuficiência cardíaca, a idosa necessita de cilindros de oxigênio de uso doméstico. “Minha avó se cansa com facilidade. De repente, sente falta de ar, e a gente precisa colocar o cateter nasal acoplado ao oxigênio para ela respirar melhor. É o SUS que fornece.” Todo mês, a equipe da UBS vai até a casa de Silva conferir se está tudo certo com os cilindros. Aproveita para medir os sinais vitais da senhora de 92 anos e verificar a medicação. As fraldas geriátricas também são oferecidas pelo sus. “Eles mandam pelo correio”, conta.
Passados cinco anos de relacionamento com o SUS, Silva consegue identificar a diferença que julga mais importante entre o serviço público e o privado. “Eu acho que os funcionários do SUS têm um contato mais pessoal com a gente. De vir em nossas casas, entender nossas necessidades. O plano de saúde funciona como uma indústria. Eles te atendem e, em poucos minutos, dizem: ‘Tchau e benção’”, compara. “A dra. Patricia Molina demora o tempo que for necessário para a consulta. Você sabe que vai demorar, mas vale a pena.” Silva avalia que a única coisa mais fácil no plano de saúde é agendar consulta e internação. “No SUS, é difícil marcar. A gente consegue o encaixe, não fica sem consulta, mas demora muito. Acho que deveria ter mais funcionários no SUS para realizar as consultas.”
Os comentários de Mariana Silva sobre as vantagens do SUS servem como uma descrição do Estratégia Saúde da Família, um programa do SUS que começou a ser desenhado em 1991, com a implantação dos agentes comunitários de saúde, ganhou novo impulso em 1994 e assumiu a forma atual em 2006, tornando-se um modelo de atenção básica do sistema.
Quando Edivan Belo da Silva, agente comunitário de saúde, contou que naquele dia faria uma visita à casa dos Fernandez Silva, a médica de família Patricia Molina perguntou: “É a família da Mariana, uma auxiliar de enfermagem?” O agente respondeu que sim. “Ela fez o pré-natal comigo”, lembrou a médica. “Acompanho o bebezinho dela quase todo mês. Ele é uma graça.” Molina também recordou que a avó de Mariana Silva é uma senhora acamada que faz uso de oxigênio. “Na última vez que fomos até lá, ela estava um pouco melhor, não estava?” O agente comunitário confirmou: “Sim, ela andou bem debilitada, mas já consegue sentar e conversar com a gente.”
A médica e o agente comunitário fazem parte da equipe do Estratégia Saúde da Família, que é a porta de entrada dos brasileiros ao SUS. Suas equipes multidisciplinares atendem 44 milhões de domicílios. O cadastro de cada família, feito pelo agente comunitário, é o primeiro passo para o acompanhamento pela equipe do SUS. Inclui um questionário de saúde com autodeclarações de seus membros, informações socioeconômicas e anotações do agente sobre as condições de moradia. “Cada família tem suas dinâmicas e necessidades próprias”, diz Edivan Silva. “Temos que ter discernimento do conjunto para entendê-las, chegando nelas com calma e educação.”
O agente comunitário de saúde não precisa ter formação acadêmica. Precisa, porém, ter o ensino médio e ser morador do bairro onde irá trabalhar. Depois de um treinamento de dez meses, ele passa a acompanhar um grupo de famílias da sua região, conferindo regularmente o estado de saúde delas, alertando sobre consultas já marcadas, verificando se a caderneta de vacinação está em dia e se os exames médicos foram feitos, entre outras iniciativas. Na Vila Ema, Edivan Silva visita regularmente 240 famílias que já cadastrou, focando sua atenção nas crianças, nos idosos, nas gestantes e nos portadores de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão.
Munido das informações colhidas durante as visitas periódicas às casas, o agente Silva se reúne três vezes por semana com o restante da equipe do Estratégia Saúde da Família – um médico da família, um enfermeiro e um técnico em enfermagem – para discutir ações e medidas a serem tomadas.
O passo seguinte é dado pelo médico, que avalia o estado de saúde das pessoas da família. “O agente de saúde faz o questionário voluntário de doenças, que é muito peculiar, porque o paciente declara o que quer. Mas, quando as pessoas chegam à minha sala, tenho que aprofundar os detalhes colhidos”, explica Molina, que se especializou em medicina da família em 2010. “Eu posso ser médica em qualquer lugar, mas só posso ser médica de família na Estratégia Saúde da Família, com a participação do agente comunitário de saúde. Como médica da família, tenho que ser proativa. A gestante não veio tomar vacina? Faltou na consulta? Tenho que ir atrás ou pedir para o agente de saúde saber o que aconteceu e eu poder realizar o cuidado integral dela.”
