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Esta é a primeira reportagem de uma série sobre a Amazônia que a piauí publicará ao longo dos próximos meses. Resultado de dois anos de pesquisa e cinco meses de apuração diretamente na região Norte, Arrabalde narra a história de como a maior floresta tropical do planeta vem sendo percebida por aqueles que se relacionam com ela desde o século XVI até os dias de hoje.

JOÃO MOREIRA SALLES

 

Um grau de latitude separa Belém da linha do Equador. De dia, o sol fustiga a cabeça, os ombros, o rosto, os postes, as casas, os prédios, as calçadas, os carros, os ônibus. O sol fustiga tudo.

Numa manhã de dezembro de 2019, no bairro Castanheira, um segurança da Igreja Universal do Reino de Deus olhava os carros passarem pela via expressa. No alto da escadaria que leva ao templo, em meio às buzinas, à fumaça e à feiura, lá estava o homem em seu posto, sem nenhuma sombra a protegê-lo. Eram oito da manhã, fazia 36ºC e ele vestia camisa, gravata e terno pretos, com todos os botões do paletó fechados.

Temos visto isso, esse empréstimo disparatado de protocolos criados para outras culturas e outros climas. A incongruência da cena, contudo, não é apenas um verbete a mais no rol das nossas imitações malfeitas. Aquilo é impraticável. O segurança de terno preto debaixo do sol equatorial é viável por muito pouco tempo. Se permanecer ali toda a manhã, desmaia; se não for acudido, morre. O que significa duas coisas: que a paisagem natural já não é capaz de protegê-lo e que a paisagem que a substituiu, construída à custa de muito trabalho, não é aliada da vida.

Em 1848, dois naturalistas ingleses, Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace, desembarcaram em Belém. No livro que Bates publicaria sobre os seus onze anos na região, Um Naturalista no Rio Amazonas – considerado por Darwin a melhor obra de história natural até então surgida na Inglaterra –, ele anota: “Na manhã do dia 28 de maio chegamos ao nosso destino. O aspecto da cidade ao amanhecer era extremamente aprazível.” Pela primeira vez tinha os trópicos diante de si, mas, para surpresa do leitor contemporâneo, Bates não reclama do calor, pelo contrário: “O clima nunca se mostra seco demais, pois jamais decorrem três semanas consecutivas sem algumas pancadas de chuva.” Ele elogia o viço das folhagens e a atmosfera amena da cidade, qualidades que atribui “ao frescor e à sombra proporcionada por sua exuberante vegetação”.

Bates e Wallace logo deram com borboletas. Amarelas, azuis, multicolores, “em quantidades nunca vistas por nós”. Era impossível percorrer os caminhos à beira-rio sem que bandos delas levantassem voo, num espetáculo tão espantoso que Bates achou necessário informar: “O leitor terá uma ideia da diversidade das borboletas se eu disser que podem ser encontradas cerca de setecentas espécies delas numa caminhada de uma hora nos arredores da cidade, ao passo que nas Ilhas Britânicas o número total conhecido não excede 66, e em toda a Europa, não vai além de 321.”

Oitenta anos depois, o escritor Mário de Andrade também esteve na cidade. Em 20 de maio de 1927, ele escreveu em seu diário de viagem: “O calor aqui está fantástico porém o paraense me falou que embora faça mesmo bastante calor no Pará o dia de hoje está excepcional.” O jeito era entrar no banho “de cinco em cinco minutos”. Apesar do calorão que lhe batia na cabeça “que nem um remo”, Mário gostou da cidade e foi se entusiasmando à medida que andava pelas ruas e provava as comidas. Ficou até “lustroso de felicidade”.

A Belém de Mário é muito mais urbana que a de Bates. Ali pouco se fala de flora e ainda menos de fauna, salvo a aprisionada no zoológico do Museu Goeldi. Mário admite ter mais prazer em admirar a natureza do que em descrevê-la, o que ajuda a compreender o sabor essencialmente citadino de suas anotações. Mas é possível que essa sua Belém não seja fruto apenas da sensibilidade de um modernista mais à vontade no concreto das cidades. Em parte, a explicação para que essa cidade tenha se descolado de seu meio natural pode ser encontrada não no diário do escritor paulista, mas nas observações do viajante inglês de meados do século XIX que o precedeu.

Onze anos depois de chegar a Belém e a poucos dias de retornar à Inglaterra, Henry Bates escreveu: “Ao andar pelas matas das redondezas – minhas velhas conhecidas –, notei que tinham sofrido muitas mudanças […] O espesso tapete de plantas rasteiras, arbustos e trepadeiras que em outros tempos – quando os arredores da cidade ainda não tinham sido mutilados pelo machado e a enxada […] – havia sido quase todo arrancado […] As majestosas árvores da floresta tinham sido cortadas, e os restos de seus troncos semicarbonizados projetavam-se do meio das cinzas, das poças de lama e dos montes de galhos partidos.” Desolado, Bates concluiu: “Os naturalistas, a partir de agora, terão de ir muito mais longe da cidade para encontrar o soberbo cenário da selva virgem, que ficava tão perto em 1848; precisarão também trabalhar muito mais arduamente para reunir as grandes coleções que o sr. Wallace e eu conseguimos obter nos arredores do Pará.”

Em Viagens, a polonesa Olga Tokarczuk, Prêmio Nobel de Literatura em 2018, define as “coisas importantes” como “aquelas que são únicas e sobre as quais paira uma terrível ameaça de destruição”. Um artigo sobre a Amazônia bem poderia começar assim.

O sol que hoje nasce em Belém bate numa cidade que se separou de sua paisagem. De manhã cedo, a vista do alto de um prédio é de fogo sobre concreto e ferro. Por trás das ondas de calor que o asfalto refrata, surge a silhueta incerta dos espigões, centenas deles, espalhados por toda parte sem ordenamento urbanístico aparente. A cena é cinza, e nela os trópicos foram eliminados. Calhou de a cidade estar ali, poderia estar em outro lugar. A impressão é de que Belém já não sabe onde está.

“Uma cidade com cara de nada”, na expressão do fotógrafo Luiz Braga, que vem documentando sua terra natal há décadas. No plano temático, seu trabalho não se espalha, antes se adensa, para conhecer cada vez mais uma coisa só. Ele retorna, retorna e retorna aos mesmos lugares, como que seguindo a recomendação do explorador norte-americano John Burroughs: se quiser aprender algo novo, refaça o caminho que fez ontem. No passado, Braga fotografou a vida nos bairros ribeirinhos, com seus bares coloridos e paredes em que artistas populares pintavam a floresta. A cidade empurrou várias dessas comunidades para as periferias e muitas sucumbiram ao processo de degradação que marca a vida urbana brasileira. “Voltei a esses lugares e eles estavam bege.” Sumiram as cenas da mata.

Ainda assim, Belém é uma cidade amazônica, e pelas manhãs, no Mercado Ver-o-Peso, é possível assistir ao espetáculo da floresta que chega pela Baía do Guajará, trazido por embarcações que despejam suas mercadorias no cais: cupuaçu, uxi, taperebá, açaí, bacuri, murici, andiroba, tucunaré, pirarucu.

Não muito longe dali, num dos maiores supermercados da cidade, seria difícil encontrar a maioria desses produtos. As gôndolas centrais da seção de frutas terão maçãs, peras, morangos, tamarindos, romãs e pitaias, todas espécies exóticas; as amazônicas, com exceção da papaia e do abacaxi, não estão à vista. Dentre as muitas geleias, apenas duas de fruta nativa, a de goiaba e a de abacaxi. Para alcançar a castanha-do-pará, seria preciso esticar o braço e, dependendo da altura do interessado, ficar na ponta dos pés – o produto é estocado na prateleira mais alta da gôndola; à altura dos olhos, Fandangos, Ruffles, Cheetos e fileiras de amendoim japonês. Rente à boca do caixa, além de chicletes e aparelhos de barbear, amêndoas importadas dos Estados Unidos, nas variedades honey roasted e wasabi and soy sauce.

Ao abrir o frigobar de um dos maiores hotéis da cidade, o hóspede poderá encontrar suco de uva, Nescau, Coca-Cola, Red Bull, cerveja, vinho. Para não dizer que a floresta está ausente, haverá uma lata de guaraná Antarctica, embora ela não esteja ali para celebrar a maior biodiversidade do planeta, um complexo ecológico cuja abundância ainda ignorada começa a poucos quilômetros dali, nas ilhas florestadas do Guamá, rio que banha Belém.

O problema, claro, não é a Coca-Cola, a geleia de framboesa ou as peras trazidas do Chile, mas a ausência conspícua dos produtos nativos. É um sintoma de descompasso das pessoas em relação a seu entorno e da dificuldade que uma economia florestal enfrenta para superar o consumo de nicho e a produção de subsistência. Num encontro de jovens empreendedores ocorrido em novembro de 2019 no Sebrae de Belém, Hortência Maria Osaqui Floriano, proprietária de uma indústria de processamento de frutas nativas em Augusto Corrêa, município paraense com um dos menores IDHs do Brasil, falou dos obstáculos que precisa vencer para escoar sua produção de geleias de bacuri, cupuaçu, açaí e buriti: “Quando você coloca no armazém, é vendido como suvenir. Só turista compra. Não consigo vender pra supermercado porque não tem público. Tentei e o produto perdia a validade na prateleira. Escoo alguma coisa para os empórios frequentados por um público AA.” A empresária desistiu do esforço de vender localmente para se concentrar na prospecção de mercados no Sudeste do Brasil e no exterior – Suíça, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos.

“O outro lado do rio” – o lado dos ribeirinhos – “tem uma inteligência que não chega aqui, que não se incorpora ao conhecimento”, diz Luiz Braga num café em Belém. A floresta sumiu da vida das pessoas. Quando era menino, conta, toda casa burguesa na cidade tinha um quadro de Arthur Frazão. Eles “traziam a floresta para dentro das residências da elite. Na década de 1960, eu me lembro de ver esses quadros na casa dos amigos dos meus pais”. Naquelas imagens acadêmicas e muitas vezes ingênuas, o elemento essencial era a conexão com o entorno, a sensação de enraizamento que elas figuravam. “Hoje essas cenas desapareceram. Existe um deslocamento das pessoas que têm dinheiro em relação ao lugar onde elas estão.”

