A derrota
Ninguém poderá dizer que foi apenas um jogo de futebol. Ninguém conseguirá oferecer uma explicação inteiramente satisfatória. A dimensão épica do placar fez com que a partida contra a Alemanha fosse deslocada para o terreno do mito. Ela terá ressonâncias profundas sobre nosso imaginário coletivo. Durante um lapso de tempo, abriu-se uma cratera no chão e o Brasil foi tragado para dentro da terra. Parou de existir. Já não fazia qualquer sentido palavras como samba, ginga, jeitinho, magia, alegria, seleção, povo. Grandes vultos nacionais tiveram também suas realidades temporariamente suspensas: não havia Pelé, nem Garrincha, nem Romário, nem Carmen Miranda, nem Tom Jobim. Não havia mais Pedr’Álvares, Dom João VI, Vargas, nem os militares, toda a nossa mitologia sendo reduzida a um átimo de pó.
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Ninguém poderá dizer que foi apenas um jogo de futebol. Ninguém conseguirá oferecer uma explicação inteiramente satisfatória. A dimensão épica do placar fez com que a partida contra a Alemanha fosse deslocada para o terreno do mito. Ela terá ressonâncias profundas sobre nosso imaginário coletivo. Durante um lapso de tempo, abriu-se uma cratera no chão e o Brasil foi tragado para dentro da terra. Parou de existir. Já não fazia qualquer sentido palavras como samba, ginga, jeitinho, magia, alegria, seleção, povo. Grandes vultos nacionais tiveram também suas realidades temporariamente suspensas: não havia Pelé, nem Garrincha, nem Romário, nem Carmen Miranda, nem Tom Jobim. Não havia mais Pedr’Álvares, Dom João VI, Vargas, nem os militares, toda a nossa mitologia sendo reduzida a um átimo de pó.
Restava um território amorfo, sem história, mal ajambrado e perplexo. Ninguém mais entendia o que aquelas pessoas estavam fazendo, reunidas ali, com seus celulares em punho, sob imensos telões de LED e enjoativos painéis publicitários. Quase pude ver os alemães pararem de jogar, o jogo sendo interrompido, no momento do 5×0, por uma brutal falta de sentido, e tivesse isso realmente acontecido, ninguém teria estranhado. Sequer houve emoção – desconfio, com impulso de insanidade, que sequer houve derrota. O Brasil morreu sem agonizar, como se tivesse sido surpreendido por um infarto fulminante enquanto dormia. Houve um efeito de anacronismo parecido com o que vi na partida entre Santos e Barcelona: a Alemanha parecia uma equipe vinda do futuro, e o Brasil, um pesado e decadente time do passado – e o destino poupou Neymar de mais esse vexame. Culpar alguém pelo jogo de ontem seria como apontar os autores de um terremoto, de um desastre absolutamente anônimo, de dimensões não-humanas.
Foi importante que a derrota tenha sido aplicada pela distante Alemanha, um país que expressa, talvez melhor do que nenhum outro, a necessidade de conceber projetos coletivos e de realizá-los com seriedade. Tenho medo que uma dose exagerada de humor e de auto-ironia, junto com a incessante demanda por novos espetáculos, nos desvie muito rapidamente das possibilidades de reflexão que esse momento único proporcionou. Nossas entranhas estão expostas; é hora de encará-las. A transcendental derrota para a Alemanha representa o fim de uma Era. Com ela, saímos (semi) finalmente do século XX – com todos os mitos que lhe são caros. É significativo que tenha coincidido com o fim do período de euforia e bonança que marcou as duas últimas décadas, com o enfraquecimento da sensação de que o Brasil poderia ir na contramão do mundo, driblando feliz como um Neymar as adversidades de um Ocidente em profunda crise. Fomos arremessados para fora do sonho. Não vai ser na base do jeitinho; nem da simpatia ou da pura motivação. Não somos nem mais nem menos especiais do que qualquer outro povo. Temos uma chance única de remodelar nossa imagem, de reavaliar nosso lugar no mundo e calibrar nossas expectativas.
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