Numa tarde no fim de janeiro, a arqueóloga Angela Maria Camardella Rabello escavava junto com colegas os escombros do Palácio de São Cristóvão, o principal edifício do Museu Nacional, consumido pelo fogo na noite de 2 de setembro do ano passado. Usando um pincel e uma pá de pedreiro, Rabello recuperava fragmentos de cerâmica da pilha de destroços com cerca de um metro de altura. Era possível avistar a boca de um vaso despontando em meio aos escombros, sob um grande bloco de laje que despencara. Naquele ponto do prédio os pavimentos superiores haviam cedido, e era possível avistar as portas do segundo e terceiro andares dando para o vazio.
Antes do incêndio aquele espaço abrigava parte das coleções de antropologia do museu, mas não era aberto aos visitantes. A arqueóloga explicou que havia ali armários com cerca de 300 peças de cerâmica indígena. “A maioria era da Amazônia, mas tinha também alguma coisa tupi-guarani e material da etnografia”, disse Rabello, que trabalha com a reserva técnica das coleções de arqueologia do museu.
Com quase meio metro de altura, o vaso que despontava no meio do entulho tinha sido feito por povos que habitaram a ilha de Marajó, no Pará, antes da chegada dos portugueses, contou a arqueóloga. A peça parecia intacta, mas estava ameaçada pelo pedaço de laje caído sobre a pilha de escombros. Para resgatá-la, os arqueólogos recorreram aos funcionários da Concrejato, a empreiteira contratada para dar estabilidade ao que restou do prédio. Os operários conseguiram escorar o bloco de concreto e permitiram o resgate das peças soterradas sem risco para sua integridade.
Rabello foi aplaudida pelos colegas quando retirou o vaso marajoara dos destroços sem maiores danos, com exceção de uma lasca na borda. “Esse cenário é muito triste, e comemoramos tudo que conseguimos recuperar”, disse um arqueólogo que acompanhava o resgate. “Essa cerâmica caiu de um armário, pegou fogo e está aí.” Não foi a única peça resgatada inteira. Naquela tarde, outros três vasos tirados da pilha de entulho estavam enfileirados num cômodo contíguo, afora os incontáveis fragmentos de cerâmica guardados em várias caixas de plástico à medida que eram escavados. Até o início de fevereiro, noventa cerâmicas inteiras haviam sido resgatadas dos armários que estavam naquela parte do museu.
No meio da tarde, Rabello recuperou um fragmento de cerâmica no qual era possível ler o número de inscrição da peça no acervo do museu. “17 304”, ela leu em voz alta. “Quem aí joga no bicho?” Um operário cravou sem hesitar: “É avestruz!”
A piauí foi o primeiro veículo da imprensa brasileira a ter acesso ao interior do palácio desde o incêndio do Museu Nacional. Os trabalhos de resgate tiveram início ainda no fim de setembro, depois que os operários da Concrejato começaram a escorar as paredes do palácio e permitiram que os arqueólogos do museu acessassem os primeiros cômodos com segurança.
Mesmo após quatro meses de retirada de escombros, o cenário é de terra arrasada em muitos pontos. Ainda há salas tomadas por pilhas de destroços pelas quais é difícil transitar. Trechos que não foram escavados e situados em áreas sem cobertura estão protegidos por lonas para que não peguem chuva. Pilhas de entulho se espalham em torno do prédio e no pátio interno. Mas há também cômodos relativamente limpos em que a escavação já foi concluída e nos quais as paredes chamuscadas são a lembrança mais visível do incêndio.
A carcaça do edifício se manteve de pé, embora a laje que separava os três andares tenha cedido em muitos lugares. Em pontos em que o reboco cedeu, é possível identificar tijolos de diferentes tipos e épocas, testemunhas das muitas reformas pelas quais passou o palácio construído no início do século XIX. Estantes e armários de ferro retorcido lembram que, até alguns meses atrás, o prédio abrigava uma instituição de ensino e pesquisa. Objetos familiares atraem o olhar do visitante: um CD, uma velha maçaneta, um volume com encadernação espiral que escapou à combustão completa.
O resgate envolve uma equipe de cerca de sessenta pesquisadores e técnicos do Museu Nacional. Todos trabalham com capacete e máscara para se proteger do pó fino em suspensão gerado pelas escavações e pela remoção do entulho em carrinhos de mão. Enfrentam um calor sem trégua desde que começou o verão, suando sob o espesso jaleco usado durante os trabalhos – o item ganhou o apelido de “forninho”. As semanas a fio que passam debruçados sobre os escombros também têm cobrado seu tributo na saúde dos pesquisadores. “A coluna já era”, queixou-se a arqueóloga Luciana Witovisk, enquanto ajustava uma cinta ortopédica num intervalo da escavação.