Não que representações da mata nas paredes de casa fossem uma garantia de relação mais harmoniosa com a floresta. A ausência de vínculos com o mundo natural não era novidade. Henry Walter Bates já identificara o fenômeno. Ao voltar para Belém depois de anos embrenhado na mata, foi cumulado de atenções por seus amigos: “Fiquei bastante surpreso com o grande apreço que as pessoas mais importantes da cidade deram aos trabalhos que eu havia realizado”, registrou. “A verdade é que o interior do país ainda é considerado ‘sertão’ – uma terra incógnita para a maior parte dos habitantes da orla marítima – e um homem que havia passado sete anos e meio explorando esse sertão com objetivos exclusivamente científicos não deixava de ser uma curiosidade.”

Transcorridos 160 anos desde essas observações, um ex-governador do Pará, Simão Jatene, não acha que muita coisa tenha mudado: “A Amazônia é periferia não só econômica, mas também de pensamento. O Brasil não se preocupou em produzir uma ideia sobre a floresta.” Nas palavras de Luiz Braga, a Amazônia é “o que se esquece do Brasil”. “É resto”, resume Jatene.

Resto também para boa parte de quem planta nela, cria boi nela, tira minério dela, mora nela. O homem de terno preto sob o sol do Equador é o retrato desse desconcerto, a figura de um impasse. Ele é o boi, a soja, o garimpo, o machado, a serraria, o modo como essas coisas ocuparam a floresta e substituíram uma paisagem por outra sem nunca pôr em questão a viabilidade da troca.

 

Luiz Gonzaga tem uma propriedade em Capitão Poço, município a cerca de 200 km de Belém. Ali ele planta uma árvore das florestas tropicais do Sudeste Asiático – a teca – cuja madeira é empregada na indústria moveleira. Antes ele se dedicava à atividade dominante na região, a pecuária, coisa que “dá pra fazer em qualquer lugar”, diz.

Em dezembro de 2004 sobreveio a seca – três anos consecutivos de estiagem – e “a safra da pecuária quebrou”. Gonzaga decidiu que não queria mais aquilo. Ou vendia a propriedade e voltava definitivamente para Araçatuba, no interior de São Paulo, sua cidade natal e onde ficara sua mulher, ou dava um novo destino à fazenda. Como gostava do Norte – “Eu trabalhava no Citibank em São Paulo e era muito infeliz” –, resolveu arriscar e virou silvicultor. Escolheu a teca, muito apreciada no exterior, para não depender do mercado doméstico. Quase toda a sua produção é exportada para a Índia.

Os bosques formados por fileiras e fileiras da espécie exótica estão sempre a poucas centenas de metros da Floresta Amazônica. A fazenda tem cerca de 55% de sua cobertura vegetal preservada, extensão equivalente a 1,3 mil campos de futebol. Gonzaga entra na caminhonete e, dez minutos depois, chega a uma área de tecas rente à floresta. O que as separa da selva é apenas a estrada de terra que o levou até lá.

O fazendeiro aponta para o bosque, que em breve estará maduro para o corte: “Esse talhão é um dos três mais produtivos do mundo”, informa. Em seguida, aponta para a floresta: “Por causa dela.” As matas nativas produzem chuva e controlam as pragas, tudo ali cresce numa velocidade difícil de ser replicada em outros lugares. A natureza trabalha bem para Luiz Gonzaga.

Na sua época de pecuarista, a floresta era um estorvo. Certo dia, em anos de seca, levou um agrônomo até um pasto. Embora lhe tivessem dito que a área havia sido limpa pouco tempo antes, encontrou-a coberta de mato. Gonzaga se virou para o empregado responsável pelo serviço: “Não roçou?” “Rocei, Seu Luiz, mas já sujou de novo”, o homem respondeu. Foi quando o agrônomo fez uma observação que Gonzaga nunca esqueceria: “Olha só a energia dessas plantas nativas em relação ao capim. Não tem competição possível.” A frase tinha o fulgor de um conceito. “Mudou tudo”, recorda-se Gonzaga. “Foi nessa hora que eu me virei para a floresta.” Seria parceiro da mata, não adversário dela. O gado era um intruso, não cabia ali.

Essa história ilustra apenas parcialmente o que aconteceu depois. Sim, Gonzaga trocou a pecuária – para a qual a floresta constitui um obstáculo – por uma atividade que é essencialmente o contrário: criar e recriar bosques. Contudo, foi buscar do outro lado do mundo a espécie arbórea que queria plantar. “É porque não tem espécie nativa domesticada, não tem pesquisa”, justifica. Grande parte da riqueza botânica da Amazônia ainda é desconhecida. “Não tem Embrapa para a economia florestal”, ele diz, referindo-se à empresa pública de pesquisa sem a qual o agronegócio brasileiro não seria o que é hoje.

Gonzaga tem razão, ao menos em parte. Por exemplo, a cultura da soja no Brasil resulta de um projeto de Estado. A planta não foi simplesmente trazida das regiões temperadas, de onde é nativa, e depois jogada no solo tropical para ver se crescia. Foi necessário ciência, trabalho e apoio governamental para adaptá-la ao novo clima. O agronegócio contou aqui com as pesquisas da Embrapa, o crédito subsidiado dos bancos públicos e o zelo especial dos governantes pelo setor agrícola – em suma, quatro décadas de interesse público e privado tiraram da mediocridade uma cadeia produtiva que já existia. O país é hoje o maior produtor mundial do grão. O sucesso da agricultura tropical no país pode ser considerado o nosso momento Homem na Lua.

Ocorre que, em aparente contradição com o que afirmou Gonzaga, existe, sim, uma Embrapa para a floresta. Foi criada em 1978 e leva, inclusive, o nome de Embrapa Florestas. É revelador, contudo, que sua sede fique em Colombo, município que não se localiza em nenhum estado amazônico, mas no Paraná, a 2,2 mil km de distância da primeira mancha de floresta equatorial. A unidade nasceu com a missão de aprimorar a silvicultura brasileira. Leia-se: fornecer subsídios técnicos para fortalecer a indústria madeireira e de papel e celulose. Para tanto, suas equipes se dedicaram a estudar a fundo espécies como o eucalipto e o pinheiro, nenhuma delas amazônica.

Milton Kanashiro se descreve como “um engenheiro florestal que vê as árvores por dentro”. Formado em 1978 pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Esalq, unidade de excelência da USP para estudos agronômicos, Kanashiro chegou a Belém no ano seguinte. Contratado como pesquisador da Embrapa, vinha para se juntar a um grupo que investigava formas de desenvolver uma economia florestal, ou seja, de gerar riqueza a partir dos produtos da mata. Tratava-se de plantar florestas com espécies nativas e exóticas para a exploração sustentável da madeira. No entanto, diz Kanashiro, “as empresas já procuravam o instituto com o intuito de plantar eucalipto ou pinus [pinheiro]”, duas árvores sobejamente estudadas e sobre as quais já existia um vasto cabedal de conhecimento. As pesquisas em torno das nativas não encontravam acolhida e, portanto, não prosperavam. Era uma questão mais cultural do que propriamente econômica, sugere Kanashiro, dando como exemplo a castanheira-do-pará, que, embora tenha uma taxa de crescimento equivalente à das espécies exóticas, nunca despertou o interesse da indústria madeireira. O reflorestamento com espécies nativas não vingou.

“Quando a gente fala de negócios consolidados da floresta, para os quais existe uma base de conhecimento sólido e um esforço grande em organizar cadeias de valor, isso só existe em relação a florestas homogêneas, plantadas”, explica o engenheiro agrônomo e geneticista Maurício Antônio Lopes, ex-presidente da Embrapa entre 2012 e 2018. É o que se vê na Finlândia, uma potência da indústria florestal. “São paradigmas muito diferentes dos que temos aqui. A nossa floresta é muito mais complexa do que a deles, o nosso solo é outro. Não que no Brasil inexista pesquisa relacionada ao manejo florestal, a ciclos hídricos, à biodiversidade. Existe, e muita. O que falta é o lado indutor do Estado.”

Kanashiro comanda um portfólio florestal na Embrapa Amazônia Oriental, sediada em Belém. Seu trabalho consiste em estudar processos de recuperação de áreas degradadas e investigar o potencial econômico de florestas naturais e florestas plantadas. “Eu estou aqui porque o Estado brasileiro investiu em pesquisa florestal”, diz. O problema é que o desenvolvimento de uma economia da floresta é imensamente complexo e o esforço do país nesse campo sofre de dois males: é modesto e é recente. Kanashiro comenta: “Eu sou formado em pinus pela Esalq. Quando cheguei a Belém, me dei conta de que nada do que eu conhecia de ecologia das árvores e do modo de reprodução delas me servia aqui. Veja a araucária, o pinheiro do Sul do Brasil: para se reproduzir, ela precisa do macho e da fêmea. Aqui na Amazônia muitas espécies têm outro sistema de reprodução. Sugerir um programa de manejo sustentável sem saber disso pode causar um desastre.”

Estudos mais sistemáticos sobre a ecologia das espécies amazônicas datam dos anos 1990. É quase ontem, de modo que ainda estamos muito longe de saber o que a floresta encerra. Estima-se que existam 16 mil espécies de árvores na Amazônia – alguns pesquisadores chegam a falar em 30 mil. “Sendo otimista, a gente conhece no máximo trezentas espécies.” Que chance a mata poderia ter?

O pai de Luiz Gonzaga veio de São Paulo para o Pará em 1964. Estava atrás de terras para explorar e, como todo mundo na época, nos anos seguintes receberia financiamento do Estado para abrir a floresta. Uma terra sem homens para homens sem terra, dizia a propaganda oficial. O programa, financiado pela Sudam, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, concedia empréstimos a juros subsidiados a quem desmatasse o bioma com o intuito de ocupá-lo.

“Ninguém sabia nada de floresta”, diz Luiz Gonzaga. “A pessoa vinha até aqui a cavalo, avançando pelos igarapés porque não tinha estrada. Meu pai nos trouxe com ele, éramos meninos pequenos. E só aqui ele se deu conta de que o cavalo ia morrer. Não existia capim no meio da floresta. Durante três dias o cavalo comeu banana.” É uma história típica da grande onda migratória dos anos 1960, 1970 e 1980. Centenas de milhares vieram para a Amazônia sem ter noção do que ela era.

