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    "E lá vêm eles de novo", narrou Galvão Bueno, prenunciando o quinto gol. A frase é rica em significados. Quem são eles, além dos jogadores alemães? Os europeus de novo, uma nova colonização? A recondução do Brasil, agora no futebol, a seu lugar subalterno de destino? Foto: Adrian Dennis/AFP

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Uma tragédia em sete atos

O 7x1 desvelou o Brasil como os bárbaros nos últimos dias de Roma: por trás da fachada preservada estava um país corroído, perdido na história

Pedro Lerner, especial para a piauí | 04 jul 2024_09h03
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O 7×1, que completa uma década neste mês de julho, é o acontecimento cultural mais importante do primeiro quarto do século no Brasil. Ocorrido no campo decisivo do futebol, onde o país fincou as raízes de sua identidade a partir dos anos 1930, fez muito mais do que chocar as 58 mil pessoas presentes no Mineirão, as 428 milhões que assistiram ao vivo do mundo inteiro e as incontáveis que travaram contato com as imagens nos dias que se seguiram. A derrota espetacular, vivida no contexto das manifestações de 2013 e dos protestos contra a realização da Copa do Mundo, trouxe complexos nacionais à superfície, inspirou uma torrente inesgotável de memes e fez morada permanente em nosso imaginário coletivo. Tornou-se o segundo resultado futebolístico, além do frustrante 0x0, a ter um significado geral na língua portuguesa.

Passados dez anos, convém examinar esse acontecimento com mais atenção do que aquela que lhe foi dedicada até o momento. José Miguel Wisnik, autor do livro definitivo sobre o futebol brasileiro, Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008), publicou apenas uma coluna de jornal sobre o 7×1, em O Globo, quatro dias após o jogo, onde se refere ao acontecimento como “catástrofe” (“ainda é 1950, só que sem a mesma inocência trágica”) e vê no colapso da seleção brasileira o fantasma de dom Sebastião, o jovem rei português que desapareceu na África após perder a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, durante a qual se diz que ele ficou sem ação, paralisado. “O sebastianismo doentio”, escreveu Wisnik, “é a crença na volta da entidade Futebol Brasileiro, como se este estivesse sempre pronto a encarnar. (…) Polarizado pelo passado e por um futuro de miragem, o presente contém o buraco negro em que colapsa inconscientemente a seleção, quando fracassa o seu papel messiânico”.

Nuno Ramos, autor do ensaio Os suplicantes: aspectos trágicos do futebol, nos dedicou um pouco mais, algumas páginas na piauí de agosto de 2014. É um texto com boas observações sobre a campanha do Brasil na Copa, mas que acaba trilhando o caminho que Wisnik já havia indicado. Se saiu na piauí de agosto, de toda forma, é porque foi finalizado em julho. As reflexões de Nuno Ramos e José Miguel Wisnik sobre o 7×1, em suma, foram escritas poucos dias após o jogo.

Os bons comentários, nos anos seguintes, vieram de onde seria mesmo de se esperar. Para Tostão, segundo Wisnik o mais literário de nossos críticos esportivos, o resultado foi o mais espetacular da história do futebol. Os professores Marcelino Rodrigues da Silva e Elcio Cornelsen, que comandam desde 2010 um importante núcleo de estudos dedicado ao futebol na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escreveram respectivamente sobre o impacto do 7×1 na imagem que fazemos de nós como país e a cobertura na mídia alemã da Copa de 2014, retratada como Um conto de fadas de verão, título do artigo de Cornelsen. Sérgio Rodrigues, autor do melhor romance brasileiro sobre futebol, O drible (2013), colocou o 7×1 no centro de sua retrospectiva da década na Folha de S.Paulo. Mas ninguém parece ter levado a cabo o programa indicado por Wisnik em Veneno remédio: “prestar a atenção no jogo como um todo, como uma partitura, como uma trama onde cada detalhe diz algo sobre o conjunto, como um texto cifrado e cheio de enigmas”, adotando diante de uma partida de futebol “um procedimento de leitura do jogo que corresponde ao melhor estilo de um crítico literário”. 

Analisar um jogo de futebol com procedimentos e categorias da crítica literária talvez soe como um projeto disparatado. Para o leitor de Veneno remédio, no entanto, a sugestão feita na página 401 parece menos uma extravagância do que um desdobramento natural das quatrocentas páginas anteriores. O livro é, ao fim e ao cabo, uma obra de crítica literária aplicada ao futebol. A análise do jogo de futebol como livro, no entanto, é um programa a se desenvolver. Wisnik não esboça uma metodologia ou indica procedimentos críticos, que ficam, então, por ser inventados. É o que venho tentando episodicamente ao longo dos últimos anos, movido pela crença, amplamente amparada em Veneno remédio, de que os detalhes do jogo entre Brasil e Alemanha dizem algo não somente “sobre o conjunto” da partida, mas também, junto com o conjunto, sobre o nosso país e seu momento histórico. 