Molina avalia que o programa Estratégia Saúde da Família lançou luz sobre a especialidade de medicina da família em comunidade, “que propõe um olhar global sobre o indivíduo”, nas suas palavras. “A gente não olha um paciente apenas, mas tudo que engloba a saúde física, mental e estrutural, relacionada às condições de vida da comunidade.” A expansão do serviço de atenção básica por intermédio do Estratégia Saúde da Família causou um grande impacto na vida dos brasileiros. Segundo Rebeca Freitas, diretora de Relações Institucionais do Ieps, “pesquisas mostram, por exemplo, que o programa ajudou a reduzir em 34% a mortalidade infantil nos últimos dez anos”.
Como ocorre com a auxiliar de enfermagem Mariana Silva, as mulheres são em geral o principal elo do SUS com as famílias. Uma estatística do ibge indicou que 85% do trabalho de cuidado da família é feito por mulheres, que gastam nessa atividade 21 horas por semana (os homens gastam apenas 11 horas semanais). “Meu marido fala assim: estou com uma dor nas costas. Eu digo: ‘Vamos no posto marcar uma consulta, fazer um exame.’ Mas homem usa serviço de saúde?”, Mariana Silva comenta. Rebeca Freitas, do Ieps, explica que a preocupação com a saúde do homem também faz parte das políticas da Secretaria de Atenção Primária à Saúde. “Existe quase que uma falta de responsabilização do homem pela sua própria saúde, uma resistência em marcar exames. E isso precisa ser trabalhado como política pública”, diz. “Essa situação tem raízes profundas em dinâmicas sociais que sobrecarregam a mulher, que é vista como cuidadora também do seu companheiro e dos homens da família.”
Depois de Mariana Silva muito insistir, seu pai, que é alcóolatra, procurou tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps), também do SUS. “Ele tentou o tratamento, mas abandonou logo. Não por causa do programa, que eu acho bom. Meu pai disse: ‘Fui lá, mas não resolve nada.’ Essa desculpa faz parte do vício.” O pai recorreu também ao serviço odontológico do SUS e, agora, se encontra na fila de espera para uma cirurgia de hérnia. “Homens são o grupo que menos se cuida, são as pessoas da família que esperam a doença agravar para pedir ajuda”, diz a médica Patricia Molina. “Eu incentivo a mulher que vem na consulta a trazer seu parceiro. Encaixo em horário que caiba no tempo que o homem tem disponível. O atestado médico para apresentar no trabalho também é uma forma de barganha.”
Os agentes comunitários de saúde foram instituídos pela primeira vez em 1991, quando o SUS ainda engatinhava. Três anos depois, foi criado o Programa Saúde da Família – antecedente do Estratégia Saúde da Família – para oferecer atenção básica à população, no qual os agentes tinham papel central. Quase metade dos municípios brasileiros já tem cobertura integral do programa em seu território, segundo um relatório do Ieps. Outros 25% estão próximos de alcançar.
O mesmo Ieps fez um levantamento em 2021 que mostrou que o Rio de Janeiro tinha a pior cobertura de atenção básica entre os estados: atingia apenas 57,2% da população. Em seguida vinham São Paulo e Distrito Federal (ambos com 63,2% dos habitantes cobertos pelo programa), Pará (68,6%) e Roraima (74,7%).
Arthur Aguillar, do Ieps, explica que há dois motivos para os estados ricos, como São Paulo e Rio, estarem na traseira do ranking. O primeiro é que os convênios privados e os planos de saúde cobrem entre 30% e 40% da população desses estados, fazendo com que as pessoas dispensem o programa de saúde básica do SUS. “Apesar de os planos de saúde não serem muito voltados para a atenção básica, e sim para casos de urgência e emergência”, diz ele. O outro motivo é a dificuldade de fixar profissionais em algumas áreas metropolitanas controladas pelo tráfico ou pela milícia. “Por causa da violência, nesses territórios não há a garantia de que as pessoas tenham livre acesso ao serviço de saúde.”