Cada migrante trazia dentro de si a sua paisagem de origem e, tão logo chegava, arregaçava as mangas e tratava de recriá-la no novo território. As bonitas varandas das fazendas do Pará geralmente dão vista para colinas, pastos e plantações. No alto das colinas, algumas árvores; nas terras planas, a lavoura; nas encostas dos morros, o gado branco. Para o pesquisador e engenheiro agrônomo Adalberto Veríssimo, essas varandas são a realização de um projeto bem-sucedido de metamorfose. Depois de uma vida de trabalho, o colono tem finalmente diante de si o mundo que via quando era jovem: uma natureza organizada, construída, em tudo oposta à desordem inculta da floresta.

 

Em sua biografia do naturalista alemão Alexander von Humboldt, A Invenção da Natureza, a historiadora Andrea Wulf observa que no século XVIII ideias de perfectibilidade da natureza dominavam o pensamento ocidental. Era preciso aperfeiçoá-la, expurgá-la do que fosse confusão. Campos cultivados refletiam a civilização, enquanto matas densas representavam o que ainda escapava à empresa humana. Nada encarnava tão bem esse descontrole quanto as florestas do Novo Mundo, “uma ‘selva desolada’ que tinha de ser conquistada”, escreve Wulf.

Euclides da Cunha viajou pela Amazônia no início do século XX, chefiando a missão incumbida de demarcar os limites territoriais entre o Brasil e o Peru na região do Rio Purus. O título do livro que escreveu sobre o ano que passou na região – À Margem da História, publicado postumamente – sugere que as ideias setecentistas permaneciam vivas em 1905: a floresta continuava a ser um lugar sem passado, virgem de acontecimentos e à espera de quem lhe desse destino.

Nas três primeiras páginas de seu relato, Euclides emprega palavras como desapontamento (o Rio Amazonas), monotonia (a paisagem), vazios (os horizontes), desordem (a natureza), imperfeita (a flora), monstruosa (a fauna), paleozoicos (os anfíbios), desprezível (um pássaro), incompleta (a natureza). “A impressão dominante que tive”, escreveu, “é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente.” Não apenas impertinente, mas também indesejado, que é a sina de todos os intrusos: “Aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é uma adversária do homem.”

A floresta não é mesmo hospitaleira ao homem que chega de fora. Até os naturalistas reconhecem a dificuldade. Henry Bates, tão à vontade nas matas a ponto de andar descalço por elas, escreve sobre a “medonha solidão” da selva. Tudo soa primitivo, tudo assusta. “Pela manhã e ao entardecer, os uivos dos macacos compõem uma arrepiante algazarra, tornando difícil para quem os escuta conservar a animação do espírito”, diz ele. “A sensação de inóspita solitude que a selva forçosamente dá é decuplicada por essa horrenda gritaria.”

Humboldt, talvez o mais extraordinário explorador da Amazônia, exemplo para todos os que vieram depois dele, maravilhou-se desde o primeiro instante em que pôs os pés na floresta. Esse prussiano festejado por todas as cortes europeias e recebido com honras na Casa Branca de Thomas Jefferson nunca foi tão feliz quanto em seus anos nos trópicos. Viera para a atual Venezuela na companhia de um botânico francês e, em carta ao irmão, escreveu sobre o primeiro contato dos dois com a flora e a fauna locais: “Corremos de um lado para o outro feito bobos.” Era tanta vida, contou, que seu amigo, geralmente circunspecto, declarara que “enlouqueceria se as maravilhas não acabassem logo”.

Tudo crescia, se espichava, alçava voo, deglutia, procriava, apodrecia, dava bote, mordia, picava, feria, interligava-se. Nesse mundo de potência vital, “o homem não é nada” – a mesma ideia que será explorada por Euclides cem anos depois, embora para Humboldt não se trate de um lamento, mas da afirmação de um espanto admirado.

O relato inaugural do desajuste entre a floresta e os forasteiros foi escrito por um dominicano, frei Gaspar de Carvajal, integrante do que a história reconhece como a primeira travessia do Rio Amazonas por europeus. Sob o comando do explorador Francisco de Orellana, o grupo consistia no padre e 57 soldados. Iniciada em 1541, a viagem desde a nascente peruana até o deságue no Atlântico levaria oito meses. Foi um inferno.

A cada dobra dos rios, os espanhóis eram atacados por indígenas que apareciam “por água e por terra” para lhes fazer a “crua guerra”, a ponto de os bergantins em que navegavam ganharem um aspecto de “porco-espinho”. Por mais que matassem os inimigos e destruíssem impiedosamente suas aldeias, “todos os dias os índios se reformavam e refaziam”, tornando a atacar. A guerra, contudo, era apenas um dos problemas, e talvez não o maior deles. Como dizem as passagens mais marcantes do relato de Carvajal, os piores tormentos da expedição foram obra de outro inimigo: a fome.

Lá estavam eles, em meio à maior concentração de vida do planeta – uma em cada dez espécies conhecidas no mundo vive na Floresta Amazônica –, mas incapazes de ler a floresta. Numa transecção de 150 metros de um pequeno igarapé são encontradas cinquenta espécies de peixe, o equivalente a todas as espécies da Dinamarca. Aproximadamente 20% da fauna planetária está na Amazônia, e são tantas e tão variadas as espécies de árvores que, segundo estudo publicado no periódico Scientific Reports, três séculos de trabalho não foram suficientes para catalogá-las todas. Para azar de Carvajal e seus companheiros, nada dessa abundância de nutrientes se oferecia – nem se oferece – à vista destreinada. Não estamos nas savanas africanas nem nos prados da Europa ou da América do Norte.

Apenas iniciada a viagem e os espanhóis se viram numa encruzilhada, sem saber se deviam seguir adiante ou voltar atrás. Decidiram avançar, certos de que logo poderiam pilhar alguma aldeia indígena a jusante do rio. Erraram no cálculo. Nem naquele dia nem no seguinte encontraram comida ou sinal de povoado. Carvajal anota que, àquela altura, estavam verdadeiramente em perigo de morrer da “grande fome” que padeciam, tanto que, diante da tripulação reunida no convés, ele houve por bem rezar uma missa para encomendar a Deus “nossas pessoas e vidas”, embora suplicando que Ele os “tirasse de tal perdição”.

Frei Carvajal detalha os esforços para enganar o estômago: “À falta de outros mantimentos […] chegamos a tal extremo que só comíamos couros, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas, de maneira que era tal a nossa fraqueza, que não nos podíamos ter em pé. Uns de gatinhas, outros arrimados a bordões, meteram-se pelas montanhas em busca de raízes comestíveis, e houve alguns que comeram algumas ervas desconhecidas, ficando às portas da morte, pois estavam como loucos e não tinham miolo; mas como Nosso Senhor era servido que continuássemos a nossa viagem, nenhum morreu.” (Sete morreriam mais adiante, vítimas da “fome passada”.)

Foi na altura do Rio Nhamundá, na divisa dos atuais estados do Amazonas e do Pará, que frei Carvajal entrou para a história. O nome do maior rio do mundo teria origem no que ele escreveu em seguida: “[…] e foi servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia, víssemos alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas. Aqui demos de chofre na boa terra e senhorio das amazonas.”

Os nativos, como de hábito, saíram no encalço dos europeus, os quais logo notaram que os novos adversários se mostravam especialmente ferozes e encarniçados. “Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira”, explica Carvajal. “Hão de saber que eles são súditos e tributários das amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se defendiam.”

Cada amazona guerreava como dez índios. Muito altas e alvas, tinham cabelos compridos que enrolavam em tranças na cabeça. “São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos.” O dominicano não afirma que essas adversárias destemidas eram as amazonas da mitologia grega. Pode ter empregado o vocábulo apenas como analogia – não se sabe ao certo o que ele viu nas margens do Nhamundá. Os espanhóis haviam sido advertidos da existência de uma tribo de índias guerreiras antes mesmo da refrega famosa, e talvez estivessem impressionados pela sugestão de que poderiam encontrar mulheres parecidas com aquelas de que fala Homero. Não se descarta a hipótese de que, no fragor da batalha e condicionado por seu repertório cognitivo de europeu, o dominicano tenha tomado homens amazônidas por mulheres mitológicas.

Assim sendo, a região onde se encontra a maior floresta tropical do mundo foi batizada com um nome que, tudo indica, resultou de uma ilusão de ótica ou de uma interpretação equivocada – não importa se de Carvajal ou dos que tomaram pelo valor de face suas referências a supostas amazonas. Essencial é que, desde o primeiro momento, esteve aí a dificuldade que iria amaldiçoar a floresta, nessa incapacidade do forasteiro de vê-la em termos próprios, tal como ela é, não como ele queria que fosse.

Não deixa de ser uma espécie de abuso metafórico o que aconteceu na batalha seguinte à das amazonas, em que nenhum espanhol se feriu salvo o próprio Carvajal. Quem conta é ele: “E de toda essa gente só a mim feriram, que me deram um flechaço num olho, que passou a flecha para o outro lado. Desta ferida perdi um olho.” Caolho, na última perna da viagem o dominicano de Estremadura olha para as margens do atual Rio Amazonas e vê o próprio mundo: “É terra temperada, onde se colherá muito trigo e se darão todas as árvores frutíferas. Além disso, está aparelhada para criar todo gado, porque há nelas muitas ervas como em nossa Espanha, tais como o orégão e cardos pintados e rajados, e outras muitas ervas boas. Os montes destas terras são azinhais e soverais com bolotas, porque nós as vimos, e carvalhais.”

O orégano é uma planta do Mediterrâneo, não existe na Amazônia, onde tampouco existem cardos europeus – há somente certos parentes distantes deles – e muito menos azinhais ou soverais. Como tantos outros depois dele, Carvajal viu o que queria ver. Mais precisamente, viu o que já conhecia.

“Essa é uma terra de mitos”, afirma com desgosto o ex-governador Simão Jatene. “Veja como passamos rápido de inferno verde a celeiro do mundo, de almoxarifado a santuário. São simplificações. Nada disso dá conta da nossa complexidade.” A Amazônia, segundo ele, foi sempre chamada a suprir as carências do Brasil. Projeta-se nela o que falta no resto do país: terra para gente excluída, pasto barato para boi que perdeu espaço no Sul, energia para os grandes polos econômicos e para pessoas que, em sua imensa maioria, vivem em outro lugar.

As forças que avançaram sobre a floresta nunca tentaram compreender a real vocação da mata, aquilo de que ela é capaz. O processo de ocupação da Amazônia pode ser entendido como um grande fracasso epistêmico.

 

Não é fácil descrever a floresta. De modo geral, os autores acabam adotando uma (ou mais de uma) das três estratégias narrativas seguintes: adjetivismo apoteótico, panteísmo mágico ou derrotismo fatalista.

