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    Foto: Hugo Fernandes

diários do pantanal

“Agora eu cheguei ao inferno”

Biólogo em expedição no Pantanal relata os apelos desesperados de moradores da região diante do fogo e acompanha trabalho dos bombeiros

Hugo Fernandes | 28 set 2020_11h04
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A  velocidade do fogo, pedidos desesperados de socorro pelo rádio e o Pantanal em chamas visto do chão e do alto. Na segunda fase da expedição pela região, o biólogo Hugo Fernandes narra o choque de sair de uma área preservada e observar os focos de calor no bioma. Professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ele integra a Expedição Pantanais, em Mato Grosso do Sul, que investiga as diferentes formações ecológicas dentro do bioma. A pedido da piauí, conta  nestes diários o passo a passo de sua expedição. A primeira parte do trabalho acompanhou o rastreamento das onças-pintadas numa zona preservada – mas, nesse terceiro relato, a viagem mergulha num Pantanal tomado pelos incêndios, enquanto bombeiros e brigadistas se desdobram para preservar o bioma e salvar vidas.

Em depoimento a Fernanda da Escóssia

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Sexta-feira, 25 de setembro

“Se em Miranda eu estava num paraíso recuperado, agora eu cheguei ao inferno. Essa é a sensação quando comparo as fases da expedição. Acordei, tomei café com Lawrence Wahba, documentarista que nos acompanha, com coronel Angelo Rabelo, diretor do Instituto Homem Pantaneiro, e com Walfrido Tomas, médico veterinário e pesquisador da Embrapa que está conduzindo estudos de impacto dos incêndios sobre a fauna nativa no Pantanal. Mal sabíamos o que viria dali à frente. No aeroclube em Corumbá (MS) estava Chico Boabaid com um Cessna Skylane 182, avião em que você entra e se sente numa espécie de buggy com duas asas. Para minha tranquilidade, eu estava ao lado de um dos pilotos mais experientes do Pantanal, com 46 anos de profissão.

Nosso plano de voo era partir de Corumbá até a fazenda Acurizal, nas imediações do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, a cinquenta minutos. Dentro do avião, um calor insuportável, e o balanço não combinou com o café. Enjoei, felizmente muito pouco. Ao aterrissar na Fazenda Acurizal, conhecemos a equipe do Instituto Homem Pantaneiro, que serviu de base para montar a brigada de ribeirinhos e demais voluntários na ajuda à equipe do ICMBio e do Corpo de Bombeiros.

Lá conhecemos o Celso, piloto da embarcação, e um repórter local. Seriam os nossos companheiros até a sede do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, onde conhecemos os brigadistas do ICMbio e homens e mulheres do Bombeiros do Estado do Paraná, que vieram para prestar apoio. A liderança é de uma mulher, uma heroína chamada tenente Luisiana. Conversei sobre a dificuldade de ser mulher liderando um batalhão de homens, numa profissão que geralmente é tida como masculina pela sociedade.

Tenente Luisiana / Foto: Hugo Fernandes

 

Tenente Luisiana nos permitiu acompanhá-los no controle de um foco de incêndio. Ela colocou os homens numa embarcação, nós acompanhamos na nossa e pudemos fotografar a ação dos bombeiros em terra controlando o fogo com abafadores. Nesse momento, o fogo avança, e a tenente pede que todos recuem. Ela recebe então um chamado de urgência. E cabe contar esse contexto desde o início.

Vamos voltar ao avião, na saída de Corumbá. Naquele exato momento, não havia focos de incêndio na Serra Negra. Lawrence e Chico comentaram sobre a beleza da região. Isso foi às 9 horas da manhã. Às 11 horas, uma equipe do coronel Rabelo passava pela região da Serra Negra, mais precisamente na frente da fazenda Novos Dourados. E também não registrou nada de estranho.

