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A COP do cocar

    Protesto do povo Munduruku na COP Foto: Mauro Pimentel/AFP

carta de Belém

A COP do cocar

Os povos indígenas querem ter suas terras demarcadas e participar das decisões na Conferência do Clima

Juliana Faddul, de Belém | 14 nov 2025_19h19
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No dia 7 de novembro, os participantes credenciados da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, que começaria dali a três dias, receberam um e-mail da organização informando que o código de vestimenta formal para as sessões do evento havia sido flexibilizado. A conferência de Belém – a primeira do tipo realizada na Amazônia – seria uma COP sem gravata. Assim que o evento começou, ficou claro por quê. Os termômetros estão marcando uma temperatura em média de 30°C e a umidade tem alcançado 81% (o patamar gera desconforto térmico e pode aumentar a proliferação de organismos, segundo a Organização Mundial da Saúde).

“Eu vejo muita gente aqui se abanando, não aguentando o calor que está fazendo mesmo em ambiente fechado com ar condicionado”, disse Margareth Maytapu, liderança indígena do Baixo Tapajós, no Pará. “Agora eu digo: imagina a gente, que muitas vezes nem ventilador tem. É bom que vejam a nossa realidade, que sintam o que estamos sentindo.” Maytapu é coordenadora do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns (Cita), organização que representa treze povos indígenas da Região do Baixo Tapajós, e deu essa declaração ao lado de outras lideranças numa entrevista coletiva para a imprensa na Universidade Federal do Pará (UFPA) na quarta-feira (12). 

Falava em nome de indígenas que, na noite anterior, haviam tentado invadir a Zona Azul da COP30, a área de acesso restrito onde circulam os negociadores e as delegações de quase duzentos países reunidos em Belém para discutir soluções para o combate à crise climática. Os manifestantes reivindicavam a demarcação de terras e a melhoria das condições de saúde para os indígenas, entre outras pautas. 

A tentativa de invasão reflete também o anseio dos indígenas de ocupar os espaços de tomada de decisão, uma antiga reivindicação de Txai Suruí, que discursou na COP26, em Glasgow, e de outros ativistas. Os povos originários têm tido representação cada vez maior nas conferências do clima, mas nem sempre estão nas salas onde as principais resoluções são negociadas. “Vem crescendo a participação indígena, mas ainda é pouco quando a gente não tem nem vez, nem voz nas negociações”, resumiu Auricelia Arapiun, membro do conselho deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Embora as reivindicações fossem legítimas, a tentativa de invasão da COP30 não foi endossada por todo o movimento indígena. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais representativa associação de povos originários do país, divulgou uma nota alegando que não coordenou a manifestação, mas respeita o direito de manifestação e a autonomia dos povos.

Os manifestantes acabaram contidos pelas forças de segurança da conferência e não chegaram a entrar na Zona Azul. O tumulto motivou uma reclamação oficial das Nações Unidas ao governo brasileiro, que responde pela organização da conferência. Após a tentativa de invasão, oficiais do Exército e agentes da Polícia Federal armados com fuzis foram colocados em frente à entrada do pavilhão. A ONU – responsável pela segurança da Zona Azul – também reforçou os contingentes. 

 

Na quinta-feira (13), indígenas do povo Munduruku foram impedidos de entrar portando arco e flecha na Zona Verde, área da conferência que é aberta ao público. Os barrados eram convidados do Ministério Público Federal para participar de um seminário que discutiria os impactos da criação de hidrovias e portos na Amazônia, uma questão que está no centro das preocupações dos indígenas que vivem na floresta. Tinham levado arcos e flechas como objetos de manifestação cultural, e não para fazer guerra. Mas a segurança do evento não entendeu da mesma forma, e os indígenas precisaram deixar os artefatos na entrada. Os portões ficaram fechados por cerca de trinta minutos.