Um exemplo da primeira modalidade vem da ensaísta e crítica literária argentina Beatriz Sarlo, que viajou para a Amazônia em fins da década de 1960. Diante da mata, sua sensibilidade habitualmente sóbria se excita e sucumbe ao excesso: “Sentimos, sem o confessar, uma coisa asquerosa, putrefacta, placentas vegetais, sementes a germinar, lagartas”, registra Sarlo no livro de memórias que publicou em 2014. Ela preparara o terreno na página anterior, citando, com admiração, o sociólogo e crítico francês Roger Caillois: “Embaixo, o feltro espesso de uma decomposição nauseabunda e prolífica. A morte, que aqui não é senão necrose, está presente, mas diluída numa química incessante. Ativa uma poluição geral que se confunde com uma fertilidade terrível.”

O panteísmo mágico é a linha dos que enxergam estratos invisíveis na floresta, como o poeta paraense Vicente Franz Cecim, citado pela portuguesa Alexandra Lucas Coelho em livro de 2015: “A Amazônia tem duas camadas de realidade. Uma é natural, visível, tangível. A outra é puramente imaginária, povoada por seres encantados do bem e do mal, que tanto protegem como punem.”

Cecim está em boa companhia. Em 11 de junho de 1927, Mário de Andrade anotou coisa parecida em seu diário: “Eu gosto desta solidão abundante do rio [Amazonas]. Nada me agrada mais do que, sozinho, olhar o rio no pleno dia deserto. É extraordinário como tudo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente uma volta do rio.”

Ótimos escritores não hesitam em adotar a terceira estratégia, admitindo que, diante da floresta, as palavras falham. É antes de tudo uma dificuldade de escala. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Euclides da Cunha se referiu à tentativa penosa de encontrar a linguagem correta para descrever aquele “excesso de céus por cima de um excesso de águas”.

No romance A Selva, clássico de 1930 ambientado durante o ciclo da borracha, Ferreira de Castro acompanha os pensamentos de seu protagonista, um jovem português desterrado pelo pai para o Pará. Do barco que o levará à sua nova morada, um seringal no interior da floresta, ele avista pela primeira vez a Baía de Marajó: “Depois de saber que toda aquela água não era pertença do oceano, mas sim o corpo da imensurável aranha hidrográfica da Amazônia, vinha-lhe o assombro da vastidão, do que pesa e esmaga pormenores e, pela sua grandeza, se recusa de começo à fria análise.”

Três anos antes, sempre em 1927, Mário de Andrade, também a bordo de um barco, havia procurado em vão as margens do rio: “Não se vê nada!”, exasperou-se. “A foz do Amazonas só é grandiosa no mapa; vendo, tudo é tamanho que não se pode ver.”

Resenhando um livro de Norman Mailer sobre vidas precárias no Oeste americano, a californiana Joan Didion observa que “a autêntica voz do Oeste […] se ouve o tempo todo na vida, mas raramente na literatura, e isso porque conhecer realmente o Oeste significa perder toda e qualquer vontade de colocá-lo no papel. O verdadeiro tema de A Canção do Carrasco é esse imenso vazio no centro da experiência do Oeste, um niilismo antitético não só em relação à literatura, mas à maioria das realizações humanas, um pavor tão próximo de zero que as vozes humanas se esgarçam, se dissipam, como as palavras de fumaça desenhadas pelos aeroplanos. Debaixo do que Mailer chama de ‘a vastidão azul do poderoso céu do Oeste americano’ […] quase nada faz diferença.” Algo parecido acontece com a floresta, mas pela razão oposta: em vez de perplexidade diante do vazio, perplexidade diante do excesso.

Descrever essa complexidade é um pouco como um gato tentando agarrar uma bola de basquete. Ela sempre escapará. Os relatos que mais nos aproximam da Amazônia são aqueles que prestam atenção ao singular, ao pequeno – a curva de um rio, certo crepúsculo, o comportamento de um animal, uma tempestade, a majestade de uma árvore. Passagens assim são mais comuns nos escritos dos naturalistas. O motivo é que seus autores foram para a floresta antes de tudo com o propósito de observar (as teorias viriam depois).

É o que faz Henry Walter Bates ao narrar como uma lagarta constrói o casulo dentro do qual se transformará em borboleta: “Quando inicia o seu trabalho, a lagarta prende o fio na ponta da folha escolhida e vai descendo, pendurada nele, até alcançar o comprimento desejado […] Sua feitura leva quatro dias. Terminado o casulo, a lagarta encerrada dentro dele se aquieta, sua pele se enruga e racha, e por fim só se vê lá dentro uma crisálida esguia grudada num dos lados do invólucro de seda.” Quatro dias de trabalho, quatro dias de atenção, um exercício de rigor tanto do inseto que tece quanto do naturalista que o observa.

É o que faz o entomologista Edward O. Wilson, professor em Harvard há cinco décadas, sozinho, à noite, na mata dos arredores de Manaus: “Vasculhei o chão com o facho da minha lanterna em busca de sinais de vida, e encontrei diamantes! A intervalos regulares, distantes alguns metros uns dos outros, pontos intensos de luz branca faiscavam a cada volta da lâmpada. Eram reflexos dos olhos de aranhas da família Lycosidae, à caça de insetos. Quando as aranhas se petrificavam ao ser iluminadas, permitindo que eu me aproximasse delas de joelhos e as estudasse quase no mesmo plano, podia discernir uma ampla variedade de espécies por tamanho, cor e penugem. Percebi como sabemos pouco sobre essas criaturas da floresta pluvial tropical, e como me daria satisfação passar meses, anos, o resto da minha vida neste lugar até conhecer todas as espécies pelo nome e todos os detalhes de suas vidas.”

Ou Mário de Andrade diante deste amanhecer: “Antes de qualquer prenúncio de claridade no céu, é o rio que principia a alvorada e se espreguiça num primeiro desejo de cor. Bate um frio nítido. No conchego morno e mais que úmido positivamente molhado do noturno, sai brisando de uma volta do rio um ar quase gélido que esperta. Esperta os primeiros cochilos das cores apenas, nenhuma ave por enquanto. Um aroma vago, quase só imaginado, porque os rios da Amazônia não têm perfume, um perfuminho encanta os ares e se sente que o dia vai sair por detrás do mato. E então o horizonte principia existindo.”

A pensadora francesa Simone Weil dizia que a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade. A floresta sempre precisou de atenção, mas poucos lhe dispensaram esse cuidado simples. Populações indígenas e tradicionais, sim. Naturalistas, exploradores e cientistas, sim. Alguns escritores, sim. Mas a grande massa de gente que, ao fim e ao cabo, colonizou a Amazônia, não.

 

TRECHO DO PRIMEIRO HINO DE TUCUMÃ

É fruta
É terra
É chão
Caminho de muita esperança
De luta
De ouro
Muita gente buscando
Um novo torrão.

Tradições e costumes diversos
Irmanando povos do Norte e do Sul
Onde as matas ainda são verdes
O ar é puro e saudável
E o céu azul…

 

Em setembro de 1978, o governo federal, por intermédio de seus órgãos fundiários – pelo menos quatro deles operavam na região, causando uma barafunda legal jamais resolvida –, abriu uma licitação para empresas interessadas em adquirir uma imensa extensão de terra nas margens da Rodovia PA-279 e construir ali toda a infraestrutura necessária à vida de quem se dispusesse a desbravar a  aquele pedaço do sudeste do Pará. Venceu a Colonizadora Andrade Gutierrez, Consag, empresa criada pela empreiteira mineira homônima com o propósito de implantar uma proposta de colonização que seria batizada de Projeto Tucumã.

Há mais de uma versão para esse nome. Os norte-americanos Marianne Schmink e Charles H. Wood, ela antropóloga, ele sociólogo, autores de um estudo notável sobre o projeto, afirmam tratar-se de uma homenagem a uma palmeira nativa da região. Já o advogado Luiz Otávio Montenegro Jorge, contratado em 1978 pela Andrade Gutierrez como contador, faz referência a uma história que circula na região e que não se confirmará: o nome seria uma alusão à província argentina de Tucumán, onde a filha de um dos fundadores da empreiteira teria se exilado durante a ditadura militar.

Marília Andrade – ou Lian Andrade, como ela prefere – e seu marido na época, Manoel Costa, militantes do PCdoB, haviam entrado para a resistência ao regime militar, mas nunca se exilaram. “Eu e o Mané queríamos nos juntar à guerrilha do Araguaia, mas eu estava grávida e o partido não permitiu”, ela conta durante uma conversa pela tela do computador. Está hospedada na casa do pai, em Belo Horizonte. Sua voz é suave e pausada, as palavras amolecidas pelo sotaque mineiro, numa prosódia que evoca a serenidade bonita e triste de um fim de tarde. “Acabaram nos mandando para Londrina. Ele foi trabalhar numa fábrica, no que a gente chamava de processo de proletarização, e eu dava aulas de alfabetização no Mobral. Era trabalho político de base.” Em 1970 conheceram Pedro Pomar, fundador do PCdoB, que se apresentou ao casal como Mário. Segundo as regras da clandestinidade daqueles tempos, marido e mulher levariam anos até conhecer a identidade do homem de quem se tornaram muito próximos. Lian Andrade passou a ser sua motorista.

Em 1975 Manoel Costa foi mandado para o Pará, de onde voltou entusiasmado. Trazia a missão de se empregar em algum projeto agropecuário para adquirir experiência no mundo rural, ambiente talhado para a ação política de um partido que tinha na reforma agrária uma de suas principais metas revolucionárias. Lian Andrade, sabendo que o pai comprara uma fazenda na região, sugeriu que o marido estagiasse lá. A experiência durou um mês e foi bem-sucedida. Ainda na clandestinidade, o casal regressou a Belo Horizonte para entregar o relatório do estágio. “Meu pai gostou muito e perguntou se não queríamos ajudá-lo a encontrar um bom projeto de colonização para a Amazônia.” Desde 1968 a Andrade Gutierrez vinha realizando grandes obras de infraestrutura na região e havia pressão do governo para que participasse de iniciativas mais duradouras de ocupação do território. A colonização fora aberta à iniciativa privada. “Meu pai nos disse: ‘Nós temos isenção de imposto, existem esses pedidos das autoridades, mas, ao contrário de vocês, nós engenheiros não temos talento para projetos que não sejam de estrada e hidrelétrica. Manoelzinho, você podia rodar a Amazônia, fazer um estudo sobre perspectivas de projeto, e aí a gente escolhe um.’” Enquanto a filha permanecia escondida em São Paulo, o genro partiu para um périplo amazônico que o levaria de Rondônia até o Leste do Pará. Seis meses depois, prestes a deixar a clandestinidade, trouxe de lá a proposta de um grande projeto de colonização social que viria a ser chamado de Tucumã. Para a empresa, seria um negócio; para o casal, um experimento social.