Para que a cobertura da atenção básica alcance 100% da população brasileira são necessárias 16 mil novas UBS e 25 mil novas equipes, segundo o relatório do Ieps. “Quando falamos de cobertura, estamos falando de quantidade”, comenta Aguillar. Ele diz que, embora a cobertura da atenção básica tenha se espalhado por quase todo o país nos últimos anos, ainda não atingiu regiões rurais remotas e municípios de baixa densidade da Amazônia Legal, do Pantanal e do Vale do Jequitinhonha. “Pouca gente da área de saúde quer ir para esses lugares.”
A violência é o que impede o acesso à atenção básica na região em que vive Maiara Aparecida Silva da Conceição, de 26 anos: o Complexo do Salgueiro, um conjunto de favelas em São Gonçalo, no Grande Rio. “Não é todo mundo que quer trabalhar dentro de favelas, as pessoas têm medo. Nos postos de saúde, às vezes faltam médicos, psicólogos, enfermeiros. Ou então eles fecham quando tem operação policial. Já tive exame marcado que não pude fazer por causa de tiroteio”, conta ela. Uma portaria do Ministério da Saúde diz que um equipamento de saúde básica deve ficar a 2,5 km a pé da casa das pessoas. Mas isso nem sempre acontece. A Unidade de Saúde da Família (USF) do Portão do Rosa, a mais próxima da casa de Conceição, fica a 3,3 km.
No início dos anos 2000, os pais de Conceição trabalhavam como catadores do aterro sanitário de Itaoca, também em São Gonçalo, e ganhavam mais de um salário mínimo por semana. Quando ela foi ter seu primeiro filho, eles pagaram o parto em um hospital privado. Em 2012, o aterro sanitário foi fechado, e o casal foi trabalhar como auxiliar de serviços gerais com carteira assinada, mas sem plano de saúde. A renda familiar caiu pela metade. Conceição teve outros três filhos – e cresceu na família o número de dependentes do SUS.
Ainda criança, ela foi diagnosticada com anemia crônica, que lhe causava queda de cabelos, dor nos ossos e uma intensa dor de cabeça. No Hospital Infantil Darcy Sarmanho Vargas, no Centro de São Gonçalo, submeteu-se a um tratamento com antibióticos e nebulizações. “Eu fazia hemogramas e vários exames, tudo no SUS. Só que antigamente não davam remédios como dão hoje. Meus pais tinham que comprar”, conta a jovem, que teve nove internações na infância por causa da anemia. Não foi o caso da mãe de Conceição, que, depois de ser diagnosticada com hipertensão, pôde obter os remédios para pressão alta nas farmácias do SUS.
A ideia de que o acesso a medicamentos é parte do projeto de universalização do SUS foi se construindo ao longo do tempo. O governo Fernando Henrique Cardoso instituiu em 1996 políticas de gratuidade para medicamentos que tratam a Aids. Dois anos depois, foi implantada a Política Nacional de Medicamentos, que garantiu o acesso da população aos remédios essenciais. No ano seguinte, foi autorizada a comercialização de medicamentos genéricos no país. Em 2004, o governo Lula criou o Programa Farmácia Popular do Brasil e a oferta de remédios gratuitos se tornou prática regular do SUS. “Hoje vou na USF do Portão do Rosa e me dão um medicamento à base de sulfato ferroso para tratar a anemia. É só entregar a receita”, diz Conceição.
Quando entrou na adolescência, ela fez, nessa mesma unidade de saúde, sua primeira consulta ginecológica. “O médico foi atencioso. Marcou os exames e eu fiz no próprio posto. Aproveitei para perguntar um monte de coisas na consulta. Principalmente sobre a menstruação, que ainda não havia chegado. Ele me explicou tudo. Minha mãe trabalhava muito e não tinha tempo para me explicar.” Ela quis saber se a menstruação lhe traria algum transtorno por causa da anemia crônica. “Ele disse que, no início, poderia não interferir tanto, se o sangramento viesse fraco. Mas que, ao longo do tempo, quando eu começasse a menstruar mais forte, deveria tomar um remédio para regular a menstruação, porque poderia, sim, piorar o quadro da anemia.”