Se a forma romance vem encontrando dificuldades para expressar a era dos eventos climáticos extremos, como sugere o escritor indiano Amitav Ghosh em um livro recém-lançado no Brasil, quem sabe um jogo de futebol não terá sido a inesperada obra-prima literária capaz de revelar algo sobre nosso tempo.

 

A afinidade entre futebol e literatura não é um devaneio de críticos literários. Christian Bromberger, antropólogo que estudou as rivalidades e identidades torcedoras em cidades da França, da Itália e do Irã, afirmou que uma grande partida de futebol é “um evento exemplar que condensa e teatraliza, à maneira da ficção lúdica e dramática, os valores fundamentais que moldam nossas sociedades”. No Brasil, também no campo da antropologia, Arlei Sander Damo definiu o jogo de futebol como um complexo de relações “que a cada mudança de posição constituem uma trama, um enredo”, e as ações dos jogadores como “processos sociais e simbólicos que podem ser tomadas como narrativas em primeira mão”. 

E se é mesmo possível interpretar uma partida de futebol como literatura, o impulso inicial terá partido de um cineasta, Pier Paolo Pasolini, para quem o futebol era um “sistema de signos não verbal” nos moldes da pintura, do cinema ou da moda. O curto e nada rigoroso ensaio Il calcio “è” un linguaggio con i suoi poeti e prosatori (o futebol “é” uma linguagem com seus poetas e prosadores), que o italiano publicou em 1971 sob o impacto da final da Copa de 1970, é onde aparecem pela primeira vez as noções de prosa e poesia para se referir a procedimentos e estilos de jogo no futebol.

Para Pasolini, as “palavras futebolísticas” eram “formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada”, através da combinação de fonemas. Suas variações eram potencialmente infinitas, mas era possível discernir de forma geral entre um futebol europeu em prosa, fosse ele realista como o dos ingleses ou estetizante como o dos italianos, e um futebol sul-americano em poesia, cujo melhor exemplo seria o brasileiro. Wisnik, que aponta o texto de Pasolini como a motivação inicial para que considerasse escrever sobre futebol, resume assim: “Futebol em prosa significava, para ele, jogo coletivamente articulado, buscando o resultado por meio da sucessão linear e determinada de passes triangulados”, enquanto “o futebol poético suporia dribles e toques de efeito, ao mesmo tempo gratuitos e eficazes, capazes de criar espaços por caminhos não lineares”. 

Ao falar em prosa e poesia em 1971, Pasolini alçava o futebol a objeto da semiologia então em voga e estabelecia um novo arcabouço conceitual para tratá-lo como expressão cultural. Nove Copas do Mundo depois, Wisnik partiu do dualismo de Pasolini para apresentar o futebol como uma batalha “que admite o épico, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico”, capaz de comportar “múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e (…) de absorver e de expressar culturas.”

Essa capacidade de absorver e expressar culturas será a característica decisiva para o triunfo global do futebol como esporte popular. Será, também, a que lhe permitirá tornar-se um campo fundamental da experiência brasileira a partir da década de 1930. O futebol brasileiro é, afinal, uma invenção modernista, e em dois sentidos. Primeiro dentro de campo, na medida em que a maneira de jogar futebol que vai se consolidando no Brasil a partir da década de 1920 tem todas as características da antropofagia defendida por Oswald de Andrade em 1928: as camadas populares brasileiras se apropriam da invenção inglesa e lhe imprimem uma configuração original – devoram-na e a regurgitam em forma superior. Mas o futebol brasileiro também é uma invenção modernista em sentido propriamente literário, uma vez que os escritores responsáveis pela imbricação entre futebol e identidade nacional, principalmente Gilberto Freyre e Mário Filho, são representantes do que Antonio Candido chamou de “projeto ideológico” do Modernismo dos anos 1930 – surgido durante o primeiro governo de Getúlio Vargas com a ambição de unificar o país, em contraste mas também em continuidade com o “projeto estético” da década anterior.