Um pouco antes da uma da tarde, a tenente Luisiana recebe o chamado de urgência. Era uma mulher pedindo socorro na fazenda Novos Dourados, porque o fogo estava avançando na sua residência. Não pudemos acompanhar, porque nosso barco não tinha combustível e nosso plano de voo exigia que voltássemos às três da tarde. No meio do rio, um alerta de rádio: uma mulher pedindo desesperadamente que os bombeiros chegassem logo. Conversei com ela e falei que os bombeiros estavam a caminho. Minutos depois, um homem pedindo mais agilidade, porque o fogo estava avançando. Mais uma vez falamos que os bombeiros estavam chegando. Os chamados partiam da Fazenda Novos Dourados, que horas antes não registrava nenhum foco de incêndio.

Pegamos o voo de volta. Assim que o avião levantou, a impressão foi que linhas de inferno haviam tomado a terra. A visibilidade do piloto ficou comprometida. Chico Boabaid, que tem mais de quarenta anos de profissão, teve que acionar os controladores, que o ajudaram a voltar a Corumbá.

Perguntei ao Chico se aquilo era comum, e ele disse: “Fogo todo ano tem, mas como o desse ano nunca vi na vida.” Foi um voo tenso, preocupante, muito quente, mas a experiência do Chico fez com que nada fosse mais do que um pequeno estado de tensão. O avião pousou em segurança em Corumbá.

O coronel Rabelo nos esperava na sede do Instituto Homem Pantaneiro, e tivemos reunião com patrocinadores para montar brigadas permanentes de voluntários no Pantanal, para apagar incêndios não só de hoje, mas principalmente do futuro.

Meu corpo suava, suava demais. Lawrence passava pelos mesmos sintomas. 

Começamos a passar mal, a pressão baixou. Provavelmente estávamos com uma intoxicação de monóxido de carbono em decorrência da fumaça que respiramos no barco. Soubemos que Celso, o piloto, passara muito mal e estava vindo de barco para Corumbá. Chamamos o SAMU, fizemos uma inalação de oxigênio e em pouquíssimo tempo estávamos bem. O Celso chegou a Corumbá, recebeu atenção médica e já passa bem melhor. 

Outra notícia triste foi que a mulher que enviou um alerta ao nosso barco acabou tendo queimaduras de segundo grau nos pés e foi encaminhada para receber tratamento. Pelo menos fechamos o dia com uma boa notícia: o Corpo de Bombeiros do Paraná conseguiu controlar o incêndio na sede da Novos Dourados depois de uma noite intensa de trabalho.

Sábado, 26 de setembro

Malas prontas para partir de Corumbá. A programação original era pegar o mesmo avião com o Chico, descer na Fazenda Acurizal, dormir lá e seguir para Porto Jofre [perto de Poconé]. Quem atrapalhou os planos foi o céu, coberto de fumaça, sem visibilidade. O coronel Rabelo providenciou um barco. O tempo de viagem seria de cinco horas. No porto de Corumbá descobrimos que no barco só havia espaço para um. Lawrence embarcou, eu fiquei. Lá pelas 6 horas, Letícia Larcher, assistente do coronel Rabelo, me enviou uma mensagem pelo WhatsApp. Demorei um tempo para processar a dor: uma criança de dois anos morrera afogada. Embora pareça não haver relação com os incêndios, a dor maior é que essa criança possivelmente é filha de um dos brigadistas voluntários. Infelizmente não tenho mais detalhes. Terei amanhã, quando encontrar meus amigos.

A equipe sofrera outra derrota: tentou salvar uma capivara que teve as patas queimadas, mas ela morreu.

Capivara socorrida pela equipe / Foto: Equipe de brigadistas/cedida por Hugo Fernandes

 

Não faço ideia de como está a cabeça de todos os brigadistas e, principalmente, desse pai e dessa mãe que perderam essa criança. Amanhã de manhã saio de Corumbá e tento voar novamente. Espero terminar o dia com o cenário um pouco melhor. Mas acho muito difícil que qualquer vitória que a gente tenha contra o fogo consiga superar a dor imensa de perder uma criança de 2 anos.

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Leia os outros relatos de Hugo Fernandes: A primeira onça e No rastro das onças-pintadas

 

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