Aos 16 anos, Conceição se sentiu mal e foi ao Pronto-Socorro Central Dr. Armando Gomes de Sá Couto, de São Gonçalo. Ela achou que sofria de algum tipo de infecção, mas de fato estava grávida. A mãe de Conceição, muito rígida, não reagiu bem à notícia, e a jovem precisou se mudar para a casa dos sogros. Até os quatro meses de gestação, ela realizou o pré-natal no posto de saúde. No quinto mês, sua sogra contratou para ela um plano de saúde, a fim de garantir que o parto acontecesse num hospital privado, pois desconfiava da qualidade das maternidades públicas. Conceição fez consultas num hospital privado, mas não gostou do atendimento. “No SUS, você vê que o médico tem algum envolvimento, está preocupado com o paciente, ele conversa e entende seu problema em detalhes. Já no hospital privado o jeito como os médicos falam e te tratam é meio rígido.” Ela decidiu voltar para o SUS, tanto para as consultas de pré-natal quanto para o parto de Davy.
De um segundo casamento nasceu Kiarah, também em uma maternidade do SUS. Na terceira gravidez, Conceição, então com 19 anos, teve, em uma maternidade pública, uma experiência que ela considera “traumática”. Os médicos que a atenderam no pré-natal disseram que tinha “bolsa rota”, quando a membrana protetora do bebê se rompe antes do previsto. Resolveram interná-la, e ela ficou no hospital cinco dias. “Não quero falar sobre o que passei nesse período, não consigo, para mim ainda é muito pesado. Foi horrível. Sofri violência obstétrica do primeiro ao quinto dia de internação”, diz. “Teve um médico que me tratou com ignorância na hora do parto. Teve uma médica que me humilhou, só porque eu tinha sido internada outras três vezes antes do parto, dizendo que eu estava ali porque gostava da comida do hospital.”
Para Rebeca Freitas, do Ieps, problemas como esses têm a ver com a formação dos profissionais de saúde. “Devemos insistir numa política de formação que aborde temas como racismo, machismo e discriminação de classe. Nem sempre o sistema de saúde atende todos da mesma maneira. Negros, LGBTQIA+, deficientes são tratados com discriminação até mesmo no SUS.” Dados do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) comprovam que mulheres negras, como Conceição, são as que mais morrem durante o parto: em 2022, a taxa de mortalidade materna para cada 100 mil crianças nascidas vivas foi de 46,56 entre mulheres brancas e mais que o dobro entre mulheres pretas – 100,38.
Conceição precisou fazer o parto aos sete meses de gestação. Depois que Bethinna nasceu, Conceição e sua filha tiveram todo o atendimento necessário da equipe de enfermeiras e psicólogas da maternidade. A recém-nascida – que tinha apenas 40 cm e 1,4 kg – precisou ir para uma uti neonatal a fim de fazer sucção de sangue do pulmão, controlar a anemia e realizar um tratamento fototerápico para os sintomas de icterícia. Como a maternidade não tinha essa uti, Bethinna foi levada para um hospital privado, com tudo pago pelo SUS. A bebê ficou internada durante 34 dias, acompanhada pela mãe.
No ano passado, aos 24 anos, Conceição engravidou pela quarta vez e soube que a doula Laura Torres fazia uma roda de conversa perto do Complexo do Salgueiro para esclarecer gestantes sobre cuidados e saúde no parto. “Quando contei para a Laura o que tinha passado na gravidez anterior, ela disse: ‘Você praticamente gabaritou as violências que as mulheres costumam passar na hora do parto.’” Conceição sugeriu que as rodas de conversas se tornassem permanentes, e assim nasceu o projeto Espaço Gaia, que hoje reúne sessenta mulheres. Torres é a diretora-geral, e Conceição, a diretora de mobilização.
Por causa da anemia, Conceição ficou internada em um hospital do SUS alguns dias depois do parto de Kimberlly. “Fizeram todos os tipos de exame em mim e nela. Eu tive bom acompanhamento nutricional e também psicológico. Enfermeiras pediam permissão para tocar no meu corpo, para me examinar, e me explicavam para que servia a medicação que eu deveria tomar”, conta.
Conceição continua a ser atendida pelo mesmo agente comunitário do Estratégia Saúde da Família que a acompanhava quando criança. Ele agenda consulta com pediatra para os quatro filhos dela, sessões com psicólogo e faz a verificação das vacinas. Como ela conseguiu um emprego de carteira assinada tempos atrás, perdeu direito ao bolsa-família. Em outubro passado, porém, estava sem emprego formal e esperava a passagem do agente de saúde para solicitar novamente o benefício. Ela ganha cerca de 700 reais vendendo lingerie e produtos de beleza. Juntando a pensão alimentícia dos filhos, tem uma renda familiar de 1,4 mil reais.