“Colonização era melhor do que plantation, né?”, diz Lian Andrade. Outros projetos de ocupação da Amazônia propunham transformar a floresta em pastos e monoculturas. O casal imaginava que a futura Tucumã poderia ser diferente. Sem as limitações da clandestinidade, os dois teriam ali a chance de testar seus ideais políticos, assentando homens pobres numa região extraordinariamente fértil da Amazônia. Como informam Schmink e Wood, os 400 mil hectares escolhidos por Manoel Costa para o plano, equivalentes a três vezes o município do Rio de Janeiro, abrangiam a maior extensão de terras roxas encontradas no Sul do Pará; não há solo mais fértil na Amazônia.

Tratava-se, sem dúvida, de uma operação comercial de porte. O pesado investimento inicial – a ser materializado em água, luz, escolas, hospitais, igreja, hotel, centros comunitários, clube esportivo, aeroporto, rodoviária, três agrovilas, 1 mil km de estradas – seria remunerado com a venda de 3 mil lotes, distribuídos em três seções ou glebas. Os lotes teriam tamanhos diferentes em função do uso; pelos padrões da região, seriam todas pequenas propriedades, e, para evitar a concentração de posses, ninguém poderia adquirir mais de um. Lotes relativamente pequenos, de 15 a 55 hectares – cada hectare equivale aproximadamente a um campo de futebol –, enlaçariam os centros urbanos e seriam dedicados à produção de hortaliças. Mais além, para lá dos limites das vilas, lotes um pouco maiores, de 55 a 280 hectares, seriam destinados a culturas variadas – café, seringueira, pimenta, cacau. Por fim, espalhadas ao longo do perímetro do projeto, haveria propriedades maiores para a criação de animais, sem previsão de pecuária de corte. “O projeto também estabelecia que uma parte da mata – 50 ou 60%, não lembro bem [50%, atestam os documentos] – fosse preservada como reserva florestal coletiva. Na época, isso era inédito”, diz Lian Andrade.

Fruto do trabalho de Manoel Costa, as diretrizes do projeto foram reunidas em três volumes. Andrade acompanhou o trabalho do marido, mas não participou ativamente da concepção dessas diretivas. Estava triste demais para isso. Na manhã de 17 de dezembro de 1976, em Belo Horizonte, os dois esperavam em casa por Pedro Pomar, com quem iriam de carro até Belém. Ao abrir o jornal, souberam que o amigo havia sido assassinado em São Paulo. “Fiquei uns três anos inutilizada”, revela. Faria uma primeira homenagem ao homem que aprendera a admirar ao batizar o projeto social no Pará: “Queria o nome de uma fruta da região. Ele era Pomar, né? Mas não encontrei nenhuma que soasse bem para um projeto de colonização, daí acabei escolhendo aquela palmeirinha que aparecia em algumas publicações do Museu Goeldi, o tucumã. O gozado é que em Tucumã não tem tucumã”, conta. (O nome de sua segunda filha, a cineasta Petra Costa, foi a outra homenagem que fez ao líder do PCdoB.)

 

A Andrade Gutierrez certamente tinha mais de um motivo para se lançar à empreitada. Havia o aspecto político: para uma empresa cujas receitas dependiam em boa parte de contratos com o Estado, participar da ocupação da Amazônia representava um gesto simpático ao poder, na medida em que se alinhava ao Programa de Integração Nacional, uma obsessão do pensamento militar que, a título de resguardar nossa soberania sobre a região, propunha um amplo programa de colonização da floresta por brasileiros recrutados em outras partes do país. O Sul do Pará era um território particularmente sensível para os militares. As disputas pela terra na região do Araguaia traziam consigo o fantasma do retorno da guerrilha que o governo combatera e dizimara poucos anos antes. Um projeto como o de Tucumã, com seu viés de socialização fundiária, era uma forma de enfrentar o problema e distender o ambiente. Além disso, do ponto de vista econômico poderia ser um bom negócio. A empreiteira conhecia bem o terreno; já construíra uma estrada na área e saberia transferir a experiência para o projeto de colonização.

O jornalista Lúcio Flávio Pinto, referência de todos que buscam se informar sobre a Amazônia, sustenta outra visão: o projeto Tucumã teria sido um biombo criado pela Andrade Gutierrez para extrair madeira das ricas florestas da região. “Talvez eu mesma tenha sugerido isso a ele”, diz Lian Andrade, “mas é apenas uma hipótese, não tenho nenhuma evidência disso. Acontece que, com aquela mentalidade de quem fazia hidrelétrica, eles começaram a construir muita estrada, mais de 500 km recortando todo o projeto – o que, aliás, foi um erro –, e talvez, nesse processo, tenham se dado conta de que havia muito mogno ali. O interesse pode ter surgido aos poucos.”

Boa parte dessas histórias ainda circula pela cidade de Tucumã. Velhos colonos oferecem suas versões e contraversões. O que ninguém contesta é o empenho de Lian Andrade e Manoel Costa em que o projeto fosse executado segundo as coordenadas sociais traçadas por eles. Todos os que viram Tucumã nascer atribuem ao casal a inspiração do projeto. “Eles foram os idealizadores”, diz o advogado Montenegro Jorge. Muitos se lembram das visitas que fizeram para acompanhar o andamento das obras. Eram acessíveis e bons ouvintes. O elemento ideológico – a ideia de uma comunidade de pequenos agricultores nascida dos sonhos igualitários de dois militantes de esquerda – foi um vetor da criação de Tucumã tão determinante quanto a motivação política e econômica.

A company town que surgia no meio da selva teria a forma de uma borboleta. Era o que determinava o projeto urbanístico escolhido pela empresa colonizadora, que, segundo Montenegro Jorge, fora buscá-lo entre as propostas finalistas para a construção de Brasília. Em ruas planejadas, as residências seguiriam padrões arquitetônicos específicos – seriam todas de madeira, por exemplo –, formando um conjunto harmonioso.

No dia 29 de agosto de 1981, data que ele não esquece, Valdir Rostirolla chegou a Tucumã. Tinha 30 anos e levara três dias e três noites para vir de sua cidade natal, Getúlio Vargas, no Rio Grande do Sul, até o empreendimento que o atraíra para o sudeste do Pará. Seu impulso era igual ao dos milhares de colonos pobres de toda parte do país que desde a década de 1960 haviam tomado o mesmo rumo. “Terra lá no Sul é cara. Quem não tem condições vem pro Norte.” Não conhecia nada da Amazônia. “Vim pra cá aventurando”, ele diz.

A promessa de Tucumã era grande: um projeto de colonização dirigido a gente modesta como ele, guiado por princípios de justiça social caros a seus dois idealizadores e implementado por uma empresa de reconhecida capacidade de gestão, embora sem experiência em execuções dessa natureza.

Era essa a utopia que levara Valdir Rostirolla ao Pará. Seu pouso na primeira noite que passou em Tucumã foi a sala de reuniões da Andrade Gutierrez. Desde o início, a empresa visou colonos sulistas como ele, contratando corretores para circular pelas cidades do Sul do Brasil e promover o slogan Vida nova no Sul do Pará.

A empresa sabia que nem todas as pobrezas eram iguais no país. Pequenos agricultores do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina ou de São Paulo podiam vender os respectivos palmos de chão e, com o dinheiro, comprar lotes bem maiores no Norte. Paraenses não tinham esse luxo. O custo de erguer Tucumã no meio da floresta precisava ser repassado e, assim, quando se foi atrás do colono do Sul, buscaram-se duas características: tradição agrícola e algum capital para investir.

“Claro que nós gostaríamos que o projeto fosse ocupado por colonos da região, mas quem iria financiar?”, explica Lian Andrade. Àquela altura, abril de 1980, as tensões entre a empreiteira e o casal começavam a se acirrar. Eles haviam dedicado os três anos anteriores à elaboração do projeto, mas agora, chegada a hora de implementá-lo, seriam impedidos de assumir a liderança. “‘Nessa empresa não se aceita que projetos sejam dirigidos por não engenheiros’, esse era o argumento”, ela conta. O casal pediu demissão: “Nós não vamos nos subordinar à direção de engenheiros”, responderam. Voltaram para o Sul, onde se engajaram nos movimentos em prol da redemocratização.

 

Valdir Rostirolla chegou ao Pará poucos meses depois de Lian Andrade e Manoel Costa deixarem o projeto. Vinha na companhia de outros dezesseis colonos e o que trazia no bolso bastava apenas para dar entrada no lote. Ocupou sua nova propriedade, olhou em torno e viu que tudo era floresta. Começou imediatamente a trabalhar. “Dei sorte”, conta, “logo encontrei mogno. Fui dos primeiros a chegar, ocupei o lote antes de a Andrade Gutierrez ter tido tempo de abrir a terra e ficar com as árvores. Cortei os mognos, só com seis deles paguei tudo e ainda sobrou dinheiro. Aí, desmatei.”

Foi o início da próspera aventura amazônica de Valdir Rostirolla. Tendo limpado o seu lote, começou a plantar arroz. “Saca subia dia a dia, milho também, tudo por causa do garimpo. Superfaturei muito”, diz, usando um verbo que repetiria com naturalidade durante a conversa, dando a entender que a prática não só era corrente – era também o que se esperava de quem largara o Sul para apostar tudo na Amazônia.

A Colonizadora Andrade Gutierrez não previa garimpo dentro dos limites de Tucumã. A atividade feria as regras do projeto. Para evitar invasões de madeireiros, grileiros e garimpeiros, a empresa passou a controlar o acesso às suas terras, erguendo para tanto uma barreira física na entrada de Tucumã: duas toras de madeira atravessadas por um correntão, obstáculo que logo ganharia o nome de “gurita da Andrade Gutierrez”, corruptela de “guarita”. Quem vinha pela Rodovia PA-279 era obrigado a se identificar e, conferidas as boas intenções, ganhava permissão para seguir adiante. O arranjo era pouco usual: uma empresa privada controlava quem podia ou não circular por uma estrada pública. A Andrade Gutierrez alegava que, como havia construído parte da rodovia e até então não recebera do governo, a obra ainda não passara para o domínio público.

