Ônibus incendiados por milicianos na Zona Oeste do Rio, em 23 de outubro Foto: Reprodução/TV Globo
Como a briga entre duas dinastias milicianas explica a crise no Rio
Por trás dos 35 ônibus incendiados está um novo tipo de organização criminosa, mais pulverizada e de difícil controle
O primeiro choque veio na madrugada de 5 de outubro, quando três médicos paulistas e um baiano, que estavam no Rio de Janeiro para participar de um congresso de medicina, foram executados enquanto tomavam cerveja em um quiosque na Barra da Tijuca. A notícia, acompanhada de imagens do crime, viralizou nas redes sociais. Era como se a ordem natural dos conflitos cariocas tivesse sido quebrada e os brasileiros passassem a ver com clareza os riscos de viver em uma sociedade em que assassinos estão no poder bradando fuzis. Entre as vítimas da matança estava o médico Diego Bomfim, irmão da deputada federal Sâmia Bomfim e cunhado do deputado federal Glauber Braga, ambos do Psol. O trauma da morte de Marielle Franco se reacendeu rapidamente.
Em pouco tempo, no entanto, a polícia concluiu que os médicos tinham sido mortos por engano. Antes que o poder público tomasse uma iniciativa, outros criminosos se encarregaram de punir os assassinos. Seus corpos foram encontrados no dia seguinte, dentro de um carro.
O que o Brasil vislumbrou, nesse episódio assustador, foi a violência que marca uma nova configuração das milícias no Rio de Janeiro. Os médicos foram mortos porque um deles parecia com o miliciano Taillon Barbosa, filho do ex-sargento e também miliciano Dalmir Barbosa. A dinastia dos Barbosa – da qual faz parte ainda Dalcemir, irmão de Dalmir – lidera a milícia de Rio das Pedras, bairro da Zona Oeste, junto com outros policiais influentes (ou ao menos liderava: Taillon e seu pai foram presos nessa terça-feira, 31 de outubro, em uma operação da Polícia Federal). A família assumiu os negócios em 2009, depois da morte dos fundadores da milícia local, Félix Tostes e Josinaldo da Cruz, o Nadinho.
A dinastia familiar de Rio das Pedras é uma milícia clássica, vinculada a bicheiros com trânsito na política. Esse grupo, hoje, se vê confrontado por um tipo diferente de milícia, nascida nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz, também na Zona Oeste. Trata-se de uma milícia que se expandiu aceleradamente nos últimos anos, de forma horizontal, descentralizada, o que permitiu a seus novos participantes agirem com autonomia. Os criminosos que tentavam matar Taillon naquela noite, na Barra da Tijuca, atuam em Jacarepaguá, e fecharam parceria com traficantes do Comando Vermelho para tomar a comunidade da Gardênia Azul, uma área tradicional dos milicianos de Rio das Pedras.
Esse novo modelo miliciano se expandiu rapidamente nos últimos anos. Aliando-se ao tráfico, é hoje o grupo criminoso com mais territórios sob seu controle no Rio de Janeiro. É também um dos mais armados. Por se tratar de um modelo descentralizado, no entanto, não há unidade de ação, como nas milícias antigas. O estado do Rio está dividido em pequenos grupos, cada qual com seu chefete e suas ambições particulares. O problema das milícias entrou numa nova fase, mais imprevisível e, ao que tudo indica, mais violenta.
A milícia de Campo Grande e Santa Cruz se formou no final dos anos 1990. Chamava-se Liga da Justiça. A partir de 2014, começou a se expandir e passou a ter sua própria dinastia familiar. O líder do grupo era Carlos Alexandre Braga, o Carlinhos Três Pontes. Paisano, cria da comunidade, Carlinhos era aquilo que se convencionou chamar de pé-inchado – um segurança privado que, apesar dos trejeitos e da profissão, nunca fez carreira militar. Sem ter a mesma influência política que o grupo de Rio das Pedras, Carlinhos formou uma espécie de franchising criminal. Passou a oferecer armas e proteção para policiais e líderes comunitários – entre eles, integrantes dos velhos grupos de extermínio – montarem suas milícias em troca de participação nos lucros. A parceria com os traficantes lhe deu poder de fogo, já que alguns deles vêm estocando fuzis desde os anos 1990.
Carlinhos foi morto numa operação policial em 2017. Seu irmão Wellington Braga, mais conhecido como Ecko, assumiu o grupo. Reinou durante quatro anos, fortalecendo as parcerias com traficantes, tornou-se o criminoso mais procurado do Rio, mas, assim como Carlinhos, morreu numa operação da polícia. O poder, ainda assim, continuou dentro da família Braga: quem assumiu os negócios dessa vez foi outro irmão, Luís Antônio Braga, o Zinho. Apesar da importância do sobrenome, a transição não foi fácil: Zinho teve de brigar pela posição com Danilo Dias, o Tandera, liderança miliciana de Seropédica e Itaguaí.