Conceição faz cursos de gestão pública na Casa Fluminense – um espaço para pensar e discutir políticas públicas coletivamente. “É importante colocar dentro dos aparelhos de saúde pública funcionários das próprias comunidades, além do agente comunitário, já que muitas pessoas não querem trabalhar nelas por serem áreas pobres e consideradas de risco.”
Outra medida de saúde pública que ela considera urgente não depende somente do SUS. É o saneamento básico. Conceição mora com os filhos em uma rua sem asfalto, sem água encanada direta e onde falta luz com frequência. “Nosso cano de água passa por uma ponte sobre um valão. Quando tem enchente, a água do valão sobe e o cano fica imerso na água contaminada. Teve época de a água vir com gosto de vala.” Conceição conta que muitas pessoas de seu bairro sofrem frequentemente de diarreia. “Eu mesma já parei no hospital por causa da água.” No começo deste ano, depois de uma enchente, seu tio pegou leptospirose. “Eu já passei por isso tudo na infância e pensava: ‘Será que meus filhos vão passar também?’ E estão passando. Ainda hoje.”
A pesquisa do Ieps na qual Rio e São Paulo aparecem na traseira do ranking de cobertura de atenção básica revelou que o Piauí é o estado com a melhor abrangência nessa área, com cobertura de 99,9% da sua população. Ao lado do Piauí, estão outros estados do Norte e do Nordeste.
Arthur Aguillar, do Ieps, explica que a diferença da atenção básica entre as regiões tem a ver com o histórico da oferta de saúde antes de o SUS ser criado. “Quando o SUS surgiu, regiões urbanas do Sudeste já contavam com um conjunto de equipamentos de saúde muito maiores do que o de outras regiões.” O estado de São Paulo, por exemplo, dispunha de hospitais universitários e Santas Casas de Misericórdia espalhados pelo interior. “Por isso, o Rio e São Paulo vão atender a população sobretudo nos casos de urgência e emergência e na busca por especialistas.” Como não contava com a mesma malha hospitalar do Sudeste, o Nordeste priorizou práticas de saúde da família. “E baseou-se na experiência de saúde comunitária já existente na região, que decorria da escassez de médicos.”
No fim de agosto, em Teresina, a cuidadora de idosos Francisca Moraes Cardoso, de 63 anos, ainda estava muito abalada com a morte recente de sua mãe, Benedita de Moraes Macedo, aos 89 anos. Na varanda de sua casa no bairro Aeroporto, Cardoso e sua filha primogênita, a zootecnista Michele Moraes, de 41 anos, contaram que todo o atendimento de Macedo foi feito pelo SUS.
“Sinto que as coisas melhoraram”, disse Cardoso. “Antes do SUS, o hospital do Inamps só tinha clínico geral. Faltavam muitas especializações. A gente ia lá tomar algum remédio, um Benzetacil, por exemplo, e demorava muito para ser atendido, mais do que hoje.” O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) foi um sistema público de saúde, mas que atendia apenas as pessoas inseridas no mercado formal de trabalho. Cardoso fez, ao longo da vida, duas cirurgias no sus: a retirada de um mioma do útero e a da vesícula. “Eles fizeram duas cirurgias de uma vez. Na hora que eles abriram para fazer a operação, viram um tumor no estômago que não tinha aparecido no exame. Eles retiraram. Foi maravilhoso.”
A ubs de referência para a família de Cardoso é a do bairro Real Copagre, vizinho do Aeroporto. Foi por esse posto de saúde que sua irmã, Antônia, passou, antes de ser encaminhada para um hospital de atendimento complexo. Antônia morava em Caxias, no interior do Maranhão, e foi a Teresina para tratar um câncer, que a matou aos 67 anos. “Teresina é referência em saúde até para os estados vizinhos”, diz Michele Moraes.