Os garimpeiros deram de ombros e simplesmente contornaram a guarita, instalando-se à beira de um igarapé. Valdir Rostirolla chegou a Tucumã um mês depois dessa invasão. Ao ocupar seu lote de 28 hectares, já tinha a quem vender tudo o que produzisse. “Depois do arroz e do milho, começou a correr a história de que a carne de boi estava com hormônio e que se o garimpeiro comesse ia nascer peito. Eles pararam de comer. Eu tinha suíno. Superfaturei suíno.”

Enquanto Rostirolla prosperava, técnicos agrícolas da Consag tentavam estimular os colonos a cultivar espécies pesquisadas nos laboratórios da empresa. O café até aquele momento era um fracasso, já que não fora encontrada nenhuma variedade adaptável à região, o que só aconteceria dali a uns anos. A pimenta, o guaraná e a seringueira também deram com os burros n’água; os colonos sulistas não as conheciam e tinham dificuldade em manejá-las. Produziam pouco e vendiam menos ainda, pois não havia mercado naquele ermo para absorver a safra.

Laudi José Witeck, um dos pioneiros da região, conta que os parentes vinham visitar, viam que a casa não melhorara desde a última visita e decidiam que não era o caso de trocar o Sul pelo Pará. “E aí vem a pobreza”, lembra, referindo-se às consequências de lotes vazios, força de trabalho minguada e pouco dinamismo econômico. A saída foi o garimpo. O homem que tinha vindo para cultivar a terra desistia de ser agricultor para se tornar motorista ou mecânico de “espanta-cão”, um jipe movido a diesel do qual se arranca parte da lataria para facilitar a entrada na floresta. De pequeno produtor, passava a empregado. “Como o preço do ouro nessa época era bom, o cara ganhava mais puxando óleo do que plantando”, explica Witeck. “Então, virou mão de obra do garimpo e esqueceu de ser colono.”

A atividade ilegal crescia e gerava mais renda do que as iniciativas previstas no plano de desenvolvimento da Andrade Gutierrez. Segundo Lian Andrade, parte dessa atividade era estimulada pelas forças de segurança. Num e-mail em que traça uma linha do tempo de suas atividades no Pará, ela escreveu: “1981: minha primeira ida a Tucumã, em obras, acampamento; assisto nesse julho helicópteros cheios de soldados e PF para obrigar a empresa AG a liberar o movimento dos garimpeiros.”

Em meados da década de 1980, um dos garimpos no interior do projeto, o do Cuca, só não era mais famoso do que Serra Pelada. O ouro atraiu miseráveis de todo o país, e eles começaram a se aglomerar do lado de fora da guarita da Andrade Gutierrez. “Eram 3 km de barracas a partir da guarita”, lembra Montenegro Jorge, uma população formada por nordestinos pobres, paraenses sem recursos, gente que não podia passar para dentro por falta de dinheiro.

Por exigência dos órgãos fundiários, a empreiteira separara 10% dos lotes para distribuir sem custo aos colonos mais pobres. A promessa de terra gratuita, aliada à chance de enriquecer com o ouro, fez com que um ajuntamento de barracas surgisse espontaneamente às portas do Projeto Tucumã. Forjado pela anarquia e a informalidade, esse acampamento logo ganhou o nome de Ourilândia do Norte.

“Quem ficou de fora da corrente era paraense, maranhense”, diz Witeck. Naturalmente excluídos de Tucumã, eles fizeram Ourilândia. A lembrança que tem do povoado nascido do improviso é vívida: “Cabarés de um lado da rua e farmácias do outro.” Ele ri. “Tinha mil e duzentas raparigas aqui. Era tudo rancho de palha de babaçu, e, em Tucumã, casa boa. Elitizado. Quem quisesse fazer comércio lá passava por uma sabatina, eles avaliavam se tinha perfil para aquele tipo de investimento. Do lado de cá, não, bastava botar uma folha de babaçu por cima de uma lona preta e começar a vender.”

“Tucumã só tinha três mulheres”, conta Valdir Rostirolla: “A Inezita do açougue, a Rosilena da Emater e a Benvinda da subprefeitura. Pra namorar, o pessoal da Andrade Gutierrez tinha que ir pra Ourilândia. Ninguém entrava em Tucumã se não tivesse contrato de compra e venda. Os seguranças na guarita, com a ajuda da Polícia Federal, não deixavam.”

O mecânico industrial catarinense João Roberto da Silva tinha vindo do Sul com a intenção de fabricar os martelos empregados no garimpo para quebrar pedras. Sem permissão para entrar, como tantos outros, imprensou-se do lado de fora da guarita. Empreendedor, logo encontrou um jeito de contornar o problema: “A gente passava por cima, de avião.” Silva fretava um monomotor, saltava a barreira e pousava numa das muitas pistas clandestinas que começavam a se espalhar por Tucumã. Por falta de martelo, seus clientes do garimpo Babaçu, à beira do Rio Maria, nunca deixaram de trabalhar.

Amazônidas e nordestinos continuavam a ser preteridos pela empresa colonizadora. Schmink e Wood mostram que “empresários locais foram rejeitados em favor de sulistas convidados pela companhia para administrar o hospital, o hotel e outros negócios. Empresários de Xinguara, Rio Maria e Redenção [municípios paraenses] foram convidados a se mudar para o projeto, porém muitos não conseguiram bancar o alto custo de um lote em Tucumã, bem como as taxas de licenciamento cobradas pela empresa”.

Os problemas se acumulavam, e em Belo Horizonte Lian Andrade ouviu do pai que a Andrade Gutierrez pensava em desistir de Tucumã e devolver as terras ao Exército. Era novembro de 1982, fazia menos de dois anos que ela voltara do Pará. Omitindo do pai que estava grávida – sua segunda filha nasceria no ano seguinte, na capital mineira –, pediu-lhe que a mandasse de novo para lá. Era uma última tentativa de salvar o projeto. Amigos seus de militância, “médicos humanitários”, haviam se mudado para Tucumã, acreditando no experimento social concebido por ela e o marido. “Como é que trouxeram a gente pra cá e agora nos deixam?”, questionavam.

Sua segunda temporada paraense duraria quase dois anos, um período difícil durante o qual se separaria do marido – Manoel Costa entraria para a vida político-partidária, elegendo-se deputado federal pelo PMDB de Minas Gerais em 1983. De volta a Tucumã, Lian Andrade agora assumia o cargo de coordenadora do projeto, com autonomia para tomar decisões administrativas. “Assim que cheguei, soube que no garimpo do Cuca torturavam prostituta, elas eram obrigadas a se ajoelhar no milho. Minha primeira medida foi acabar com isso”, conta. “A segunda foi proibir a Polícia Federal de entrar armada no restaurante coletivo, e a terceira foi criar um bairro para oferecer lotes de graça para o pessoal do lado de fora da guarita.” A quarta medida foi fechar a serraria – segundo diz, havia uma só. “Ninguém tira mais uma tora daqui”, ordenou. Foram quinze meses de embates com garimpeiros e madeireiros ilegais, comerciantes que se recusavam a pagar pela energia que o projeto lhes fornecia, policiais que aterrorizavam qualquer um sem vínculo com a empresa colonizadora. Por fim, em março de 1984, certa de ter evitado que a empreiteira entregasse Tucumã ao Exército, Lian Andrade deixou o projeto em definitivo.

 

Por volta de 1985, a Colonizadora Andrade Gutierrez começara a virar o jogo da produção. Os técnicos agrícolas da empresa haviam aprendido com os insucessos iniciais e agora já compreendiam melhor as características regionais do solo e do clima. Segundo Schmink e Wood, a produtividade de certas variedades de café foi tão alta que superou em três vezes a média nacional por hectare. Cacau, pimenta-do-reino, seringueira e diversas frutas apresentaram resultados promissores.

Era tarde. Um ano antes, espremida às portas do projeto, a população de Ourilândia já triplicara em relação à de Tucumã. Dez mil pessoas de um lado, 3 mil do outro. Lá dentro, “a prestação de serviços ao garimpo era a maior fonte de renda dos comerciantes, advogados e médicos, e o ouro em si funcionava como uma espécie de moeda informal”, escrevem Schmink e Wood.

Nilva Batista dos Santos Buratto chegou a Ourilândia com o marido em 1983. Os dois abriram um posto de gasolina do lado de fora da guarita e, pouco tempo depois, foram autorizados pela Consag a inaugurar um segundo posto dentro de Tucumã. “O de Ourilândia dava mais dinheiro por causa do garimpo”, ela conta.

A essa altura, Valdir Rostirolla já era uma liderança entre os colonos. Também em 1983, fundara a cooperativa de produtores locais e era chamado por todos de Marechal. A multidão que ia crescendo do lado de fora da corrente estava interessada em garimpo, terra fértil e madeira, ambições que estimulavam o comércio e favoreciam o escoamento da produção agrícola. Rostirolla-Marechal explorou cada uma dessas oportunidades. “Lá dentro não tinha gente nem pra dividir os mosquitos”, conta, referindo-se a Tucumã. Já Ourilândia era um enxame, uma humanidade a ser alimentada, vestida, alojada.

O garimpo, do qual Marechal cobrava comissão, deixava para trás, nas barrancas roídas dos rios, uma paisagem lunar de rejeitos. Atilado, ele descobriu que os resíduos da devastação também eram mercadoria. “Por catorze anos vivi desse refugo. Vendia como material pra construção civil – areia fina, cascalho, saibro, brita e pedra bruta pra fundação.” Também ali “superfaturou” muito. “E dei sorte de os garimpeiros invadirem a minha terra: eles descobriram ouro”, explica, numa boa síntese do processo de ocupação da Amazônia, no qual a ordem atrapalha e a desordem facilita.

Com a desordem, veio a violência. Num texto de reminiscências sobre o tempo em que morou em Tucumã, para onde se mudara em 1983 estimulado pelo caráter social do projeto de sua amiga Lian Andrade, o economista Ricardo Gazel, atual presidente do Conselho de Administração do Instituto Cultural Inhotim, conta que os funcionários do hospital local faziam apostas sobre quantas pessoas morreriam durante a semana e, destas, “quantas à bala, quantas à faca”. Amigos das vítimas contratavam prostitutas para chorar ao lado do caixão, alguém “batia a chapa” e a fotografia era enviada para as famílias distantes, como prova de que o defunto “foi chorado, como é devido”.