No clássico ensaio Literatura e Cultura de 1900 a 1945, publicado em duas partes entre 1953 e 1955, Candido atribui ao Modernismo uma “adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice”. São os mesmos elementos destacados pelos autores que reivindicarão o futebol como fator de identidade nacional. O esporte inventado na Inglaterra participa tanto do momento estético quanto do momento ideológico do Modernismo brasileiro: primeiro propriamente como jogo, investido da paixão popular e dentro do qual começa a se desenvolver um estilo brasileiro a partir da aceitação de jogadores negros e mulatos na década de 1920 (processo descrito por Mário Filho em O negro no futebol brasileiro); depois através de sua elaboração literária por Gilberto Freyre e Mário Filho nos anos 1930. O futebol de poesia de Pasolini é a versão tricampeã do mundo do futebol dionisíaco anunciado por Freyre em 1938, que exprimia “o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro” presente “em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil”.

Com o tricampeonato mundial, conquistado em 1970, o Brasil realiza no esporte mais popular do planeta a façanha que Antonio Candido atribuíra ao Modernismo: “inaugura um novo momento na dialética do universal e do particular, inscrevendo-se neste com força e até arrogância, por meio de armas tomadas a princípio daquele”. A partir daquele ano, em que Pelé se consagrou como rei, o futebol brasileiro oscilará também dialeticamente entre o universal e o particular, entre os modelos e inovações europeus e a identidade local, com resultados diversos e também complexos, onde nem a vitória nem a derrota, como aliás é próprio do futebol, são capazes de resolver as questões que levantam.

Wisnik afirma que o futebol brasileiro consolidou uma linguagem, um repertório próprio, e que não se tratará mais, a partir da conquista no México em 1970, “de descobrir e afirmar as suas bases, mas de recriar-se ou perder-se em função delas, dentro do quadro das grandes transformações pelas quais passará o futebol a partir dos anos 70”. As derrotas tecnocráticas de 1974, 1978 e 1990, a tragédia da seleção utópica de 1982 e seu prolongamento em 1986, o título incaracterístico de 1994 e a tentativa fracassada de repeti-lo em 2010 (com um time defensivo liderado por Dunga, primeiro capitão, depois técnico), a síntese de 2002 e as atuações catatônicas de 1998 e 2006 diante da França de Zinedine Zidane: todas as Copas do Mundo desde 1970 se inscrevem na tentativa do futebol brasileiro de acertar as contas com seu passado mítico. Wisnik e o psicanalista Tales Ab’Sáber, este em artigos publicados na Folha de S. Paulo em 2002 e 2006, são os cronistas do futebol brasileiro como índice dos nossos sonhos e também dos nossos fracassos como país.

 

Universidade Yale, Estados Unidos, abril de 1994. O Brasil não vence a Copa do Mundo desde o tricampeonato em 1970. Um mês antes de a seleção brasileira desembarcar no país para conquistar o tetra, Roberto Schwarz apresenta pela primeira vez seu ensaio Fim de século. Fazia já alguns anos que os escritos e conferências de Schwarz sobre o Brasil eram influenciados pelo alemão Robert Kurz e seu O colapso da modernização, publicado na Alemanha em setembro de 1991. Desde a década anterior, afirmou Schwarz em Yale, já estava claro que no chamado terceiro mundo “o nacionalismo desenvolvimentista se havia tornado uma ideia vazia, ou melhor, uma ideia para a qual não havia dinheiro”, uma vez que, nas novas condições tecnológicas, para o Brasil e outras nações com características similares, “as inversões necessárias para completar a industrialização e a integração social do país se haviam tornado tão astronômicas quanto inalcançáveis”. A modernização brasileira, portanto, colapsara.

O futebol brasileiro, original e triunfante, fora uma espécie de fiador dessa modernização, além de um sucedâneo da própria literatura na formação e elaboração do país. Daí o futebol ter se tornado, como apontou Wisnik, “uma via incontornável para se pensar as formas paradoxais de inserção do Brasil no mundo contemporâneo”, ou “a maneira privilegiada pela qual a nação ritualiza um acerto de contas consigo mesma (…), do qual as Copas do Mundo se tornaram, a cada quatro anos, a cena principal”. 

O que a derrota de 2014 revela, portanto, sobre a inserção do Brasil no mundo contemporâneo? Isaiah Berlin atribui ao obscuro filósofo alemão Johann Georg Hamann a crença de que Deus fala conosco através da história. Se a história fala conosco através do futebol, como parecem crer Wisnik, Ab’Sáber e outros, o que diabos Deus quis nos dizer com o 7×1? Será essa a esfinge que vem nos devorando à espera de que a decifremos? 