Ao contrário de Cardoso, que recorre exclusivamente ao SUS, sua filha Michele e os dois filhos dela têm plano de saúde – e se equilibram entre as vantagens do serviço público e as do privado. “Meu filho teve meningite bacteriana quando estava com 3 anos, mas o plano não cobria. Então, ele foi internado no Centro Integrado de Saúde Lineu Araújo, um hospital municipal. A doença deixou sequelas neurológicas, não fixas, que fizeram com que ele tivesse atraso no desenvolvimento”, conta Michele. Esses problemas demandaram tratamentos com terapias que o plano de saúde também não cobria, mas o SUS cobriu. “Seria inviável eu pagar todo o tratamento. Tive que pagar apenas o fonoaudiológico, porque o sus na época não tinha profissional nessa área.”
Michele se deu conta de que o SUS, além de oferecer tratamento adequado a seu filho Eduardo Antônio Moraes Cardoso, dispunha de um serviço cuidadoso de epidemiologia. “A doença bacteriana que ele teve era altamente contagiosa, e a prefeitura tinha um controle disso. Ligava todo mês, queria saber qual tratamento estava recebendo, se estava tomando os remédios corretamente. Consegui todos os remédios pelo SUS”, ela diz. “Hoje, meu filho tem 21 anos e é estudante de história na Universidade Estadual do Piauí.”
Já adolescente, o filho de Michele quebrou a clavícula num treino de judô. Apesar de ele dispor de plano de saúde, a mãe correu com o rapaz para o SUS, porque acredita que em casos de emergência o sistema público faz um atendimento mais rigoroso e mais veloz. “Os profissionais são os melhores, confio mais. E, muitas vezes, os hospitais privados que atendem pelo plano andam tão cheios quanto os públicos.”
Ela acha que na rede privada falta o aprofundamento nas consultas e nos exames que encontra no SUS. “Na época da pandemia, cheguei na clínica particular com pressão alta, achando que estava com Covid. Disseram que o atendimento de urgência não cobria o teste e me deram uma injeção de dipirona para dor. Depois, me mandaram para casa. Quando tive sintomas de novo, resolvi ir ao Hospital Municipal Dr. Mariano Gayoso Castelo Branco. Lá, mediram minha pressão, me deram um remédio e me colocaram em observação. Fiz o exame e estava com Covid. Nesse hospital público recebi de graça tudo aquilo que havia recebido no outro, pagando.”
Michele recorre ao seu plano de saúde quando precisa marcar consultas que demoram muito a ser confirmadas no SUS. Por exemplo, com ortopedista. “A espera é muito longa no SUS. Fiz um pedido de consulta em 2022 e até agora está em análise”, ela contou no fim de agosto passado. “Cardiologista também pode demorar meses.” Com o plano de saúde, ela também se sente mais segura no caso de precisar de internação. “Minha filha teve infecção na trompa e no ovário. Se ela tivesse ido para o SUS, talvez demorasse meses para operar”, diz Michele. “Por causa do plano, operou em uma semana.”
Arthur Aguillar, do Ieps, considera insuficiente a capacidade ambulatorial do SUS. “Em estados do Centro-Oeste, Nordeste e Norte, muitas regiões não têm uti neonatal. Se uma criança nasce com algum problema grave, a família vai precisar percorrer 500 km para interná-la.” Ele avalia que, para evitar situações como essa, é preciso organizar melhor o sistema de saúde, em termos de governança, financiamento e serviços. “Por exemplo, é muito comum ter dois municípios pequenos e vizinhos com uma maternidade de cinco leitos cada um. Isso claramente não tem eficiência. Talvez um município devesse ter uma maternidade para atender à sua demanda e também a da cidade vizinha, que, por sua vez, teria um serviço diferente de saúde que atendesse as duas localidades.” Isso significa que é preciso coordenar as ações dos três entes federativos – município, estado e União – em relação ao SUS, a fim de que tomem decisões em conjunto, tornando-as mais efetivas. “É papel do Ministério da Saúde induzir essa coordenação e criar os incentivos para que ela aconteça.”
O pai de Cardoso, Francisco de Assis Cardoso de Macedo, tem 97 anos e é hipertenso. Quando ele teve dengue, chicungunha e pneumonia, tudo ao mesmo tempo, o médico de família Josué da Costa Arcoverde disse que não era preciso interná-lo. Bastava dar os remédios corretamente. Ele se recuperou em casa, onde a equipe da UBS ia com regularidade para saber do seu estado de saúde. “A gente aqui sempre foi muito bem assistido pela UBS, mas o prefeito eleito em 2020 bagunçou a gestão anterior, que era boa”, reclama Michele. “Vinha o dr. Josué, vinha a enfermeira, vinha o agente sanitário, vinha até veterinário. Agora, não vem mais ninguém, e os remédios gratuitos também estão em falta.”