Os Braga foram bem-sucedidos nos negócios. Com seu modelo de franquia, extrapolaram a Zona Oeste e levaram milícias para a Baixada Fluminense e a Região dos Lagos, além de Angra dos Reis. Entre 2006 e 2021, o território ocupado por milícias no estado do Rio cresceu 387%. Isso se deve, em boa medida, à política expansionista da família Braga.
Os Barbosa, enquanto isso, comandam uma milícia com capital político. Orbitam Rio das Pedras figuras como Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, que chegou a ser apontado como suspeito de ser o mandante do assassinato de Marielle. Outro nome influente no bairro é Rogério de Andrade, sobrinho do falecido Castor de Andrade, um dos principais nomes do bicho no Brasil. O ex-sargento Ronnie Lessa – que foi segurança de Rogério e hoje aguarda julgamento, acusado de ter matado Marielle – era sócio de um bingo clandestino na Gardênia Azul, além de ganhar dinheiro com a importação de fuzis.
Além de nomes tradicionais da elite criminal carioca, a milícia de Rio das Pedras investia em promessas, como é o caso de Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Bope, próximo à família Bolsonaro a ponto de ter sua mãe e sua esposa empregadas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Aliado aos Barbosa, Nóbrega investiu na construção de prédios clandestinos na Muzema, bairro colado em Rio das Pedras. Era assim que o ex-capitão, morto em 2020, complementava sua renda principal como agenciador de matadores de aluguel para bicheiros, serviço que prestava por meio do Escritório do Crime.
Os Braga e os Barbosa viviam uma paz armada. Até que, este ano, a situação mudou.
O Rio de Janeiro pôde celebrar, nos últimos cinco anos, uma melhora nos índices da violência. Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), o número de homicídios em 2021 foi o menor em trinta anos. O patamar se manteve estável em 2022.
O período coincide com a pandemia, mas também com uma maior estabilidade na relação entre grupos milicianos. Depois do impeachment de Wilson Witzel, em 2021, Claudio Castro (PL-RJ) assumiu o governo do Rio. Figura obscura que chegou acidentalmente ao poder, Castro tem o apoio de políticos vinculados a milícias. Sua gestão pouco fez para combater esses grupos. Herdando a estrutura deixada por Witzel, Castro comanda um governo sem secretaria de segurança – o poder é exercido diretamente pelas polícias civil e militar.
Durante a campanha eleitoral, no ano passado, o governador pôde se vangloriar da diminuição do número de homicídios no Rio, consequência dessa pax miliciana. Enquanto isso, numa demonstração de força, direcionou as polícias contra alvos mais fracos, promovendo chacinas em favelas como Jacarezinho (28 mortos, maio de 2021), Complexo da Penha (25 mortos, maio de 2022) e Complexo do Alemão (18 mortos, julho de 2022).
Foi eleito no primeiro turno. Em seguida, o caldo começou a entornar. Dados do Monitor da Violência, parceria entre o site G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que no primeiro semestre de 2023 os homicídios no Rio de Janeiro cresceram 17%, contrastando com a queda nacional de 3,4%. Na Zona Oeste, onde há maior presença de milícias, os homicídios subiram 127% de janeiro a outubro, na comparação com o ano passado, de acordo com a plataforma Fogo Cruzado.
Os números refletem o confronto, agora aberto, entre a nova e a antiga milícia. Disputas territoriais tornaram-se mais inflamadas, com tiroteios frequentes. Pouco mais de duas semanas depois do assassinato dos médicos na Barra da Tijuca, Matheus Rezende, conhecido como Faustão, sobrinho de Zinho, foi morto numa operação da polícia. Fazia poucos dias que o delegado Marcus Amin assumira o cargo de secretário da Polícia Civil, e a operação parecia feita sob medida para insuflá-lo. Dessa vez, no entanto, os milicianos revidaram. No dia 23 de outubro, incendiaram 35 ônibus e um vagão de trem, produzindo imagens que viralizaram nas redes e fragilizaram a imagem do governador.
Os milicianos de Rio das Pedras desafiaram o Estado em 2018, quando mataram Marielle em plena intervenção federal. Agora, no entanto, quem desafiou o Estado foram os milicianos de Campo Grande e Santa Cruz. Um grupo fragmentado, fortemente armado, com ampla presença nos territórios e difícil de controlar.
As milícias já tiveram várias encarnações. Durante a década de 1960, quando o Rio deixou de ser capital e a segurança pública tornou-se motivo de preocupação, os matadores agiam dentro da polícia, incentivados por uma visão higienista. Os policiais, muitos deles associados à máfia do jogo do bicho, a mais antiga e poderosa do Rio, matavam como se protegessem a cidade dos pobres. Surgiram nessa época os primeiros esquadrões da morte, entre eles a Scuderie Detetive Le Cocq, que se desdobraram nos grupos de extermínio da Baixada Fluminense. A matança era celebrada toda semana nos jornais populares. A carta branca para matar permitia que alguns desses policiais enriquecessem no mundo do crime – caso de Mariel Mariscot e Capitão Guimarães, entre tantos outros.
