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    Michele Scolari cuidando de sua filha Zoe durante um dos alagamentos Foto: Acervo pessoal

depoimento

“Com um mês de vida, minha filha já perdeu a casa duas vezes”

Atingida pelas enchentes em Serra Grande, na Bahia, artesã relata o desespero de ver sua casa ser tomada pela água na véspera de Natal

Michele Scolari | 12 jan 2022_11h24
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Moradora da Praia do Sargi, ponto turístico de Serra Grande (BA), Michele Scolari é uma das milhares de pessoas que ficaram desalojadas depois das chuvas que atingiram a Bahia na virada do ano. Carregando a filha recém-nascida, ela escapou de duas inundações junto com o restante de sua família. A primeira enchente aconteceu em 8 de dezembro. A segunda, mais destrutiva, na noite do dia 24, véspera de Natal. Quase nada pôde ser salvo da casa. Desde então, Scolari, o marido e os cinco filhos têm vivido de favor em quartos cedidos por moradores da região, contando com doações e apoio financeiro de uma ONG local.

Em depoimento a Lianne Ceará

 

No dia 25 de novembro, uma quinta-feira, eu estava no hospital para dar à luz Zoe, minha filha mais nova. Foi um momento de muita alegria para a família. Eu nunca poderia imaginar, naquele momento, que dali a alguns dias nós perderíamos nossa casa e tudo o que tínhamos.

Na noite do dia 8 de dezembro choveu muito. Como mãe de um recém-nascido, tive mais uma daquelas noites mal dormidas, acordando toda hora para olhar o bebê. Lembro que levantei para ir ao banheiro às 2 horas da manhã e, quando pisei no chão, senti meus pés se molharem. Ainda sonolenta, não entendi nada e acordei o Paulo, meu marido. Logo a gente viu que a casa estava toda alagada. A água tinha uma cor muito escura. Nessa época é comum que haja pequenos alagamentos aqui na Praia do Sargi, mas a gente nunca tinha visto água entrar na nossa casa.

Parecia que a água estava brotando do chão naquela noite. Nossa casa fica numa área rebaixada, então não tínhamos como parar o fluxo. Passamos a noite acordados, as crianças assustadas. O mais velho dos meus cinco filhos, de 19 anos, ajudou o Paulo com o que deu. Mas nós perdemos muita coisa: dois celulares que estavam no chão, roupas, livros, uma câmera fotográfica, tênis… Passamos a noite tentando conter danos. O dia amanheceu e a gente continuava lá. Como as fossas transbordaram com a chuva, a água estava imunda, contaminada. Precisei amamentar minha filha ali mesmo, com os pés mergulhados na água, porque não tinha outro jeito. De manhã meu marido comprou 15 litros de água sanitária e despejou pela casa. A água ficou um pouco mais clara.

Nós ficamos sem saber o que fazer ou para onde ir. Apesar de tudo, meu marido, que é projetista de móveis, saiu para trabalhar, enquanto eu levava as crianças num médico, porque uma delas estava com febre. Quando terminou a consulta, liguei para o Paulo e perguntei: agora vamos para onde? Nós não tínhamos para onde voltar. Como vivemos numa área turística da Bahia, o aluguel de casas no fim de ano tem valores exorbitantes. Não era uma opção.

Nós então publicamos um texto em grupos nas redes sociais pedindo ajuda. Passei a tarde em Ilhéus com as crianças só matando tempo, esperando para ver se teríamos algum lugar para ficar. Desse dia em diante, moramos em vários lugares. Colegas de trabalho do meu marido e pessoas que viram nossa história nas redes sociais nos hospedaram. Meus filhos pequenos não entendiam o que estava acontecendo. E eu, no meio disso tudo, com febre e com uma bebê de doze dias no colo. Meu filho de 9 anos e meu marido também ficaram febris.

Como nossa casa era alugada, ligamos para o dono, que fez pouco caso e se eximiu de qualquer responsabilidade. Ele tem outra casa próxima à nossa, mas se recusou a nos ceder o espaço. Recebemos ajuda do Grupo Amigos da Praia (GAP), uma ONG da região que tem apoiado muita gente. Eles nos ajudaram com roupas de cama, toalhas, vestimentas, tudo o que tínhamos perdido na inundação. A gente estava aos poucos tentando reconstruir nossa vida, sabe? Mas depois as coisas pioraram ainda mais.