Na manhã de sexta (14), um grupo de mundurukus fez uma paralisação desde as 5 horas da manhã na frente da Zona Azul, o que bloqueou por algumas horas a entrada principal da COP30. Os manifestantes reivindicavam uma reunião com o presidente Lula para discutir o Plano Nacional de Hidrovias, que prevê a concessão de hidrovias para a iniciativa privada, algo que muitos indígenas consideram uma forma de privatizar os rios. O plano do governo prevê os rios Tapajós, Madeira e Tocantins como eixos prioritários para navegação de cargas. 

Para os Munduruku, o decreto “abre a porteira” para novas dragagens e para a destruição de espaços que eles consideram sagrados. “Nós tiramos o Bolsonaro, que não nos representava, e elegemos o Lula, mas hoje ele vem privatizar quatro rios, inclusive o Tapajós”, queixou-se o cacique Gilson Tupinambá. “Daqui a pouco, se a gente quiser tomar banho ou pescar, vamos ter que pagar imposto”, ironizou.

Os indígenas também queriam discutir com o presidente a Ferrogrão, projeto de ferrovia que liga Sinop (MT) a Itaituba (PA) para escoar a produção agrícola de Mato Grosso até o Rio Tapajós. Questionam ainda projetos de crédito de carbono e de compensação financeira pela conservação da floresta – os indígenas consideram que, da forma como estão desenhados, esses projetos permitiriam a entrada de empresas e intermediários nos territórios. 

“O presidente Lula está negociando a nossa terra com países que não conhecem a nossa realidade”, bradou Alessandra Korap, liderança que representa os Munduruku na COP30. “Já chega de usar nossa imagem para dizer que estamos bem, se nosso corpo está contaminado de agrotóxico e mercúrio”, continuou Korap. O mercúrio, usado no garimpo ilegal de ouro, vai parar no leito dos rios, contamina os peixes e os indígenas que se alimentam deles, com efeitos devastadores sobre sua saúde.

A entrada foi liberada depois que representantes dos indígenas se reuniram com Ana Toni, diretora-executiva da COP30, com o embaixador André Corrêa do Lago, presidente da conferência, e as ministras Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima). “Eles têm preocupações muito fortes e muito legítimas e nos transmitiram dois documentos que nós recebemos formalmente e vamos procurar levar adiante”, disse Corrêa do Lago ao fim da reunião.

 

A COP30 é a conferência do clima com maior participação indígena nos espaços de circulação restrita. A Casa Civil providenciou o credenciamento de 360 indígenas, e o Itamaraty, de outros 140. “Desde quando se decidiu que a COP seria no Brasil, começamos a articular iniciativas para que esta edição fosse a maior da história em participação e protagonismo indígena”, disse à piauí Guajajara. “E não é só presença física, mas também a participação efetiva e qualificada, garantindo desde um espaço de acolhimento até programas de formação”, continuou.

Entre as iniciativas articuladas pelo governo está a Aldeia COP, um espaço de quase 15 mil m² sediado na Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA). O espaço está abrigando cerca de 3 mil indígenas, permitindo sua participação numa conferência que foi marcada pelos preços proibitivos de hospedagem cobrados por hotéis e plataformas de aluguel por temporada. A Aldeia COP conta ainda com local para serviço médico e refeitório. Espaços como ginásio, laboratórios e complexo de artes também servem de alojamento para os indígenas.

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) promoveu ainda um programa de capacitação para que indígenas atuem como líderes na política global. Com apoio do Instituto Rio Branco, o programa formou trinta indígenas e recebeu o nome de Kuntari Katu, uma expressão em nheengatu que significa “aquele que fala (para o povo e em nome do povo)”. “Foi um processo muito rico no qual os indígenas puderam se sentir participantes”, disse a ministra. Em parceria com a Apib, o MPI promoveu também encontros para definir quais lideranças seriam credenciadas para a Zona Azul. “A gente fez uma conta proporcional à população indígena de cada estado, para garantir a maior diversidade de povos, de regiões e todos os biomas presentes.” 