Símbolo da desilusão com o Brasil, o colapso do 7×1 parece ser também síntese e sintoma de processos anteriores, de longa duração: o impasse da modernização brasileira após as crises do petróleo e a terceira revolução industrial, lentamente assimilado desde a década de 1980 até sua eclosão como revolta popular em 2013; e o consequente fracasso da nossa industrialização, que resultou no fim da esperança de um futuro grandioso, substituída pela reprimarização da economia e a contenção de danos como horizonte político. 

Mas não foi só isso. Tales Ab’Sáber apontou, em seus artigos, para um processo correlato no campo simbólico: o desencantamento da seleção e do futebol brasileiros a partir do que podemos chamar de uma derrota civilizatória na Copa do Mundo de 1982.

Escrevendo em maio de 2002, às vésperas da conquista do penta, Ab’Sáber se referiu à seleção brasileira de 1982 como um “objeto mágico de nosso desejo perdido de uma civilização local” e classificou a reação à derrota frente à Itália como um ataque cruel dirigido a nós mesmos. A “demanda de eficácia sem espírito que passou a tomar conta de nosso futebol” correspondia, segundo ele, à “mesma eficácia sem valores humanos ou sociais que tomou de assalto a nossa política e a nossa cultura nos últimos dez anos”. E o “horror maior” denunciado pela história da seleção brasileira de 1982, por fim, faz lembrar os textos de Schwarz da década de 1990: o fato de que “mesmo que façamos tudo certo não atingiremos a vitória, reservada aos detentores da ordem econômica deste mundo”.

 

A crítica do 7×1 é uma tarefa tanto estética quanto politicamente relevante, para a qual este aniversário parece um bom ponto de partida. Uma década soa como a distância mínima a partir da qual avaliar os grandes acontecimentos políticos e culturais. Para fazê-lo, é preciso olhar para a campanha do Brasil até as semifinais, como fez Nuno Ramos na piauí, mas também para os lances da partida (cenas), seu encadeamento na trama geral do jogo (enredo), os estilos exibidos em campo (linguagem), as atuações dos jogadores (personagens principais e secundários), textos jornalísticos e ensaísticos sobre o jogo (fortuna crítica) e a narração da partida na Rede Globo, canal de tevê com a maior audiência no país (recepção).

O cenário parece um bom começo. Se o Maracanã, maior estádio do planeta na época da primeira Copa do Mundo disputada no Brasil, foi em 1950 “a arena ideal para o balanceio fragoroso entre a ambição de grandeza máxima e a impotência infantilizada” do povo brasileiro, como escreve Wisnik em Veneno remédio, o que se pode dizer do Mineirão, palco do 7×1, inaugurado em 1965 na planejada Belo Horizonte como o mais moderno estádio do país? Diz-se que os engenheiros responsáveis pela construção do Mineirão fizeram um raio X no estádio carioca, sua referência evidente, em busca de deficiências a serem evitadas. Não puderam deixar de reproduzir, ao que parece, a vocação para sediar derrotas traumáticas do Brasil.

Os personagens principais: o goleiro Júlio César, protelando a aposentadoria na desconhecida liga canadense de futebol, e seus sete gols sofridos; o zagueiro David Luiz, destaque do Brasil na Copa do Mundo, e seu surto voluntarista que leva ao que o jornalista inglês Tim Vickery classificou como a pior atuação de um jogador de alto nível em um jogo de grande importância em todos os tempos; e o técnico Luiz Felipe Scolari, campeão em 2002, cujas aparições estupefatas agora simbolizam o próprio fracasso da modernização brasileira. 

Há também alguns protagonistas ausentes: o contundido Neymar, principal jogador daquela equipe, com uma vértebra quebrada por uma joelhada na partida anterior, e o suspenso Thiago Silva, capitão do time, cujo pranto diante de uma decisão por pênaltis uma semana antes permanece desconcertante. Além deles, podemos acrescentar outros dois: Paulo Henrique Ganso, o parceiro e antípoda de Neymar em seus primeiros anos como profissional, jogador cerebral, elegante e radicalmente associativo, cuja carreira aquém das expectativas simboliza o ocaso da figura organizadora do camisa 10; e Robinho, principal jogador brasileiro na Copa do Mundo anterior, disputada na África do Sul, cuja trajetória, de resgatador do “verdadeiro futebol brasileiro” a condenado por estupro na Itália, acabou se tornando um comentário perverso sobre as esperanças e fracassos do Brasil no primeiro quarto do século XXI.