A Consag estava perdendo o controle da situação. Pelo menos 15 mil ilegais já operavam dentro de Tucumã, não só garimpeiros, mas também madeireiros e grileiros. Rostirolla-Marechal percebeu que a empresa tinha deixado de ser uma parceira de negócios; ao contrário, ela se tornara um obstáculo à sua prosperidade.

Do lado de fora da corrente, grupos apoiados por políticos de esquerda começavam a se organizar para invadir Tucumã. Lá dentro, Marechal passou a incentivá-los. Parecia absurdo: se ele pagara para ter um lote, por que queria que outros entrassem ilegalmente no projeto e ocupassem de graça terras que só tenderiam a se desvalorizar com a ação? “Não me arrependo”, afirma. Marechal calculava que, se a invasão fosse bem-sucedida, o projeto fracassaria de vez e todos os protocolos restritivos da empreiteira desapareceriam instantaneamente.

A debacle veio em maio de 1985. Como relatam Schmink e Wood, o órgão fundiário convocou uma reunião com líderes comunitários em Ourilândia para estabelecer os critérios de distribuição de lotes gratuitos, tal como previsto na proposta da Consag. Uma multidão se aglomerou no pátio em frente ao posto governamental.

A tensão já ia alta quando alguém avistou ao longe um conhecido segurança da guarita, Alberto José Serra Luz. Quatro anos antes, ele expulsara com violência garimpeiros que operavam dentro de Tucumã. Imprudente, tinha ido ao local do encontro para conferir o tamanho da aglomeração e, eventualmente, fixar o rosto de alguns participantes. Alguém soltou um grito – “Ó o cara lá!” – e a turba saiu na direção dele.

Protegido por funcionários da colonizadora, Luz correu para dentro do posto e se trancou numa das salas. A multidão invadiu o prédio, arrebentou a porta e avançou sobre o segurança. “Pedrada, paulada”, conta Laudi José Witeck, que não estava lá na hora, mas conhece a história de fonte primária. “No final, um soldado da pm tirou um revolverzinho 38 ‘canela seca’ do cinto, passou pra um dos linchadores e o cara deu o tiro de misericórdia.”

Para todos os efeitos, acabava ali a aventura de colonização social da Andrade Gutierrez.

“Surgiram cinco frentes de invasão”, relembrou há cerca de um ano Anivaldo Julião de Lima, conhecido como Savanas, então vereador pelo PV de Tucumã e dono da retransmissora local da Record.  Savanas estava em seu segundo mandato e buscava a reeleição quando faleceu no mês passado, vítima de acidente de carro ao voltar de um compromisso de campanha. Em outubro de 2019, sentado numa poltrona funda de vime, ele contava sobre os últimos meses do projeto de colonização: “Lá em Brasília, o Alfredo Moreira, advogado da Andrade, falou assim: ‘Então deixa invadir.’ A empresa passou a levar as forças políticas da cidade pra Brasília, hospedava todo mundo no Hotel das Nações e pedia que eles pressionassem o Estado a aceitar o destrato”, explicou. Sem energia ou capacidade para enfrentar a anarquia social que se instalara em Tucumã, a empreiteira jogara a toalha. Agora, queria ser indenizada pelo Estado e deixar o negócio.

Em setembro de 1988, o governo autorizou o pagamento de cerca de 20 milhões de dólares à Colonizadora Andrade Gutierrez, que, em contrapartida, abria mão de todos os direitos que tinha sobre Tucumã e transferia seus ativos para o governo municipal. “Numa carta ao ministro da Reforma e do Desenvolvimento Agrário”, escrevem Schmink e Wood, “o Getat [Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins, órgão fundiário ligado ao incra] concluiu que a Consag tinha cumprido inteiramente com suas obrigações contratuais […] Quando os novos funcionários locais eleitos em 1988 assumiram a administração do recém-criado município, herdaram uma infraestrutura física que ultrapassava de longe tudo o que havia nas cidades surgidas espontaneamente ao longo da fronteira do Sul do Pará.”

Lian Andrade não testemunhou de perto o ocaso do projeto. Era dolorosa a distância entre o que havia sido pensado e o que se fez: “O que eu sei é que durante anos tive pesadelos com Tucumã. Me sentia responsável, e como eu fugi da raia… E pra me consolar eu me dizia que esse tinha sido o maior projeto de reforma agrária do governo Sarney, 3 mil assentados. E que tentei ir lá salvar do Exército, e ao menos isso eu consegui. O projeto também criou uma faixa de segurança para a área dos xicrins e dos kayapós, o que os protegeu um pouco da invasão. Assim eu me consolava. E perante minha família, como eles conseguiram indenização, também fiquei tranquila por não me sentir tendo levado a empresa ao prejuízo, embora a decisão de gastar muito tivesse sido deles. Eu era contra.” Ela voltou à região mais de vinte anos depois, em 2006, acompanhada da filha Petra: “Visita rápida e triste.”

O município de Tucumã foi criado em 10 de maio de 1988. Seu primeiro prefeito, João Roberto da Silva, era aquele catarinense empreendedor que pulava de avião a guarita da Andrade Gutierrez para que não faltassem martelos no garimpo ilegal. Como de hábito, venceu a infração, não a regra. Um clássico da Amazônia.

 

Valdir Rostirolla é hoje um homem que conta sua história com a serenidade de quem fez o melhor com as cartas que recebeu e sabe disso. Veio de quase nada, fez-se por si próprio e chega à quadra final da vida respeitado pela comunidade que ajudou a criar. Aos 69 anos, dedica boa parte do tempo ao Clube dos 50, associação recreativa de Ourilândia que presidiu por catorze anos e da qual hoje é tesoureiro. Pode ser encontrado ali na parte da manhã, inspecionando com seu andar lento as quadras de futebol, a piscina e o salão de festas onde parte das lideranças locais se reúne.

São amplas as instalações do clube, mas não há luxo nem beleza. Ourilândia e Tucumã não conseguiram se livrar da precariedade das respectivas histórias de origem. O improviso impregna o arruamento confuso, as calçadas esburacadas, a poluição visual do comércio, os loteamentos insalubres e os prédios mal-acabados que servem ao descanso daqueles que com trabalho, esforço e astúcia construíram tudo aquilo. É o legado de uma elite.

Barba por fazer, boné vermelho da Nike enterrado na cabeça, Rostirolla termina de contar sua história no escritório que ocupa no clube, uma sala pequena tornada ainda menor pela quantidade de coisas que abriga – arquivos de metal, pilhas de documentos amarelecidos pelo tempo, taças de futebol, CPUs obsoletas, uma máquina de escrever, restos de um ventilador, frascos de odorizadores e repelentes.

Ele não se arrepende de ter deixado o Sul. “De jeito maneira”, diz com sua voz mansa, marcada pela melodia do sotaque gaúcho. “Lá eu ia ser um colonozinho. No máximo, teria uns 10 alqueires de chão. Ia manter uma suinocultura, quem sabe uma avicultura, mas não ia passar disso daí.” Não se considera um homem rico, mas “um cara que tem um patrimônio bom, em torno de 12 milhões, mais ou menos por aí”.

Cria gado, planta cacau e investe em loteamentos. Quando a Andrade Gutierrez desistiu do negócio, desapareceram as restrições que impediam os colonos de acumular terras no perímetro do projeto. Rostirolla-Marechal comprou logo três lotes e pôs lá a pecuária. Não demorou a mudar de ideia. Por ser próximo dos limites entre Ourilândia e Tucumã, o terreno se valorizou e ele decidiu loteá-lo. Batizou o projeto de Residencial Marechal. “São 818 lotes, já vendi cerca de 200”, conta.

O empreendimento imobiliário fica ao lado de um quartel da Polícia Militar. Sabendo que o destacamento sofria com o fornecimento irregular de água, Marechal foi até lá levar uma boa notícia: “Aqui é por minha conta: vou furar um poço artesiano e se não der água eu pago por ela igual, porque vocês estão comprando água mineral pra tomar banho e cozinhar.” A 160 metros de profundidade, a água jorrou em abundância, “100 litros por hora”. Feito o gesto de boa vizinhança, Marechal trouxe à tona o assunto das invasões, fenômeno comum na região que muito o preocupava. Olhando os policiais no olho, perguntou: “E se inventarem de invadir os meus terrenos aqui?” Ele se orgulha da resposta que recebeu: “‘Os caras vão apanhar tanto que eu vou ter até dó deles.’ Sabe por que eles falaram assim? É porque eles têm muita gratidão pela minha pessoa.”

Em 2018, quando garimpeiros voltaram a entrar em suas terras, Rostirolla foi até lá, negociou e “eles me passaram uma porcentagem de 12%, uns 200 mil reais, tudo assim ligeirinho”. É um garimpo diferente daquele que o tirou da pobreza na década de 1980. “Antigamente era manual. Agora virou moderno, com peças todinhas”, diz, referindo-se às máquinas pesadas que hoje mastigam com mais eficiência os barrancos e os leitos dos rios. Ferida maior significa mais refugo: “Conseguimos remover bastante material e está tudo estocado. Areia grossa e fina, brita. Eu vou mexer nisso daqui a uns dias.” A Amazônia tem sido pródiga com Marechal.

Seu relato é desarmado e sincero. Ele é um homem de modos simples, já um pouco alquebrado pelos anos, que se veste modestamente e narra seus feitos sem empáfia ou constrangimento. No mundo em que se lançou, sua história é o que é: não um triunfo retumbante, mas a aventura bem-sucedida de um homem que soube compreender as leis não escritas que desde sempre regem a ocupação da floresta. É possível lucrar com a invasão da própria terra e com a destruição dos rios que correm por ela. Pode-se viver dessa devastação. Pode-se transformar a ruína em espólio.

Tucumã, ao se emancipar, não herdou apenas a infraestrutura construída pela Andrade Gutierrez. O experimento deixara outros legados: ao menos dois rios, o Fresco e o Branco, profundamente afetados pelo garimpo e a caminho da morte biológica; 90% da floresta desmatada, quando o projeto original previa que pelo menos metade da área se destinaria a reservas de mata coletiva; uma economia que, apesar de próspera se comparada à de outros municípios do Pará, depende essencialmente da pecuária e do garimpo predatório; uma barafunda fundiária ainda mais espantosa se levado em conta que o município nasceu de um projeto de colonização cujo princípio básico era estender a cada colono a propriedade legal da terra. “Só 10% das pessoas aqui têm título”, informa o atual prefeito de Tucumã, Adelar Pelegrini, um catarinense de sotaque cantado. “Nunca conseguimos regularizar por causa da invasão e do destrato com a Andrade Gutierrez.”