Naquele dia Witovisk coordenava a fase final da escavação de um cômodo na lateral do palácio onde ficavam os gabinetes de três professores de antropologia. A arqueóloga topou com um bloco de material orgânico carbonizado pela metade, possivelmente o fragmento de um cupinzeiro. Era um raro vestígio das coleções de entomologia que ficavam no pavimento superior, colapsado durante o incêndio. A maior parte do acervo entomológico foi consumida pelo fogo.
A primeira boa notícia a surgir no resgate veio em meados de outubro, com a recuperação de fragmentos do crânio de Luzia, o esqueleto mais antigo das Américas e uma das peças mais conhecidas do acervo do Museu Nacional. Dias depois, a instituição divulgou que havia encontrado também o Angra dos Reis, meteorito que caiu em 1869 na cidade homônima do litoral fluminense. Uma das rochas mais antigas conhecidas do sistema solar, com mais de 4 bilhões de anos, o meteorito tinha seu valor estimado em 3 milhões de reais e não ficava exposto aos visitantes. Não havia muita dúvida de que o meteorito – que já sobrevivera à entrada na atmosfera terrestre – escaparia do incêndio. A questão era se os arqueólogos conseguiriam identificar a peça – uma rocha preta de 70 gramas e pouco mais de 4 centímetros de largura – em meio a outros objetos carbonizados. Como o armário em que o meteorito ficava guardado resistiu ao fogo, foi possível resgatá-lo sem que ele fosse confundido com outras rochas.
Até agora, porém, não estava clara a extensão do acervo que foi possível resgatar em meio aos escombros. A julgar pela reação dos pesquisadores e técnicos ouvidos pela piauí no Museu Nacional, há motivos para comemoração. “Nem que fosse um otimista eu imaginaria um resgate tão positivo”, disse o paleontólogo Alexander Kellner, diretor da instituição. “Diante da destruição, não imaginávamos recuperar material nessa quantidade e qualidade.” Mas o diagnóstico não deve tirar de perspectiva a dimensão do prejuízo. “Devemos sempre lembrar que foi uma tragédia, e não há nada que minimize isso. Perdemos coisas que jamais recuperaremos”, disse Kellner.
Alguns objetos resgatados estão sendo descobertos pela segunda vez – é o caso daqueles que haviam sido integrados ao acervo em expedições arqueológicas e paleontológicas. “É tanta coisa boa que é difícil falar sobre uma”, disse a arqueóloga Claudia Carvalho, coordenadora da equipe de resgate, quando indagada sobre os principais itens encontrados em meio aos escombros. “Conseguimos recuperar materiais absolutamente importantes. Há peças da coleção de dom Pedro II com danos mínimos; cerâmicas da região andina e de povos amazônicos, algumas em condição muito boa; material fóssil com boa integridade”, enumerou. As surpresas chegam a cada dia. “Ontem [dia 29 de janeiro] foram recuperadas três gavetas de moluscos sem alteração, inclusive com saquinhos de plástico”, disse Carvalho. “É inacreditável.”
Mesmo algumas peças severamente danificadas manterão o interesse para os pesquisadores. A arqueóloga citou o caso de cestarias da coleção de etnologia que foram deformadas pelo fogo, mas cujos fragmentos mantiveram a estrutura de confecção. “Conseguimos preservar a informação sobre a tecnologia usada por aquele grupo específico.” Carvalho mencionou também o caso das múmias do acervo do museu. “Sabemos que uma delas foi praticamente toda destruída, mas os amuletos que havia em seu interior, que só conhecíamos por tomografias, foram recuperados quase na totalidade.”
Dentre os fósseis resgatados, há holótipos, como são chamados os exemplares usados por pesquisadores para descrever uma espécie. Holótipos são itens valiosos do acervo de um museu, pois servem de referência para os estudiosos que não hesitam em consultá-los in loco quando preciso. Dentre os espécimes desse tipo recuperados em meio aos destroços estão fósseis do Anhanguera blittersdorffi e do Tapejara wellnhoferi, dois pterossauros descritos por Alexander Kellner, especialista no estudo desses répteis pré-históricos. “O Tapejara está maravilhoso, mas o Anhanguera sofreu”, disse o paleontólogo, para quem o acervo do Museu Nacional vai continuar atraindo colegas do exterior interessados no estudo de seus fósseis.
