minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Ilustração: Carvall

questões jurídico-políticas

O PL das Fake News, os sujos e mal lavados

Big techs jogam pesado, mas Judiciário não deveria usar ameaça de prisão para enquadrar o debate público sobre regulação da internet

Rafael Mafei | 18 maio 2023_11h02
A+ A- A

O adiamento da votação do PL 2630, o chamado “PL das Fake News”, acirrou ânimos no governo e no Supremo Tribunal Federal (STF). A culpa da incapacidade de garantir aprovação do projeto recaiu sobre as empresas de tecnologia, que teriam colocado o Congresso Nacional “de joelhos”, disse o relator Orlando Silva (PCdoB-SP), para impedir a votação. Talvez um exagero para encobrir uma dificuldade maior do governo, que tem sido incapaz de aprovar qualquer coisa relevante no Legislativo, com ou sem oposição das big techs.

No rescaldo do adiamento da votação do PL 2630, há dimensões do debate que precisam ser diferenciadas. A primeira, já bastante tratada na imprensa, diz respeito aos méritos e deméritos do projeto de lei. A segunda, à legitimidade da participação, no debate político, das plataformas de internet da forma como isso ocorreu nos últimos dias. Uma terceira questão, distinta das anteriores, diz respeito aos empenhos do Supremo Tribunal Federal, em especial do Ministro Alexandre de Moraes, em favor da aprovação da nova regulamentação para a internet pelo Congresso. 

Esses aspectos devem ser diferenciados porque qualquer posição sobre um deles não implica, nem justifica, uma posição sobre as demais. Alguém pode achar que a internet precisa de uma nova regulamentação e que o PL 2630 é positivo, mas que as empresas não têm o direito de fazer o que fizeram e que por isso o STF e Alexandre de Moraes agiram bem ao respondê-las com firmeza. Ou que o PL é positivo, mas que as empresas têm o direito de se manifestar através das plataformas que controlam e que Moraes errou a mão ao censurá-las. 

 

Poderia o Google ter colocado um link na sua home fazendo propaganda contra o projeto, como fez? Não é a primeira vez que empresas de tecnologia se valem de sua estrutura de interação com usuários para se opor à regulação de suas atividades. Em um contexto semelhante, há três anos, a empresa fez parecido na Austrália: quando o parlamento do país discutia uma das primeiras leis dessa nova geração regulatória, que cobra mais das corporações, o Google publicou uma carta aberta que era apresentada a seus usuários por um pop-up na home do buscador. “O modo como os australianos usam o Google está em risco. Sua experiência de busca sofrerá danos com a nova regulação.” De tão ostensiva, a caixa cobria até uma parte do emblemático logo colorido do buscador. Em resposta, a agência de proteção a consumidores e à livre concorrência retrucou com uma nota curta e contundente, que acusava o Google de desinformação. A empresa foi amplamente criticada por ter empregado uma tática de disseminação de pânico entre os usuários. O lobby do terror não teve sucesso: a lei australiana foi aprovada, sendo hoje uma das inspirações para o debate legislativo brasileiro.

Há precedentes também no Brasil. Em 2017, o Congresso discutia um projeto de lei para o transporte privado individual de passageiros. Na ocasião, as empresas do setor, lideradas pela Uber, enviaram mensagens a seus usuários conclamando-os a assinar um manifesto contra uma versão mais dura da lei, que praticamente equipararia motoristas de aplicativo a taxistas. Ao fim, a regulação acabou aprovada como alteração ao Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Uber, 99 Táxis e Cabify chegaram a ser acionadas no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por taxistas que as acusavam de concorrência desleal, mas não sofreram investidas legais por terem enviado mensagens aos usuários, ainda que já controlassem, nas suas praças de atuação, uma parcela relevante do mercado. O próprio Google já havia colocado link em sua homepage em 2022 contra o PL das Fake News.

A grande diferença do contexto atual é conjuntural. A posição das empresas de tecnologia agora é outra. Em 2017, do lado oposto ao lobby do Uber estava apenas um outro lobby, o dos taxistas, que lutava pelo protecionismo regulatório que lhes permitia fornecer um serviço pior e mais caro. A disputa limitava-se a saber se consumidores deveriam ou não poder contar com um serviço diferente, mais moderno e, principalmente, mais desejado pela população. O status quo desvantajoso aos consumidores era aquilo que as empresas de tecnologia buscavam alterar. Já no atual debate sobre a nova regulação das plataformas, a posição das big techs é a oposta: o status quo as beneficia, a maior parte da população deseja uma regulação mais rígida das plataformas, mas elas brigam para que tudo continue como está. As gigantes do Vale do Silício são os taxistas reacionários da vez. 

Politicamente, é impossível ignorar que a discussão atual tem como pano de fundo o 8 de janeiro, a invasão ao Capitólio, a desinformação epidemiológica na pandemia e a ascensão da extrema direita política, tão hábil nas redes. Ou seja, é grande o estoque de evidências hoje disponíveis sobre as externalidades sociais negativas da atual regulação das plataformas. Consequentemente, a própria percepção social sobre a internet mudou: ao lado das vantagens inequívocas que propicia, sabemos que ela também é fonte de problemas que precisam ser enfrentados por uma regulação mais atual. A internet é boa, mas talvez possa melhorar – como os táxis de antes.