A borboleta do traçado urbanístico original é hoje apenas uma lembrança na memória dos pioneiros. Desmanchou-se no processo de ocupação desordenada que caracteriza as cidades brasileiras. Tucumã, a cidade planejada, e Ourilândia, o povoado nascido da carência e da exclusão, são hoje indistinguíveis. Passa-se de uma para a outra sem perceber. “Do projeto inicial, só sobrou a igrejinha católica e uma ou outra casa de madeira”, contou Savanas, o vereador do PV em Tucumã. Sentado ao lado dele, o prefeito Pelegrini espantou-se: “Ah, é? Sobrou casa?”

Savanas entrou em seu carro e estacionou junto dos remanescentes da cidade que um dia a Andrade Gutierrez começou a construir na selva. O prédio decrépito onde se instalou a primeira Câmara de Vereadores e, depois, a Funai. O edifício em mau estado do primeiro hotel da cidade. Algumas lindas casas de madeira que no passado sediaram seções da empresa colonizadora ou serviram de moradia para seus funcionários. Sem grades ou muros altos, hoje estão cercadas por construções muradas que se fecham a qualquer contato; últimos sobreviventes de um projeto generoso, essas casas abertas à rua parecem estender a mão em amizade.

No centro de um descampado, por fim, a capela São José Operário. Inaugurada em 27 de setembro de 1982, foi uma das primeiras edificações de Tucumã. Está muito bem conservada e, na sua tocante modéstia, tão própria ao santo carpinteiro a que foi consagrada, vislumbra-se o sonho desfeito de dois jovens idealistas que imaginaram ser possível, na Amazônia, isolar a ordem da desordem.

 

A história de Valdir Rostirolla é a de um homem que tinha um projeto e o cumpriu. Foi mais bem-sucedido do que muitos e menos do que alguns. A julgar por suas convicções, o jovem que dormiu no chão da Andrade Gutierrez na sua primeira noite em Tucumã não é essencialmente diferente do senhor que despacha no Clube dos 50. Foi a floresta que se adaptou a ele, não ele à floresta.

De certa forma, a história de Laudi José Witeck é o oposto. Ele embarcou para o Norte com ideias fortes, mas no confronto com as realidades locais foi levado a abandoná-las. Não de uma vez só. Aos poucos.

Witeck é um homem bonito na casa dos 60 e tantos anos. Forte feito uma tora, de estatura mediana, tem o rosto sulcado de quem passou a vida debaixo de sol. Nasceu no Paraná, de uma família de imigrantes que mistura sangue tcheco (Witeck), francês (Michaux, sobrenome da avó paterna) e alemão (Müller e Rauber, pelo lado da mãe). Fala baixo e com grande fluência, traços arraigados desde os tempos de seminarista versado nas sutilezas dos tratados teológicos e na dialética da literatura marxista.

Tinha 17 anos e morava num seminário católico. Toda noite sintonizava a Rádio Moscou e, às escuras, ouvia falar da Revolução. Queria ser um de seus soldados, o que exigia deixar o Paraná e ir ao encontro da ação revolucionária. Na época, final da década de 1960, isso significava ir até a região do Rio Araguaia, na divisa do Pará com o Maranhão e o atual estado do Tocantins, onde membros do PCdoB tentavam deflagrar um movimento insurrecional inspirado nos modelos chinês e cubano. Witeck falou com o pai e pediu que ele o emancipasse. Mentiu, contudo, sobre a razão, astúcia necessária perante um homem profundamente conservador que apoiava o regime militar. Sendo necessário mentir, mentiu completamente: queria a maioridade para poder se alistar no Exército e ajudar a nossa soldadesca a combater as forças comunistas que se agrupavam no Norte do país. O pai concordou.

Chegou ao Pará por Belém e, de lá, saiu à cata dos revolucionários. Antes de alcançá-los, porém, contraiu leishmaniose, doença infecciosa grave que, se não tratada, provoca úlceras cutâneas, desfigurações e até morte. Witeck começou a ficar cego. Sem condições físicas de se aventurar na mata, renunciou aos sonhos guerrilheiros no leito do hospital público onde acabaria por se curar. Agora era um jovem sem dinheiro e sem planos, largado num lugar em que tudo lhe era estranho. Para sobreviver, foi arrumar emprego.

Encontrou-o na indústria madeireira. O Sul do Pará começava a explorar o mogno, espécie cujo valor comercial justificava operações de extração que chegavam a reunir de setenta a oitenta pessoas. Essas equipes entravam na mata, abriam estradas – quase 3 mil km numa mesma microrregião –, montavam acampamento, construíam armazéns, instalavam serrarias. Permaneciam meses dentro da floresta, abastecidas por aviões que lhes traziam mantimento, gás de cozinha e combustível para motosserras, tratores e caminhões.

Witeck se mudou para Xinguara, município a 160 km do que viria a ser Tucumã. Era motorista de caminhão nas operações de extração de mogno. “Puxava madeira, extraía as toras do mato e levava até a serraria”, conta. O prejuízo para a região foi imenso: “Só se usava o mogno, e todo aquele resto de madeira foi perdido”, diz, referindo-se à exploração predatória, prática na qual, de acordo com estudos acadêmicos, para cada árvore aproveitada outras 31 são danificadas ou destruídas.

Era um trabalho duro, que exigia meses de permanência na selva, longe de casa. Witeck se casara e queria mudar de vida. Quando soube que a Andrade Gutierrez estava contratando gente para um grande projeto de colonização não muito longe dali, decidiu se apresentar para uma entrevista. Gostaram dele e o incluíram num programa de treinamento. No fim do curso, informado de que seria admitido como motorista na seção de Recursos Humanos, ficou feliz – trocar caminhão e tora por carro e passageiro era progresso. Witeck perguntou se podia trazer a mulher. “Disseram que eu tinha que vir só. Eles eram muito rígidos. Como eu ia deixar minha esposa sozinha em Xinguara?”

Recusou o emprego, mas tinha gostado da região. Do lado de fora da guarita, Ourilândia crescia. Um posto de gasolina estava contratando. Os proprietários eram Nilva Batista dos Santos Buratto e seu marido, o casal que chegara a Ourilândia em 1983. “A gente vendia 600 mil litros de diesel por mês para o garimpo. Era um absurdo!”, diz Witeck, com espanto na voz.

Quando seus patrões conseguiram autorização para abrir um posto dentro de Tucumã, ele cruzou a guarita e foi trabalhar do lado de lá. Um ano depois, arrendou o próprio posto, ao qual deu o nome de Tucumã. Embora sem um centavo no bolso – conseguira um empréstimo com o antigo patrão madeireiro –, agora se tornara um pequeno empresário. Deu sorte com o momento. “Era 1987, o garimpo e as madeireiras estavam em plena atividade”, recorda-se. “Em setembro daquele ano, o Tucumã foi o posto que mais vendeu diesel no Brasil. Eram quarenta aviões puxando petróleo pro garimpo, e cada avião aguentava uma carga de 470 litros. O pessoal passava no posto, pegava o combustível, punha no avião e levava para as pistas que existiam nos garimpos e nas terras indígenas.”

Witeck é uma das testemunhas do ocaso da Tucumã planejada pela Andrade Gutierrez. Chegou logo no início, conheceu Lian Andrade – “Mas só de cumprimentar, né? O pessoal gostava dela, ela andava no meio do povo” – e viu o projeto degringolar diante de seus olhos. “Pra mim, o maior erro da empresa foi trazer só colonos gaúchos”, diz, tratando o gentílico como coletivo para migrantes oriundos da região Sul, como ele. “O gaúcho não tem experiência com mato. Ele é de trator, e aqui no começo só tinha floresta.” O impulso do colono era adequar a paisagem às suas competências e habilitá-la a ser trabalhada com os instrumentos conhecidos. Tratores exigem pampas, cerrados, terra limpa e destocada.

Outro erro, segundo Witeck, foi o excesso. “Fizeram infraestrutura demais, muita casa, muita estrada, abriram muita picada. Custo demais pra venda de menos”, avalia. Não havia pequeno agricultor para pagar por aquilo tudo. O que havia eram desesperados na corrente querendo entrar. “A Andrade Gutierrez não era uma empresa colonizadora experiente. Quando começaram as invasões eles perderam o foco, e em vez de persistir preferiram ser indenizados.”

Houve um desencontro geral. Os colonos que a empresa atraíra desconheciam o mundo natural de Tucumã e não se interessavam por ele; por sua vez, a empresa colonizadora não compreendia o funcionamento social do lugar. Dadas essas ignorâncias fundamentais, o plano não vingou. Venceu o improviso, coisa que, na Amazônia, acaba por se tornar um plano – o dos mais astuciosos, o dos que se adaptam melhor, o dos que aproveitam a oportunidade.

Foi longo, acidentado e venturoso o percurso que transformou em empresário o jovem seminarista da década de 1960. Em 1992, Laudi José Witeck elegeu-se prefeito de Tucumã pelo PDT – “o PDT do Brizola”, sublinha, fazendo questão de reafirmar suas convicções de esquerda. Deixou o ramo de combustíveis e hoje é dono de um hotel que hospeda principalmente representantes comerciais e prestadores de serviço que atendem os dois frigoríficos da cidade. Continua a militar na política, atualmente como vereador filiado ao DEM.

“Não posso reclamar, não.” Num balanço sentimental da vida, ele conta qual é o seu maior orgulho: “Ter conseguido formar minha filha na faculdade. Ela é dentista.” A grande tristeza foi a morte do filho: “Tive essa infelicidade. Ele foi para os Estados Unidos tentar fazer a América, chegou lá e faleceu num acidente de trabalho”, diz com voz pequena. Em outros termos, Witeck tentou a mesma coisa: “Sim, sim. Vim pro Norte sem nada. Cheguei em Tucumã, só tinha um caminhãozinho. E devendo prestação ainda, né?” O rapaz que saíra de casa para tornar o mundo mais justo acabaria, também ele, por se beneficiar da anarquia da região. A sua América foi o Pará.

 

Ilustração: Linoca Souza
Animação: Ana Luísa Anker

João Moreira Salles

Documentarista, é editor fundador da piauí. Dirigiu Santiago, Entreatos e Nelson Freire, entre outros

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