Na primeira semana de buscas, num momento em que ainda havia fumaça no ambiente e as cinzas dominavam os destroços, deixando tudo com a mesma cor, Claudia Carvalho reconheceu o fragmento de um vaso de cerâmica que estava em exposição. Pareceu-lhe um bom presságio: identificar um objeto do acervo era um sinal de que nem tudo havia sido descaracterizado pelo fogo. “Naquele momento não tínhamos a menor expectativa de recuperar coisas inteiras como fizemos nos últimos meses”, disse a arqueóloga no contêiner climatizado que serve de base para a equipe de resgate, ao lado do palácio.
Enquanto Carvalho dava entrevista, uma funcionária preenchia ao computador uma planilha que listava o material resgatado. Naquele dia, o documento já contava com 1 965 entradas – 10 mil vezes menos que os 20 milhões de espécimes que, estima-se, compunham o acervo do Museu Nacional. Mas a arqueóloga ressaltou que o número não deve ser tomado como um indicativo da quantidade de itens resgatados, uma vez que algumas entradas se referem a um lote de objetos. “Tem uma gaveta com umas vinte lamparinas greco-romanas, por exemplo, que corresponde a uma linha da planilha”, exemplificou. Além disso, o documento inclui não só itens do acervo, mas também equipamentos e objetos pessoais recuperados nos destroços.
O material resgatado do interior do prédio é encaminhado para o centro de triagem, montado num galpão ao lado do palácio. Ali, cada item é fichado, fotografado e avaliado. Caso não precise receber tratamento imediato, passa por um período de estabilização antes de ser encaminhado para um dos contêineres enfileirados nas aleias que dão acesso ao palácio. Os objetos recuperados até agora já encheram cerca de quinze desses contêineres, que em breve serão insuficientes para acomodar o material que vai saindo das escavações.
O centro de triagem não estava muito movimentado no dia em que a piauí visitou o palácio. “Hoje está bem tranquilo”, disse a geóloga Bárbara da Silva Maciel, uma das duas funcionárias do museu que recebiam os itens resgatados ao fim daquela manhã. Naquele momento havia dois cômodos sendo escavados no palácio. “Nos primeiros meses podíamos ter sete ou oito equipes trabalhando simultaneamente.”
Atrás de Maciel havia itens espalhados pelo chão, em caixotes, estantes e sobre as mesas. Estavam ali microscópios antigos de alguns dos primeiros laboratórios do Museu Nacional; a réplica de uma máscara egípcia; a placa que identificava o Bendegó, maior meteorito já encontrado no Brasil; uma das estátuas que adornava o topo da fachada do palácio; uma efígie metálica com o rosto do naturalista dinamarquês Peter Lund, tido como pai da paleontologia no Brasil; e itens contemporâneos usados pelos funcionários, como uma moringa com a estampa “Gentileza gera gentileza”.
A fase atual das buscas é de transição. “Estamos saindo da retirada dos grandes escombros para um trabalho cada vez mais fino e detalhado”, disse Claudia Carvalho. A expectativa é que, na etapa que começa agora, sejam identificados itens de pequenas proporções ou muito fragmentados.
Só ao final do resgate será possível ter uma noção exata da quantidade de itens recuperados – e da proporção que eles representam em relação ao acervo original. Ao final das escavações dos escombros a equipe de resgate fará um inventário das peças e de seu estado de conservação, antes que as coleções sejam encaminhadas para os respectivos curadores. Claudia Carvalho estima que isso aconteça, na hipótese mais otimista, no meio do segundo semestre, mas os trabalhos podem se estender até o início do ano que vem.
O material resgatado será a base do futuro acervo do Museu Nacional. Além disso, várias instituições do Brasil e do exterior se comprometeram a doar material tão logo as condições estejam restabelecidas, conforme disse Alexander Kellner. “Mas só valerá a pena se tivermos um prédio com condições excepcionais de segurança para as pessoas e para as coleções”, continuou o diretor. “O Brasil tem que merecer esse material.” No fim do ano passado, o Ministério da Educação anunciou que destinaria 5 milhões de reais para que a Unesco elaborasse o projeto da reforma do palácio. “Gostaríamos de começar a obra ainda este ano”, afirmou Kellner. Mas não será preciso esperar o fim da reforma para rever o acervo: o museu planeja para breve uma exposição com parte do material resgatado.