 

Em 20 de dezembro, precisamos sair da acomodação onde estávamos havia alguns dias, na casa de um italiano que tinha ido à Bahia aproveitar o fim de ano. Voltamos então para a nossa casa. Quando chegamos lá, vimos que a água já tinha secado na parte de dentro da casa, mas o quintal continuava totalmente inundado. Como não tínhamos outra opção, ficamos ali mesmo. Passamos dois dias desinfetando a casa e, mais uma vez, revendo o estrago. Agora, sem toda aquela água, a gente conseguiu ter uma noção real das perdas. Ainda assim, como estávamos de volta à nossa casa, sentimos que tudo estava entrando nos eixos. Para evitar que aquele pesadelo se repetisse, meu marido fez uma espécie de mureta ao redor da casa com tijolos e silicone. A ideia era que, se voltasse a chover muito, pelo menos a água da rua ficasse só do lado de fora da casa.

Passamos o Natal no lar que achávamos que tínhamos perdido. Meus pais foram para lá, e fizemos uma ceia muito simples. Até que, por volta de meia-noite e meia, depois do jantar, a água começou a brotar do chão da casa, igual da outra vez. No meio da madrugada, ela já batia na canela. Decidimos esperar. No dia seguinte, pela manhã, a água já estava numa altura de cerca de 25 cm. Não teve jeito: agora tínhamos perdido tudo de vez. Perdemos geladeira, sofá, cama, móveis, tudo. Perdemos também muito da nossa história e da nossa memória. Álbuns de fotos, por exemplo, foram embora com a água.

O Natal da minha família, no dia 25, foi de desespero. Tínhamos que juntar os cacos mais uma vez. A Zoe estava completando um mês de vida naquele dia e, pela segunda vez, não tinha uma casa para morar. Lembro que as crianças choraram nesse dia mais do que nos outros. Dessa vez nós tivemos certeza de que não conseguiríamos voltar a morar ali. A casa ficou completamente inabitável depois da enchente.

O dono de uma pousada próxima nos ofereceu um quarto de forma temporária. Fui para lá de tarde, junto com meus filhos mais novos, enquanto o Paulo e meu filho mais velho continuavam na casa, tentando salvar alguma coisa. Como a gente não tinha botas ou qualquer equipamento para evitar contato com a água suja, eles voltaram a ter febre. Pouco depois, sabendo da nossa situação, um rapaz nos ofereceu um teto até o dia 14 de janeiro. Aqui estamos desde então. Agora começamos a luta para recuperar tudo o que foi perdido.

Meu marido passou vários dias sem trabalhar e, como ele recebe por diária, ficamos numa situação complicadíssima. Eu, que faço artesanato, fui diminuindo o ritmo de trabalho durante a gravidez. Ainda assim, tinha algumas entregas para fazer, mas perdi todo o material na enchente. Anoitecemos com um lar e amanhecemos sem ter para onde ir. Enquanto isso, ainda tivemos que lidar com notícias de amigos que estavam na mesma situação, e não tínhamos como ajudar porque também precisávamos de ajuda.

No dia 31 de dezembro, ainda surgiam consequências dessa tragédia. Meu filho de 9 anos ficou com 39,5º de febre e não melhorava. Não sabemos até agora se ele ficou assim por causa do contato com aquela água imunda. Um colega nosso que é médico esteve aqui e alertou sobre os riscos que a gente correu no meio da enchente, com água de esgoto. O revoltante nisso tudo é ver que o Estado não se mobiliza por nós da mesma forma como nós nos mobilizamos para ajudar uns aos outros. Nada foi feito até agora para ajudar a minimizar o sofrimento de famílias como a minha. O que vimos foram ONGs, entre elas o GAP, fazendo um trabalho muito bonito, suprindo as lacunas deixadas pelo poder público.

Nessa última semana nós conseguimos alugar outra casa. Iremos para lá depois do dia 13, mas, como não temos condições de bancar o aluguel durante a alta temporada, o GAP se prontificou a inteirar o valor para nós. São coisas que o Estado deveria estar fazendo.

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