Um goleiro e um zagueiro em ação, um técnico à beira do campo, um craque ferido, um capitão suspenso. Mais onze alemães e nove brasileiros. O jogo vai começar. Durante a execução dos hinos nacionais, três protagonistas estão ligados de maneira curiosa: Júlio César e David Luiz seguram, em atitude inédita, o uniforme do lesionado Neymar, exibindo para as câmeras o nome e o número do craque ausente. Eles cantam a plenos pulmões o hino brasileiro. Diante do desaparecimento da figura do camisa 10 como “totalizador do time”, que Tostão foi o primeiro a notar – ou, nas palavras de Wisnik, o “declínio do papel eminentemente dialético do meia-armador” –, é fascinante que o capitão e o jogador mais experiente da seleção tenham portado como estandarte, a minutos da maior humilhação do futebol brasileiro, a camisa 10 de uma figura ausente. No último lance, no apagar das luzes, o único gol brasileiro será marcado justamente por Oscar, o verdadeiro meia-armador do time (a camisa 10 é o índice de uma função mas também um símbolo de status, e Neymar a usava não por ser o organizador, mas por ser a estrela da seleção), que deveria pensar e dialetizar o jogo, conferir um sentido e uma síntese à equipe, do que obviamente não foi capaz.

 

Para analisar a partida proponho dividi-la em sete atos de 15 minutos cada um. No primeiro, em que a Alemanha consegue abrir o placar após falha de marcação numa cobrança de escanteio, temos ainda um jogo mais ou menos convencional de Copa do Mundo. No segundo ato a história acontece: implosão psíquica, quatro gols em seis minutos e com meia hora de jogo a seleção mais tradicional do futebol perde uma semifinal de Copa do Mundo por 5×0 jogando em casa. Franco Moretti vê o romance europeu do século XIX como uma mistura de “bifurcações” e “enchimentos”, sendo estes a inovação que permitiu à literatura acompanhar o ritmo da vida. O futebol, surgido no mesmo século XIX, é o esporte dos enchimentos por excelência, feito de tempos mortos e especulações que só ocasionalmente se bifurcam em chances de gol. Naqueles seis minutos, porém, as bifurcações se sucedem de forma vertiginosa e então, quando cessa a avalanche, só resta matar o tempo até que os heróis humilhados possam deixar o palco.

O terceiro ato, então, é o mais comovente. Em todos os outros esportes com bola ou há um intervalo entre os pontos, cuja duração não é limitada (vôlei e tênis são exemplos), ou o cronômetro é interrompido com frequência, tanto de forma automática quanto por solicitação de atletas ou treinadores (basquete e futebol americano são exemplos). Já o jogo de futebol, “um pouco como o mar, está rugindo à nossa frente – uma vez posto em movimento, não deve ser interrompido”. As aspas são de Nuno Ramos, que afirma que muitos dos “aspectos propriamente trágicos” do futebol “vêm desta literalidade de tempo e espaço, desta contiguidade com a vida”. A tragicidade do 7×1 aparece com força, portanto, nesses 15 minutos de contiguidade entre o quinto gol da Alemanha e o fim do primeiro tempo. 

“O apito final”, escreve Ramos já nas primeiras linhas de Os suplicantes, “estabiliza violentamente aquilo que, no transcorrer do jogo, parece um rio catastrófico de mil possibilidades”. Além do apito final, somente o fim do primeiro tempo pode parar o cronômetro e o “rio catastrófico”. Ele liberta os jogadores e ao mesmo tempo consuma a tragédia. Embora falte ao jogo o caráter heroico que facilitaria sua inclusão no universo do “trágico”, observação pertinente que agradeço a Elcio Cornelsen, acredito haver sim uma dimensão trágica no 7×1. O herói é o próprio futebol brasileiro com seu passado mítico.

O 7×1 é uma tragédia apressada, contemporânea, onde a fúria do destino não é sequer capaz de esperar o último ato. Zeus volta o olhar para Belo Horizonte e vê o Brasil jogando uma semifinal de Copa do Mundo em crise política, econômica e social, com jogadores e futebol medíocres, enfrentando a melhor seleção do torneio. Apenas vinte minutos e o Brasil já perde por 1×0, seremos eliminados, será mais um jogo normal de Copa. Mas Zeus acha que o Brasil não devia sequer ter chegado até essa fase. Foi coisa de Poseidon aquela vitória nos pênaltis contra o Chile. E ele resolve, por isso, nos dar uma lição. 

“O instante traumático e a catástrofe súbita estão no horizonte do provável, se uma superioridade numérica inequívoca não vier a dissipá-la”, escreve Wisnik citando Ramos e pensando nas derrotas tardias ou injustas, quando o gol “abate-se como um nocaute que surpreende à traição uma equipe que vinha de martelar incessantemente a posição adversária”. O 7×1, em sua excepcionalidade, é um caso atípico onde o “instante traumático” é antes uma sucessão de instantes traumáticos, e a “superioridade numérica inequívoca” é o resultado da “catástrofe súbita” em vez de dissipar sua possibilidade.

