Aquarius – o filme em questão
Depois de ser contaminado, o espectador terá dificuldade em apreciar Aquarius com isenção. O protesto no Festival de Cannes, a inconformidade face à classificação etária recomendada inicialmente pelo Ministério da Justiça, a controvérsia sobre um integrante da comissão do Ministério da Cultura encarregada de escolher o candidato brasileiro para eventualmente concorrer ao Oscar – esses e outros fatores extrínsecos ao filme em si podem ter servido para reabastecer periodicamente a campanha promocional de Aquarius. Mas, a partir da estreia comercial na quinta-feira passada (1/9/2016), esses episódios circunstanciais de contágio teriam que ser deixados de lado, pois o que realmente importa, afinal, é o próprio filme. Dado, porém, o grau de contaminação havido, resta conferir se a possibilidade de avaliar Aquarius não foi comprometida, a priori, de modo irremediável.
Outro obstáculo nada desprezível é a expectativa criada em relação a Aquarius. Desde a estreia no Festival de Cannes, em maio, o filme teve boa crítica, com poucas ressalvas, chegando em alguns casos a ser glorificado – Pedro Butcher, por exemplo, escreveu na Folha de S.Paulo que o diretor faz “uso do som e da música de tirar o fôlego”, conduz em “ritmo que desafia a maré dominante dos tempos acelerados”, revela “senso de enquadramento raro”, e “mostra um domínio absurdo das ferramentas do cinema”. Naturalmente, “absurdo”, no caso, não no sentido de incoerente, disparatado, insensato, mas no de excepcional, descomunal, incomum.
Para ratificar seu sucesso prévio no circuito dos festivais e junto à crítica, Aquarius tem um desafio triplo a enfrentar ao ser lançado em 85 cinemas com anúncio de página inteira na Ilustrada: fazer jus aos elogios, cobrir gastos expressivos de lançamento e, mais do que tudo, impor-se por seus próprios méritos.
Já no sábado (3/9/2016), por volta de 13h, a palavra abalizada de Jean-Claude Bernardet recomendou o filme no Facebook, uma iniciativa incomum: “Não deixe de ver AQUARIUS!!!!! Notável inteligência do roteiro que entrelaça com suavidade uma multiplicidade de temas. Esse entrelaçamento torna a personagem de Sonia Braga multifacetada e complexa – e envolvente.”
Na véspera, porém, houve sinal de que nem todos seriam capazes de centrar sua atenção no filme. A julgar pelo post publicado no site Público.pt, editado em Portugal (2/9/2016), Aquarius corre o risco de ser deixado de lado enquanto filme e continuar a ser usado como pretexto para externar posições políticas. Para a autora do post, Kathleen Gomes, Aquarius teria se tornado “símbolo da contestação ao governo de Michel Temer”. Ao ser transformado em símbolo, o filme perde substância, tornando-se um condutor sem capacidade de transmissão. Será pena se for esse o enfoque a prevalecer, pois o principal prejudicado será o próprio Aquarius.
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Assim como em O som ao redor, seu filme anterior, Kleber Mendonça Filho, roteirista e diretor, divide Aquarius em três partes de durações desiguais, identificadas através de legendas. Além dessa estrutura geral, cuja razão de ser não fica clara, preserva também outros traços estilísticos comuns: multiplicidade de temas, como Bernardet assinalou, mas também demora em explicitar a trama central, duração além da habitual e resolução rápida.
Em Aquarius, antes de estabelecer o conflito em torno do qual a trama se desenvolverá, um longo tempo (cerca de vinte e sete minutos, correspondendo a dezoito por cento da duração total do filme) é dedicado ao prólogo e a quase toda a primeira parte, confirmando propensão de Mendonça Filho por narrativas dispersas nas quais múltiplas situações se acumulam.
No prólogo, a voz de Taiguara, repetida no encerramento, embala fotografias em preto e branco que mostram o surgimento da muralha de grandes edifícios residenciais na praia de Boa Viagem, em Recife. Segue-se, já no início da primeira parte, cena noturna à beira mar na qual Clara (Bárbara Colen) curte a vida, em 1980, com seu irmão e a futura mulher dele, antes de voltar para a festa de 70 anos da sua tia Lúcia (Thaia Perez), celebrada (durante cerca de onze minutos), ao som dessa vez de Altemar Dutra, no apartamento que virá a ser objeto de disputa. E, após indicação de passagem de tempo, Clara entra em cena trinta anos depois, interpretada agora por Sonia Braga.
Canções românticas, como as mencionadas, além de várias outras, são recorrentes ao longo de Aquarius. As letras sugerem sentidos adicionais e indicam, algumas vezes, o pensamento e estado de espírito dos personagens – um recurso desgastado porque se tornou lugar-comum da dramaturgia televisiva. Por ser tão banal, é surpreendente que Mendonça Filho lance mão desse expediente de forma tão sistemática.
No roteiro e em aspectos da montagem, Mendonça Filho cultiva de modo deliberado o excesso em detrimento da parcimônia. Subverte a linearidade e clareza, nem sempre com habilidade. É uma visão barroca do mundo que convive com seu modo sereno de filmar. Conciliar retórica barroca com imagens estáveis – um dos principais traços distintivos de Aquarius – é uma equação complexa que tanto pode granjear adesões, quanto provocar ressalvas.
Depois de sofrer sucessivos agravos e ser informada de que não há medida judicial que possa impedir a pressão para que venda seu apartamento, Clara acaba deixando de lado sua resistência passiva. Transcorrida uma hora e cinquenta minutos de filme, ao chantagear o dono da construtora e recorrer a um ato de protesto inconsequente, ela se equipara à elite que condenou de forma veemente. Aquarius chega ao seu fim dessa forma inconclusa, de modo ambíguo, permeado de contradições.
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