Governos que não têm uma visão republicana sobre a importância da política de saúde podem causar grandes prejuízos à população. O Ieps fez pesquisas que mostram o efeito da transição de governo na provisão de serviços de saúde. “Pode haver, por exemplo, aumento na taxa de mortalidade infantil nesse período”, diz Rebeca Freitas, do Ieps.
Em 2012, Benedita Macedo, a mãe de Francisca Cardoso, estava com uma tosse intermitente. Fez uma série de exames e identificou um caroço no pulmão do tamanho de um grão de arroz. Naquele momento, os médicos acharam que era melhor não fazer nada. Mas o caroço cresceu, e especialistas do Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí (UFPI), que atende pelo SUS, disseram que era preciso fazer um exame para saber se aquele tumor era benigno ou maligno. Macedo preferiu não fazer, por ter medo. Até que a equipe de psicólogos do hospital universitário entrou em cena, conversou com ela e a convenceu sobre a importância do exame.
O tumor era maligno e o tratamento exigia urgência. Uma das médicas achou que Macedo, por causa da idade, não resistiria aos efeitos colaterais da quimioterapia, e a família optou por cuidados paliativos em casa. “A gente a levava para passear, para ver o encontro dos rios. Fazia tudo que trouxesse melhor qualidade de vida para ela. Só não conseguimos impedi-la de parar de fumar”, conta Michele.
Em 2022, Macedo precisou fazer sessões de radioterapia. E, mais uma vez, a equipe de psicólogos foi essencial para quebrar a resistência dela ao tratamento. As 35 sessões foram feitas num hospital privado, mas integralmente pagas pelo SUS. Em paralelo, ela fazia consultas regulares com oncologista, geriatria, psicólogo e cardiologista, também pelo SUS. Na consulta geriátrica, a idosa recebia cuidados com água morna e massagem nos pés.
Mesmo nesse momento em que Macedo dependia da atenção de alta complexidade do hospital universitário, a equipe da Estratégia Saúde da Família esteve presente. Acompanhou a evolução da doença e sempre ligava para saber se ela estava recebendo o tratamento paliativo. E, apesar de as visitas em casa terem sido suspensas pela gestão municipal, a equipe ia até a casa de Macedo para ver se ela estava precisando de algo.
Na véspera do Natal de 2023, Macedo teve uma pneumonia e ficou alguns dias internada. Voltou para casa a tempo de usufruir da ceia. Um dia a família a viu dançar na frente da tevê, que exibia um vídeo de Maria Bethânia, uma de suas artistas favoritas, cantando Saudade dela: Ela se foi, saudade/Fiquei sem ela/Fonte de sabedoria/Onde tudo podia achar/Todo o canto matriz/Da gente do meu lugar/Quando eu era canarinho/Ela existia, sabiá/Hoje canto sozinha./E dela sempre vou lembrar.
Em 11 de agosto passado, Cardoso ouviu de sua mãe: “Quero que cuidem de você da mesma forma que você cuidou de mim na velhice.” Na manhã do dia 12, a pressão de Macedo baixou muito. A família ligou para o Samu. Os atendentes pediram o número do cartão do SUS da paciente para verificar sua idade e seu histórico de saúde. Dada a gravidade, chegaram na casa em dez minutos e levaram Macedo ao hospital. Ela, porém, não resistiu. “Minha mãe dizia que queria morrer sem dor. E de fato morreu sem dor”, diz Cardoso. “Minha avó era o centro da família inteira. Um elo se acabou”, acrescenta Michele.
Poucos dias depois da morte de sua mãe, Cardoso foi ao hospital universitário agradecer aos médicos e enfermeiros. “Eles me disseram: ‘Você sabia que nós temos um acompanhamento de luto?’” Abalada, ela resolveu fazer o tratamento psicológico destinado a parentes enlutados. “Sou muito grata pelo que os médicos do hospital universitário fizeram por ela. E também à equipe de Saúde da Família, que, mesmo sem verba para gasolina, vinha ver como minha mãe estava.” O médico do SUS ia até a casa de Cardoso em seu próprio carro.
A série O complexo conta com o apoio da Umane, uma associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas sobre saúde pública.
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