 

Os próximos 15 minutos são os do intervalo. Relatos reunidos pela ESPN Brasil no aniversário de seis anos do 7×1 dão conta de que os jogadores se negavam a aceitar a derrota, enquanto o técnico Luiz Felipe Scolari procurava chamá-los à realidade. Ao mesmo tempo, milhões de telespectadores assistiam a propagandas que manifestavam apoio e confiança na seleção brasileira, que a essa altura, para desespero dos departamentos de marketing, perdia por 5×0 uma semifinal de Copa. Uma música do Itaú, muito repetida durante e no período anterior ao torneio, exortava o Brasil a “mostrar sua força”. E na peça de maior repercussão, produzida pela Sadia, crianças pediam que os jogadores “jogassem pra elas” já que nunca haviam visto o país vencer uma Copa.

Aproveitemos para colocar em foco a transmissão da partida. Além de fornecer uma camada discursiva ao jogo, o relato de Galvão Bueno merece atenção por ter se tornado, para os brasileiros, um elemento inseparável da memória do 7×1. No aniversário de um ano da derrota, em 8 de julho de 2015, o Globo Esporte colocou no ar a Galvãoteca do 7×1, acervo online com as frases mais marcantes do narrador durante a transmissão.

Na narração de Galvão, duas frases se tornaram emblemáticas. Virou passeio, proferida no momento do quarto gol alemão, se destaca pela concisão perfeita ao resumir em duas palavras o sentimento geral do espectador da partida. Mas e lá vêm eles de novo, soando poucos segundos depois, na iminência do quinto gol, é a que parece mais rica em significados. Quem são eles, para além dos jogadores alemães que de fato se precipitavam avidamente em direção à área brasileira? Os europeus de novo, uma nova colonização? A recondução do Brasil, agora no futebol, a seu lugar subalterno de destino? É o que parece sugerir Elcio Cornelsen ao lembrar a estadia da seleção alemã na vila de Santo André, que pertence ao município baiano de Santa Cruz Cabrália: “num revival simbólico de Cabral, os ‘conquistadores’ alemães chegavam a 8 de junho de 2014 para ‘descobrir’ o Brasil a partir de seu ponto inicial, Santa Cruz Cabrália, na costa Sul do estado da Bahia.” Cornelsen conta ainda que “a imprensa alemã deu amplo destaque ao contato que os ‘conquistadores’ tiveram com os índios”; e lembra que “a dança que os jogadores aprenderam com os pataxós foi reproduzida por eles durante as comemorações após a vitória contra a seleção da Argentina (…) ainda no gramado do Maracanã”.

Que “eles” sejam os europeus, que “lá vêm de novo” colonizando o Brasil ou ao menos devolvendo-nos ao polo atrasado de alguma ordem global, é hipótese de todo compatível com a interpretação do 7×1 como figuração do colapso da modernização brasileira descrito por Roberto Schwarz. Em linhas gerais: décadas de industrialização haviam sido em vão e a integração nacional era agora uma hipótese improvável, pois chegamos atrasados e não tínhamos mais como acompanhar a evolução tecnológica dos países ricos. A superação do subdesenvolvimento, de todo modo, sempre fora uma miragem. Pois bem: a Alemanha se tornou a maior potência econômica europeia no intervalo entre os textos de Schwarz e a Copa de 2014; à seleção brasileira faltou sobretudo integração em Belo Horizonte, ou coesão, outra palavra frequente do crítico, com os alemães avançando pelo mesmo “lugar de um vazio” que Tales Ab’Sáber identificou na seleção de 1982; e a situação pós-catastrófica dos jogadores brasileiros após o quinto gol alemão, batalhando sem esperança como os trabalhadores urbanos onde a modernização colapsou, não deixa de lembrar a dos “sujeitos monetários sem dinheiro” de que fala Robert Kurz. A dinâmica da seleção brasileira em Belo Horizonte, resumindo, foi a mesma desagregação que sucede a falência do desenvolvimentismo no Brasil.

Mas peço licença para juntar à hipótese dos europeus uma outra, complementar. Recuamos pouco mais de um milênio e então a Europa sequer foi nomeada, a América sequer foi imaginada e os alemães já não são os portugueses, com quem aliás nunca se pareceram, mas bárbaros germânicos invadindo uma Roma decadente. Os arianos de semblante calmo, enfrentando o Brasil com camiseta idêntica à do clube brasileiro de maior torcida, são de repente bárbaros dentro da muralha do Mineirão. Seria o 7×1 o nosso saque dos visigodos? O fim prefigurado de um império corroído e vazio por dentro, preservado apenas enquanto sua ficção fosse conveniente aos invasores? Era esse o país que emergira da revolução digital, da reprimarização da economia nacional e por fim, decisivamente, das manifestações de 2013? 

O 7×1, então, aponta o futuro? Para seguir na pista de Edward Gibbon, cujo Declínio e queda do império romano responsabiliza silenciosamente o cristianismo pela ruína do Império, podemos nos perguntar: seria o neopentecostalismo de David Luiz, que durante a Copa pregava abstinência sexual em suas redes sociais, e de cada vez mais brasileiros, no futebol, na sociedade e na política, o vírus que acelerou a deterioração da Nova República e do futebol que nos dera um lugar no mundo?

 

Sérgio Rodrigues escreveu que a “segunda etapa foi disputada em ritmo de farsa, com os alemães preocupados em não humilhar demais os desarvorados anfitriões – o que, claro, só os humilhava mais”. O Brasil volta do intervalo atacando com um ímpeto novo, decidido a diminuir a vantagem para sonhar, quem sabe, com a maior virada da história do futebol. Nos primeiros 15 minutos do segundo tempo, aliás amplamente esquecidos, cria uma sequência impressionante de oportunidades claras de gol, impedidas por movimentos às vezes espetaculares do grande goleiro alemão Manuel Neuer.

No trecho seguinte, entre os 15 e os 30 minutos, o ímpeto brasileiro arrefece e a Alemanha chega naturalmente a seu sexto gol. Por fim, entre os 30 e os 45 do segundo tempo, vem o sétimo. O oitavo fica por um triz: no último minuto, o meia alemão Mesut Özil aparece sozinho diante de Júlio César, mas erra o chute, e o Brasil, na sequência, marca seu único gol. Caio Prado Júnior, lembra Wisnik, defende na Formação do Brasil contemporâneo “que o ‘Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe’ no ‘quadro imenso’ da mundialização dos mercados como empreitada da Europa sobre a América, a África e Ásia”. O gol brasileiro, nosso último gesto no torneio que trouxe europeus, americanos, africanos e asiáticos a nossas terras, parece confirmar essa afirmação ao nos transformar, no terreno onde a utopia modernista da vantagem brasileira mais prosperou, em um pequeno detalhe no placar.

Depois do gol de Oscar, o jogo termina. Os repórteres entram em campo, e quem serão os entrevistados senão Júlio César e David Luiz? O goleiro reconhece o grande futebol alemão, fala em “apagão” após o primeiro gol, deixa “um beijo no coração de cada brasileiro” e cita sua falha na Copa de 2010, que trocaria de bom grado pelos sete gols que sofreu. O zagueiro-atacante, em meio às lágrimas que acabaram se tornando a imagem do 7×1, diz que só queria poder dar alegria ao seu povo, pede desculpas a todos os brasileiros, afirma ter aprendido “a ser homem em todos os momentos” e traz à consciência nacional a definitiva formulação “quatro gols em seis minutos”, estranhamente não enunciada ao longo de toda a transmissão da Globo. O espetáculo termina.

 

O que ficou? Para a seleção brasileira, uma assombração pairando sobre sua participação em Copas. Nas duas edições que sucederam 2014 o Brasil foi eliminado nas quartas de final por adversários sem tradição, ficando, portanto, a uma vitória de voltar às semifinais de onde saiu desfigurado. Melhor assim? A derrota de 2022, com o empate croata saindo nos minutos finais da prorrogação após a equipe brasileira se lançar desnecessária e atabalhoadamente ao ataque, parece pedir uma interpretação psicanalítica na tradição dos artigos de Tales Ab’Sáber. 

Marcelino Rodrigues da Silva escreveu, em agosto de 2014, que após o 7×1 nós rapidamente “passamos da apreensão ao susto, do susto à tragédia e da tragédia à comédia, que se espalhou rapidamente pelo mundo virtual”, onde o “tsunami humorístico que se seguiu à derrota brasileira teve o condão de lavar nossa alma e nos deixar livres de qualquer trauma, de qualquer peso na consciência ou na memória”. Sérgio Rodrigues também lembrou a “saraivada imediata de memes e piadas” e afirmou que “o Mineiraço foi comédia-pastelão” em comparação à tragédia de 1950. Será? 

Silva afirmou, em seu artigo, que as interpretações na “velha chave do atraso e do subdesenvolvimento” haviam prevalecido, com a culpa atribuída “às estruturas arcaicas que governam o futebol brasileiro e, de resto, toda a nossa sociedade”. O texto então termina com uma inesperada hipótese otimista: “Chegou a hora, enfim, de renegociarmos a imagem que fazemos de nós mesmos, no futebol e em outros campos. O mito populista do Brasil malandro, do Brasil do samba, do carnaval e do futebol, talvez já não nos represente mais com a mesma eficácia. A oportunidade histórica de reconstruir o passado e fazer brilhar nele uma promessa de futuro está novamente aberta”.

A oportunidade se abriu, como sabemos, para o movimento que se transformará no bolsonarismo. É na ressaca do 7×1, com o futebol brasileiro humilhado e o país supostamente achando graça, que a direita mobilizada pelo impeachment, uma nova força social conservadora e bastante avessa ao samba, ao carnaval ou à malandragem, adota justamente a camisa da seleção brasileira de futebol como traje. Apoiadores de Jair Bolsonaro sairão às ruas de amarelo durante a campanha eleitoral de 2018, depois em apoio a ele durante seus quatro anos de mandato e por fim, espetacularmente, em 8 de janeiro de 2023. Para Gregório Duvivier, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 2021, “o maior vexame da seleção fez com que a extrema direita abraçasse seu figurino e dissesse: esse Brasil sou eu, e seu uniforme será meu manto. (…) Sete gols? Eu acho é pouco. Então aplaude a volta da fome, celebra a inflação, cultua o incêndio, espalha o vírus, boicota a vacina e ri dos enlutados”. 

Descontado o tom jocoso, a hipótese de uma espécie de gozo na destruição ligando o 7×1 ao 8/1 através da camisa amarela da seleção soa plausível. As próprias grafias, aliás, sugerem contiguidade: números subsequentes, um símbolo mediando, o número um mantido à direita. 7×1, 8/1, e que algum deus nos proteja do que o colapso da modernização brasileira estiver preparando para o número nove.

Pedro Arantes, Fernando Frias e Maria Luiza Menezes parecem reconhecer, no recém-lançado A rebelião dos manés, a continuidade entre os eventos de Belo Horizonte e os de Brasília ao afirmar que “a entrada em campo para o quebra-quebra fora das quatro linhas já estava condenada ao fracasso, ou a novo 7×1”. Os três autores talvez lembrem que o mais malandro dos nossos craques, a cuja comparação com Macunaíma Wisnik dedicou vinte páginas de Veneno remédio, era conhecido como mané, e que o principal estádio de Brasília, transformado no segundo maior do país para a Copa, chama-se justamente Mané Garrincha. Mas o trecho citado serve também para introduzir um último tema: o uso metafórico da expressão “7 a 1”, que se tornou desde 2014 uma constante em conversas pessoais e todo tipo de discurso que ocupa a esfera pública no Brasil. “Fruto de aberração futebolística, expressão passou a evocar ruína do orgulho nacional”, afirmou Sérgio Rodrigues na Folha, acrescentando que o 7×1 tornou-se “um ponto destacado na fraseologia da década” e “não vai embora nunca mais”.

O site colaborativo Dicionário inFormal tem hoje um verbete dedicado ao 7×1. A primeira definição: “Semifinal entre Brasil vs. Alemanha disputada no dia 8 de julho de 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte, durante a Copa do Mundo FIFA de 2014”. E a segunda: “Por conta da humilhação e surpresa do placar, a expressão virou um meme e gíria que significa humilhação ou obstáculo”. Chama atenção, aqui, a palavra obstáculo, distante da grandiloquência e dramaticidade associadas ao 7×1. Ela ecoa, por outro lado, a existência do outro e o obstáculo intransponível que a evolução tecnológica de países como a Alemanha teria representado, segundo o brasileiro Roberto Schwarz na esteira do alemão Robert Kurz, para a modernização de países periféricos como o Brasil. 

Mas para quem acredita que “o futebol vem antes e depois das artes”, participando “da força que as gerou ao mesmo tempo em que é o último dos seus avatares”, como Wisnik, as palavras mais relevantes sobre o 7×1 talvez sejam as de Marcelino Rodrigues da Silva: “O futebol, de uma forma que ninguém esperava, havia dado uma mostra estupenda de vigor, de capacidade de oferecer um espetáculo imprevisível, emocionante e dramático.” Para o bem ou para o mal, o 7×1 é nosso. Passada uma década, que críticos mais competentes comecem a interpretar nossa obra-prima.

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