A década de 1980, com a expansão do tráfico de drogas, deu outra dimensão à crise de segurança do Rio. Os traficantes formaram um arsenal bélico que enriqueceu os senhores da guerra, entre eles policiais que abasteciam grupos criminosos com fuzis. O Comando Vermelho, formado dentro das prisões em 1979, passou a lucrar com a venda de drogas no varejo, controlando morros das Zonas Sul, Norte e Centro. O Terceiro Comando montou seus negócios da mesma forma e passou a disputar mercado com os grupos rivais.
Nos anos 1990, conforme esses conflitos se agravavam, agora alimentados por fuzis importados dos Estados Unidos e do Paraguai, policiais ligados a bicheiros não perdiam a oportunidade de faturar. As opções eram várias: podiam extorquir traficantes presos em troca de sua liberdade, vender armas ou drogas apreendidas e chantagear donos de morro para evitar operações em seus redutos. Foi o ápice da violência no estado do Rio, que chegou a registrar 62 homicídios por 100 mil habitantes em 1995 (em 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio teve 28 homicídios por 100 mil habitantes).
As milícias, como as conhecemos hoje, surgiram entre o final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. A ideia partiu de dois grupos de policiais que inventaram um novo modelo de gestão territorial na Zona Oeste, em bairros que até o começo dos anos 1970 viviam um relativo isolamento, separados do resto da cidade pelo Maciço da Tijuca. Túneis e pistas conectaram a região, que passou a receber migrantes de fora do estado. A Liga da Justiça foi criada pelos irmãos policiais Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, e Natalino Guimarães. O grupo faturava principalmente com o dinheiro das lotações clandestinas, mas também cobrava proteção dos comerciantes locais, sob o argumento de que, assim, mantinham a comunidade protegida do tráfico. O mesmo modelo vinha sendo desenvolvido ali perto, em Rio das Pedras, pelo policial Félix Tostes e o líder comunitário Nadinho.
No princípio, o trabalho das milícias era celebrado até pelas autoridades, que as viam como um modelo de autodefesa comunitária, nos moldes de grupos paramilitares do México. O apoio, é claro, também tinha motivos práticos: os policiais encarregados dos negócios garantiam votos aos políticos que os apoiassem. Eles próprios se candidatavam: Jerominho, Natalino, Nadinho e outros milicianos foram eleitos deputados estaduais e vereadores. Todo mundo ganhava. A lua de mel com a opinião pública só acabou em 2008, quando uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal O Dia foram torturados por milicianos em uma favela da Zona Oeste. Veio, a seguir, a CPI das Milícias, comandada por Marcelo Freixo, que dois anos antes vira seu irmão Renato morrer pelas mãos da milícia.
A CPI prendeu centenas de acusados de integrar grupos milicianos. A situação parecia sob controle. O Rio vivia a prosperidade econômica pré-Copa do Mundo e Olimpíadas. As UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora – expulsavam traficantes dos morros sem tiroteios.
O crime apostou ainda mais na diplomacia. Os novos chefes milicianos evitavam chamar atenção, mas acumulavam dinheiro e se infiltravam nas instituições públicas. Bairros e cidades inteiras do Rio de Janeiro se adaptaram à nova governança. Traficantes do CV e do Terceiro Comando migraram para comunidades menos visadas. Os homicídios no estado caíram de um patamar de 42 por 100 mil habitantes em 2007 – antes, portanto, das UPPs – para 31 por 100 mil habitantes em 2015. A queda na capital foi ainda mais aguda. Assim como já tinha ocorrido em São Paulo, com o PCC, os criminosos aceitaram a trégua do governo e acabaram percebendo que alianças eram mais lucrativas do que conflitos.
As guerras entre os grupos armados voltaram a ocorrer a partir de 2016, quando o Rio se tornou o epicentro da crise política e econômica que paralisou o Brasil. Sérgio Cabral e seu sucessor, Luiz Fernando Pezão, foram presos. A institucionalidade republicana, com sua política de segurança pública, se enfraqueceu, deixando um vácuo favorável para as milícias. Em 2017, os homicídios no estado voltaram ao patamar de 40 por 100 mil.
Desde então, as milícias se estabilizaram. Mas o controle institucional é mais frágil do que nunca. As corregedorias das polícias foram desmontadas. E agora, uma nova crise de segurança pública desponta no horizonte. As cenas chocantes, tanto da Barra da Tijuca quanto dos 35 ônibus queimados, servem de alerta. A paz armada que vigeu no Rio durante anos é difícil de se repetir hoje. O estado do Rio está repartido entre diferentes grupos armados, independentes entre si, com interesses e muito dinheiro em disputa. Diante de instituições fragilizadas, impera a lei do mais forte, e o desfecho disso é imprevisível.
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