Guajajara teria se beneficiado de uma iniciativa parecida antes de ir à sua primeira conferência do clima, a COP15, realizada em 2009 em Copenhague. “Foi muito difícil chegar lá, primeiro porque era o meu primeiro contato com o frio extremo, saindo do calor extremo de Manaus direto para a Dinamarca”, disse a ministra. O tamanho do evento a deixou impressionada. “Estava o mundo inteiro ali, e eu não tinha a mínima noção de como era aquela estrutura. Fiquei tentando me inserir e ganhar um espacinho de três ou cinco minutos em alguma mesa para falar.” Foi uma experiência de muita surpresa e aprendizado, continuou Guajajara. “Naquele momento, entendi que precisava da presença indígena nesse debate climático.”

No ano seguinte, durante a COP16, realizada em Cancún, no México, a ativista indígena já estava mais à vontade. Naquele ano, organizações da sociedade civil criaram o antiprêmio Motosserra de Ouro, para denunciar figuras públicas que promovem políticas ou ações prejudiciais ao meio ambiente. Coube a Kátia Abreu, que era senadora pelo Tocantins e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), receber a distinção infame, entregue por Guajajara. “Foi um momento forte de atuação direta para mostrarmos o quanto é contraditório discutir o enfrentamento à mudança climática e ao mesmo tempo flexibilizar a legislação ambiental brasileira”, disse a ministra, sorrindo. “Acho que foi a primeira vez que eu apareci em rede nacional.”

 

A criação de novas terras indígenas é a principal reivindicação dos povos originários. É uma bandeira particularmente pertinente de se levantar nas conferências do clima, já que as terras indígenas são aquelas em que as florestas estão mais bem preservadas, num país que tem no desmatamento a principal fonte de emissão de gases do efeito estufa. Esses territórios perderam apenas 1% da vegetação nativa ao longo de trinta anos, enquanto a perda foi de 21% nas propriedades rurais, de acordo com um levantamento do Mapbiomas. “Os corpos indígenas são a principal barreira para barrar a crise climática e o desmatamento no Brasil”, disse à piauí a deputada federal Célia Xakriabá (Pol-MG).

Em 2023, o Congresso Nacional aprovou uma lei que institui o marco temporal, que determina que só seriam reconhecidas as terras que estivessem ocupadas pelos indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988. A medida foi um golpe duro para os povos originários, mas eles seguem determinados em sua luta. “Mesmo assim, a gente não paralisou os processos”, disse Guajajara. “Estamos nesse diálogo com o Ministério da Justiça para que assine novas portarias declaratórias e também com a Casa Civil para assinar os processos que já passaram por todas as suas etapas e estão no momento da homologação.” 

O presidente Lula citou a importância da demarcação de terras indígenas nos discursos que fez na Cúpula dos Líderes, na semana anterior à COP30, e na plenária de abertura da conferência, no dia 10. Mas não aproveitou os holofotes para anunciar a demarcação de novos territórios, frustrando a expectativa dos indígenas. Ele pretendia anunciar cerca de dez demarcações em Belém, assim como fez durante a Marcha das Mulheres Indígenas em agosto deste ano, quando anunciou a homologação das Terras Indígenas Pitaguary, Lagoa Encantada e Tremembé de Queimadas, no Ceará.

O anúncio acabou não acontecendo porque faltaram documentos para concluir o processo, de acordo com fontes ligadas à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ouvidas pela piauí, o que deixou Lula contrariado, conforme se ouve nos bastidores de Brasília e Belém. Mas há quem especule também que as novas terras indígenas não foram anunciadas para não contrariar os lobistas do agronegócio presentes em grande contingente em Belém.

Foi das águas do Rio Guará, por onde passou uma barqueata com mais de 150 embarcações realizada na quarta (12), que Lula recebeu um recado dos povos indígenas, vindo do cacique Raoni Metuktire. “Ele tem que nos respeitar. Se precisar puxar a orelha do presidente para ele me ouvir, vou fazer isso”, afirmou. Aos 90 anos e sem falar português, o cacique subiu a rampa do Palácio do Planalto de braços dados ao presidente eleito na cerimônia de posse. “A gente não quer guerra com o homem branco”, disse Raoni. “Queremos conversar, mas que também nos ouçam. O que queremos não é apenas harmonia entre os povos, é harmonia entre o homem e a natureza.”

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