 

A mudança de contexto dos últimos anos explica o aumento da pressão política sobre as plataformas. Mas quem deseja enquadrá-las como autoras de atos ilícitos, por seu comportamento no debate sobre o PL 2630, deve apontar quais leis foram infringidas por sua conduta. Não basta recorrer a bordões como “abuso de poder econômico”: é preciso que seu comportamento seja enquadrado em leis proibitivas, principalmente para justificar as investidas criminais lideradas por Alexandre de Moraes e pela vice-PGR Lindôra Araújo.

Na legislação vigente, a categoria que mais parece apta a emoldurar em conduta ilícita a blitzkrieg digital contra o PL 2630 é a do abuso de posição dominante. O PL alteraria regras que impactam o mercado de publicidade digital, e as empresas estão usando suas estruturas e tecnologias para assegurar que continuem dominando esse filão, em detrimento da mídia tradicional. Quando uma empresa se vale de uma tecnologia que domina, e que lhe garante controle sobre 20% ou mais de seu mercado, para atuar de forma abusiva, inclusive visando a uma regulação mais vantajosa ao seu negócio, essa conduta poderá ser considerada infração à ordem econômica. Sob essa visão, o domínio absoluto que o Google tem sobre o mercado de buscadores imporia à empresa um dever de especial comedimento no uso de sua própria plataforma. O Google pode comprar anúncios de página inteira para propagandear sua posição em veículos da mídia tradicional, como de fato fez; mas nenhum jornal tem a opção de colocar um link na página no Google fazendo o contraponto à posição da empresa. A questão aqui não seria a empresa ter o direito de se manifestar, pois ela sem dúvida o tem; mas sim a forma escolhida para fazê-lo. Tanto Google, quanto Meta, que também teriam usado suas plataformas para convocar seus usuários a se insurgir contra o PL 2630, estão sendo investigadas por isso.

Mais difícil é saber como seria possível enquadrar as empresas e seus dirigentes em algum dos crimes que têm sido aventados para o caso. A imediata reação do ministro Alexandre de Moraes foi determinar à PF que investigasse as condutas das empresas, sem indicar quais crimes teriam sido, em tese, cometidos. Só após a manifestação da vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo foi possível ter alguma ideia: os crimes cogitados seriam a tentativa, “com violência ou grave ameaça”, de abolir o estado de direito; fazer publicidade “enganosa ou abusiva”, ou “capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”; atingir domínio de mercado mediante ajuste de empresas; e induzir consumidores a erro mediante afirmação “enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço”. Em nenhum desses casos parece haver ajuste adequado entre a proibição da lei e a conduta das empresas, condição indispensável para a responsabilização penal. 

A impressão que fica é que esse novo braço do inquérito das milícias digitais tem como principal objetivo não apurar um crime cometido no passado, como é próprio das investigações criminais, mas sim refrear a continuidade da campanha das big techs contra o PL 2630, para aumentar as chances de sua aprovação. 

 

Qualquer que seja a posição que se tenha quanto ao mérito do PL 2630 e à postura reativa das empresas de tecnologia, é evidentemente impróprio que um órgão do Poder Judiciário se valha de sua posição de poder, especialmente através de ferramentas processuais penais, de modo a desequilibrar um debate político sobre matéria em tramitação parlamentar. Essa impropriedade é ainda mais óbvia quando se trata de um assunto no qual muitos membros do tribunal têm lado declarado, a começar pelo próprio Alexandre de Moraes. 

Importante destacar: não é impossível que um tribunal de cúpula, como o STF, participe de um debate legislativo sobre um tema de seu interesse direto. Questões que afetam a estrutura do Judiciário, a carreira da magistratura e os controles sobre juízes normalmente contam com interlocução entre Legislativo, Executivo e Judiciário, como ocorreu com a emenda constitucional que criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2004. Magistrados também podem participar como especialistas em comissões de juristas, como fez o ministro Luiz Fux na reforma do Código de Processo Civil. 

Em outras ocasiões, tribunais podem usar seu poder de agenda para pautar temas nos quais entendem que a atuação legislativa é necessária. No modelo de freios e contrapesos, tanto no Brasil quanto em outros países, é possível que o Judiciário atue na omissão de outros poderes pautando ações, digamos, incômodas. Foi assim nos julgamentos sobre a equiparação da homotransfobia ao racismo e o orçamento secreto, apenas para ficar nos exemplos mais recentes. É por esse caminho que o Supremo ameaça seguir agora, ao pautar para esta semana alguns casos que podem eliminar a proteção do Marco Civil da Internet às redes sociais pelos conteúdos postados por seus usuários. O argumento seria que o atual modelo regulatório é insuficiente para tutelar direitos individuais, como a prevenção e reparação de danos à honra, e direitos difusos, como a proteção suficiente de consumidores. Decidir esses casos será o jogo jogado.

Mas nada disso se assemelha a magistrados entrarem em uma negociação legislativa, num tema que lhes interessa diretamente, com o Código de Processo Penal debaixo do braço. Isso é fenômeno de outra natureza, sem lugar em uma democracia. Uma das anomalias que caracterizou a Lava Jato foi justamente a sobreposição, nas mesmas pessoas, dos papéis de atores do sistema de justiça criminal e defensores de pautas legislativas (naquele caso, as famigeradas “dez medidas contra a corrupção”). O abuso do poder econômico é apenas uma das formas de distorção de uma agenda regulatória; o abuso de poder judicial, especialmente com as armas do processo penal, é outra. Entre sujos e mal lavados, todos conspurcam o debate político.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí