Almoço no Palácio do Planalto no dia 16 de setembro - Foto: Reprodução/Facebook
Conversão à pururuca
Bolsonaro afinou diante do Supremo, entregou-se aos braços do Centrão, mas continua o mesmo e se preocupa com o sucessor do Foro de São Paulo
O deputado federal paulista gosta de se dizer conservador no pensamento político-econômico e no vestir-se. Recém-chegado à casa dos 50 anos, combina com esmero a gravata com o lencinho no bolso do paletó e a defesa do teto dos gastos com a necessidade urgente de redução de encargos trabalhistas para o Brasil crescer como potência.
No final de outubro, surpreendeu-se quando o vice-líder do MDB na Câmara, Fábio Ramalho (MG), convidou-o para participar, pela primeira vez, de um almoço com o presidente da República, Jair Bolsonaro. É um aliado do Centrão, claro, mas com distanciamento social, explica-se. Imaginou, com satisfação, que teria a chance de ver de perto os feitos da conversão de Bolsonaro ao centrismo, como apregoado por certos setores. Ainda estava pensando sobre o convite quando Ramalho completou: “É no Palácio do Planalto, mas a comida é por minha conta. Vai ter leitão à pururuca!”
O almoço ocorreu numa quarta-feira, dia 28. Havia cerca de quarenta pessoas presentes, entre ministros, deputados, senadores e empresários. O deputado conservador fez campanha para colocar João Amoêdo na Presidência, mas sempre viu no ministro da Economia, Paulo Guedes, um aliado libertário, como gosta de dizer. Daí simpatizava desde o início com o atual governo, mas, em geral, mantinha-se afastado do que chama de bolsonarismo raiz e suas polêmicas grosseiras.
Não tinha, entretanto, como recusar o convite de Fábio Ramalho, cujos almoços são celebrados em Brasília pela comida mineira farta, que interrompe o suplício dos dias de votação longa no Congresso Nacional. O leitão à pururuca de Ramalho segue receita mineira antiga, com a pele sendo desidratada por dias, depois frita no óleo quente até se enrugar e ficar crocante. A aparência é impactante, mas é preciso fígado tinindo para digerir tanta gordura.
Numa roda com seus pares antes do almoço no Palácio do Planalto, o deputado conservador conseguiu trocar uns dedos de prosa com os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Braga Netto (Casa Civil). Viu de longe os ministros Bento Albuquerque (Minas e Energia) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Comentou sobre a segunda onda da pandemia com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), e com o então vice-líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Saudou o senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ) rapidamente. Reconheceu entre os presentes empresários ligados ao ramo de café e de bebidas e o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Robson Andrade. Estranhou, mas não perguntou o que o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, estava fazendo ali.
O cardápio seguiu o prometido. Leitoa, linguiça e carne de sol como prato principal. Sorvete de doce de leite, ambrosia e cocada como sobremesa. Neófito entre bolsonaristas, o deputado conservador estava à vontade no seu contato mais próximo com a bruta flor do situacionismo. Na hora do digestivo, sem muito o que falar já quase na terceira hora do almoço, fez alguma referência inconsequente ao Foro de São Paulo, por muitas vezes definido por Bolsonaro como um “grupo totalitário de esquerda, criado para dominar a América Latina”.
Nesse momento, o parlamentar ao seu lado, um habitué do bolsonarismo e com quem já comentara sobre a frequência esporádica com que comparecia a eventos como aquele, resolveu dar-lhe uma dica: “Se falar com o presidente, não se refira ao Foro de São Paulo. Esse ficou para trás. A preocupação agora é o Grupo de Puebla”, ouviu.
O deputado conservador não tinha ideia do que era o Grupo de Puebla. Seu colega explicou: completara seu primeiro ano de existência a nova entidade a que a esquerda se alinhou para “fomentar a Guerra Híbrida Continental”.
Disse então ter estudado e analisado com afinco um relatório que os serviços de inteligência prepararam para o presidente Bolsonaro. Pôs-se a explicar o que era o Grupo de Puebla e a “Guerra Híbrida Continental”. Chacoalhados pela onda conservadora que varreu a América Latina a partir de 2015, os esquerdistas latino-americanos aproveitaram a véspera da reunião do Foro de São Paulo de 2019 para esboçar sua contrarreação. Com o foro por demais visado e desmascarado pela onda direitista que tomou o continente, voltaram-se para a criação de uma nova entidade.
O Foro, dissertou o interlocutor, havia sido criado em 1990, na cidade de São Paulo, para buscar formas de apoiar financeiramente Cuba, após a debacle soviética. Nos anos 2000, tornara-se a plataforma de lançamento para que a esquerda tomasse o poder no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Chile, no Paraguai e na Venezuela. “A reação conservadora esvaziou-lhes o butim”, disse orgulhoso o bolsonarista. Listou então quem está por trás do Grupo de Puebla: Lula, Dilma Rousseff, Fernando Haddad, Celso Amorim e Aloizio Mercadante são os representantes brasileiros. Seus aliados são os próceres do kirchnerismo argentino, do chavismo venezuelano, do correismo equatoriano, do moralismo boliviano e dos socialistas chilenos, entre outros vermelhos latino-americanos.
Nesse momento, tirou do bolso do paletó o aparelho celular e mostrou-lhe na tela a reprodução de um documento, depois encaminhado por aplicativo de mensagem. Seria um trecho de um relatório de inteligência. Não traz em si nenhum sinal de papelório oficial. Parece apenas um documento produzido num processador de texto eletrônico. O interlocutor bolsonarista assegurou, entretanto, que sua origem era o Sisbin, o Sistema Brasileiro de Inteligência, coordenado pela Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, com circulação restrita, de classificação ultrassecreta, sujeito a ficar interditado dos olhos do contribuinte por 25 anos, prorrogáveis por outro quarto de século.
Em poucas páginas, o tal suposto relatório de inteligência diz que o Grupo de Puebla estava por trás dos “protestos sociais”, assim mesmo, grafado com aspas, ocorridos em 2019 e 2020 em países como Chile, Colômbia, Equador e Peru. Alerta para o perigo de tais protestos se espalharem pelo Brasil. Afirma que “líderes progressistas”, outra vez com aspas, estimulam a estratégia batizada de “ProgressivaMente”.
Aponta que o grande diferencial do Grupo de Puebla é a propagação da mentira, com a característica de agir “nas sombras, manipulando a Justiça, o Congresso, o voto e a mídia”. Diz que seu principal ativo é a relação que a Venezuela mantém com a Rússia. O país do Leste Europeu estaria liderando tecnicamente a montagem de uma “sofisticada máquina de desinformação (fake news), operada desde o Kremlin”.
No centro dessa estratégia, está a “Guerra Híbrida Continental”, assim, sempre com maiúsculas. Resume seus objetivos como “alarmantes”. Enumera como eixos de tal guerra: “ações de lawfare [politização de ações judiciais]; guerra informacional; estímulo a ações de gangues criminais com objetivo político; fustigar o Brasil com um entorno fronteiriço politicamente hostil aos objetivos verde-amarelos e favorecer os interesses políticos e econômicos de Rússia e China.”
[Basta uma pesquisa rápida para descobrir que o Grupo de Puebla tem até site oficial. Na página de abertura, a foto ilustrativa é de lideranças latino-americanas, entre elas, Haddad e Mercadante. Define-se como um “espaço de reflexão e intercâmbio político, que trabalha pelo desenvolvimento integral dos povos latino-americanos”. Tem de fato como lema a expressão “ProgressivaMente: um novo impulso progressista”. A intenção não é alavancar o uso da mentira, claro, mas sim demonstrar que a mudança é um processo lento e contínuo que deve ser liderado pelos progressistas.
A origem do nome do grupo é uma homenagem aos 40 anos da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em 1979 em Puebla de los Angeles, México. Tal conferência é tida como a maior estimuladora do avanço da Teologia da Libertação na América Latina, uma lufada progressista em meio a uma instituição amplamente conservadora como a Igreja Católica.]
O bolsonarista, a título de informação de coxia, ainda explicou para o deputado conservador: no Rio e em São Paulo, os grupos ligados ao tráfico chamam a si mesmos de “tropas paramilitares”. “Já tem até funk sobre isso”, assegurou. Para encerrar a conversa, o deputado conservador ouviu que o Supremo Tribunal Federal está na linha de frente contra Bolsonaro porque é partidário da estratégia de lawfare desenhada pelo grupo de Puebla. Findo o terceiro digestivo, o deputado conservador decidiu partir. Bolsonaro lhe parecera o mesmo de sempre.
Ao ligar para a mulher no fim daquela noite, o deputado conservador ouviu a pergunta se estava tudo normal em Brasília. Ele resumiu suas impressões: “Tudo absolutamente anormal, como sempre!”
Junho de 2020 ficará marcado como o mês em que o governo de Jair Bolsonaro trincou. Não se despedaçou, mas foi obrigado a uma arrumação. A sequência de eventos que catalisou tal mudança é conhecida: Fabrício Queiroz, o faz-tudo dos Bolsonaro, foi preso na casa do advogado do presidente; o ministro Abraham Weintraub fugiu do país sob ameaça de ser mandado para o presídio da Papuda. Em abril, o governo já perdera Sergio Moro, seu ministro mais popular, que deixou o cargo acusando o presidente de interferir na Polícia Federal para proteger filhos e apaniguados.
Ao fim daqueles dias, parecendo encurralado nas cordas do isolamento político, o presidente caiu nos braços do Centrão, o grupamento político que se define tão fiel à governabilidade quanto é ao Diário Oficial.
O presidente foi obrigado a uma série de concessões políticas, administrativas e morais para preservar-se no poder e proteger familiares e aliados de longa data. A partir daí, não foram poucos os que apontaram o presidente como “domesticado”, “moderado”, “na fase paz e amor”. Por que tipo de conversão, afinal, passara o presidente?
Antes, no final de abril, Bolsonaro recebeu pela primeira vez no Palácio do Planalto o deputado federal Arthur Lira (Progressistas-AL), apelidado de “Cardeal Richelieu do Centrão” por ser o arquiteto supremo e oculto da coligação informal de deputados conservadores. Conversaram por duas horas, com direito a gravação de uma mensagem especial do presidente para a mulher e a filha de Lira. “São suas fãs”, justificou ele.
A partir daí, Lira se tornou o parlamentar mais constante na agenda presidencial. Mais de uma dezena de vezes em dois meses, parte delas oculta no registro oficial. Em 15 de junho, Lira publicou artigo na Folha de S.Paulo em que anunciava sua adesão à base bolsonarista e definia o Centrão como uma força moderadora, garantidora da governabilidade e da previsibilidade institucional. Era claro o recado que queria dar. Não havia mais por que falar de impeachment, com tal força avalizadora no Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, recebera o quinquagésimo pedido de impeachment do presidente da República, destinando-o, ao menos temporariamente, à gaveta, como fizera com todos os anteriores. Não teria apoio do Centrão para resgatá-los dali.
No final de setembro, Bolsonaro trocou a liderança do governo na Câmara e nomeou dez novos vice-líderes, todos vinculados de alguma maneira ao Centrão. Na primeira crise subsequente – Bolsonaro disse ter vontade de encher de porrada um repórter, saindo do papel de moderado que se atribuíra –, o novo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, apaziguou: “Conhecemos Bolsonaro há 28 anos, ele sempre foi assim. Não vai mudar. Ele falou que ‘gostaria de’ e não ‘vou fazer’. É um pensamento que ele externou que certamente não precisaria ter externado. Essa crise é só uma tentativa de fazer mosquito virar elefante.”
Com a administração trincada, Bolsonaro passou a mover-se na sala de louças da política como o elefante fantasiado de lebre. Parecia cuidadoso ora aqui, ora ali até que revelava sua natureza e quebrava tudo à volta, numa nova movimentação desastrada, como na vontade de encher de porrada quem lhe perguntara sobre 89 mil reais depositados por Fabrício Queiroz em conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Desde o começo da primavera especulava-se que algo mudara no ar de Brasília, entre os dias derradeiros de abril e a primeira semana de outubro. No ato de abertura, está o xingamento do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, aos ministros do Supremo Tribunal Federal, chamados de “vagabundos” que deveriam estar na cadeia. No ato final de outubro, vê-se o afetuoso abraço do presidente Jair Bolsonaro em Dias Toffoli, concedido à porta da casa do ministro do STF para permitir que fosse registrado pelos fotógrafos da imprensa.
Quadros do governo federal e a militância radical do bolsonarismo costumavam esconjurar os ministros do STF como a encarnação do mal comuno-petista. Para que o presidente e ministros do STF chegassem à primavera em estado de comunhão, concessões, conchavos e traições aplainaram a pista entre o Palácio do Planalto, o Palácio do Supremo e o Congresso Nacional. De um modo confuso, como de hábito.
Brasília, como se sabe, é a cidade das “tesourinhas”, pistas de tráfego que cortam o eixo rodoviário. Elas dão acesso às chamadas superquadras, áreas planejadas que formam a estrutura do Distrito Federal, conforme desenhadas pelo urbanista Lucio Costa (1902-1998). A principal característica da “tesourinha” é a contradição: quem pretende acessar uma quadra à esquerda precisa virar à direita; quem planeja entrar em uma quadra à direita tem de obrigatoriamente converter à esquerda. As tesourinhas somam quase três dezenas. Estão sendo reformadas nos últimos meses. Simbolicamente representam a surpresa de que, em Brasília, o que parece uma coisa é de fato outra.
Acertada a relação com o Congresso, o governo precisava também se entender com os ministros do STF. O 19 de junho foi a data chave de convergência das partes que estavam em choque. Naquela sexta-feira, a praça pública digital das redes sociais amanheceu com picos de postagem, audiência e compartilhamento.
O policial militar aposentado Fabrício Queiroz, um faz-tudo da família Bolsonaro, havia sido preso no dia anterior no inquérito das rachadinhas, o alegado confisco pelo então deputado estadual Flavio Bolsonaro de parte dos salários dos funcionários de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Na mesma data, Abraham Weintraub fora demitido do Ministério da Educação numa tentativa constrangida de Bolsonaro de enviar sinais de paz ao Supremo. O ministro Alexandre de Moraes havia determinado ainda a prorrogação da prisão temporária da ativista Sarah Winter, a bolsonarista que prometera lhe dar um soco.
A tensão parecia ter chegado ao auge, após quase três meses de confronto público entre o Executivo e o Judiciário.
Finalmente havia chovido em Brasília durante a noite da quinta-feira, depois de uma semana de seca. A sexta-feira amanhecia agradável, com 22ºC de temperatura. Recém-saídos do Palácio do Planalto, os ministros André Mendonça (Justiça), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência) e José Levi (Advocacia Geral da União) foram enviados a São Paulo por Bolsonaro. Tinham como destino o endereço do ministro Alexandre de Moraes, na Rua Tucumã, no Jardim Europa, bairro paulistano nobre. Em São Paulo, o clima estava chuvoso e ainda mais ameno, com dois graus a menos do que em Brasília.
Em razão da pandemia do coronavírus, Alexandre de Moraes completava então mais de três meses em isolamento social, participando apenas virtualmente das reuniões do Supremo. Despachava com assessores por meios eletrônicos. Aceitou quebrar sua quarentena para se reunir com os três ministros bolsonaristas. A pauta oficial dizia respeito a processos envolvendo a terra indígena Raposa Serra do Sol e o setor sucroalcooleiro.
A verdadeira razão do encontro, entretanto, foi a mensagem que o presidente da República pediu que seus enviados levassem ao ministro. Bolsonaro queria iniciar uma nova fase na relação com o Judiciário, com menos confronto e mais entendimento. Pediu paz, depois de tanto valer-se de retórica beligerante.
Um dos principais alvos de Moraes no inquérito contra o gabinete do ódio era o ministro da Educação recém-demitido, Abraham Weintraub. Com a visita dos enviados bolsonaristas, acertada pela manhã, quase em cima da hora, o ministro do STF deixou apenas rascunhada uma medida que analisava se de fato necessária. Estava propenso a determinar a prisão de Weintraub, como forma de deixar claro que ele ultrapassara o limite da liberdade de expressão. Adotara conduta criminosa ao ameaçar fisicamente ministros da corte.
Afinado com Bolsonaro, o então presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli, havia cobrado do Palácio do Planalto a demissão do ministro da Educação, o que fora anunciado na quinta-feira. Toffoli sugeriu que, sem foro privilegiado, Weintraub deixasse o país em 24 horas. Antevia que poderia ser preso. O governo pediu mais prazo; Toffoli recusou-se a intermediar essa negociação. Sugeriu que ministros fossem falar diretamente com Alexandre de Moraes para que postergasse o que acreditava ser a prisão iminente.
A reunião, com duração de três horas, encerrou-se por volta das 14 horas. Menos de nove horas depois, Weintraub embarcou cabisbaixo num voo de Guarulhos com destino a Miami. Sua demissão só seria publicada no Diário Oficial na edição extra de sábado, dia 20, ao meio-dia, quando já tinha passado pelos trâmites de migração no aeroporto americano. O passaporte diplomático que Weintraub usara ao raiar do dia perdeu a validade antes da hora do almoço.
O ex-ministro da Educação conseguiu um posto diplomático temporário no Banco Mundial e foi obrigado a um silêncio obsequioso. O ostracismo é o habeas corpus dele, resumiu um assessor do STF.
A partir daí, com o exílio de Weintraub, a crise entre o governo federal e o Supremo amornou-se. “Houve uma acomodação adequada ao espírito do tempo, com a devida participação do Alexandre. Ele é muito ensaboado; é extremamente político”, definiu um companheiro de toga, protegido com a vênia do anonimato.
Depois do encontro com os ministros de Bolsonaro, Moraes contemporizou: “Alguns querem entender que harmonia é apatia. Harmonia também é tensão entre os Poderes, porque cada um tem que cumprir suas competências constitucionais”, explicou ele mais tarde.
A pessoas próximas, Moraes reconheceu que, entre o final de maio e o começo de junho, o país viveu fase de instabilidade política grave. “O sistema de freios e contrapesos e a atuação do Supremo nos momentos de crise garantiram a tranquilidade e a normalidade. Não houve a necessidade de nenhuma medida extraordinária. Bastou a adoção dos freios e contrapesos que a Constituição autoriza”, analisou.
Moraes estendeu oficialmente as investigações do inquérito que apura ataques ao Supremo e ao Congresso até meados de janeiro de 2021. Pode antecipar a conclusão do inquérito para o final deste ano, caso julgue que tenha conseguido levantar provas suficientes para a condenação de uma leva de bolsonaristas afoitos. A grande dúvida é quão perto chegará do núcleo familiar do presidente, que tem dois filhos (Eduardo e Carlos) repetidamente citados como mentores do gabinete do ódio bolsonarista.
O Inquérito 4.781 foi instaurado para investigar o que Moraes chamou de “infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi”. Basicamente se refere à propagação de notícias fraudulentas, falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas e ameaças contra os membros do STF e seus familiares.
O nome mais vistoso da investigação de campo é o do delegado da Polícia Federal Igor Romário de Paula, um dos líderes de grande parte dos inquéritos da Operação Lava Jato. Igor de Paula serviu como militar da Força Aérea Brasileira por doze anos, antes de entrar no quadro da Polícia Federal em 2003. Comandou investigações de crimes contra os sistemas financeiro e fazendário até se especializar em métodos para detectar lavagem de dinheiro. Essa habilidade levou-o a coordenar os inquéritos da Lava Jato durante cinco anos em Curitiba. Deixou a coordenação com a posse de Sergio Moro no Ministério da Justiça. Moro levou-o para Brasília, nomeando-o diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da PF. Após as demissões de Moro da Justiça e de Maurício Valeixo da direção da Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes determinou que não houvesse trocas nos delegados da PF envolvidos na apuração do inquérito que comandava.
De acordo com as investigações da PF, as provas colhidas e os laudos técnicos obtidos até o momento apontam para a existência de uma associação criminosa dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às instituições, “com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”.
A fase final do inquérito busca comprovar que toda essa estrutura estaria sendo financiada por empresários que, veladamente, fornecem recursos das mais variadas formas para os integrantes dessa organização, “impulsionando vídeos e materiais contendo ofensas e notícias falsas com o objetivo de desestabilizar as instituições democráticas e a independência dos poderes”.
Moraes determinou que perfis do chamado gabinete do ódio fossem retirados do ar, mesmo aqueles originados no exterior, pelas empresas que gerem redes sociais. Inicialmente, o Facebook recusou-se a seguir a determinação e foi multado. Resolveu então bloquear os perfis bolsonaristas, mas anunciou que recorreria da determinação ao colegiado do STF. O imbróglio ainda segue, mas agora de maneira incrivelmente silenciosa.
Em fevereiro do ano que vem, as eleições para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado devem sedimentar a conversão de Bolsonaro ao balcão de interesses do Congresso Nacional. É uma conversão à pururuca: o presidente foi quase fritado, queimou a pele e é visto agora no Congresso como iguaria crocante. “Houve um chamamento do presidente e fizemos uma base que dialoga, uma base participativa, que discute, aí facilita a vida do Executivo, do Legislativo e do país. Essa aproximação não tem nada de danosa. O Centrão deu estabilidade política ao governo, o que ajuda o mercado, por exemplo. Nossa relação tem sido de proximidade e convergência de pensamentos”, disse Arthur Lira, candidatíssimo à presidência da Câmara. Tem a promessa do apoio de Bolsonaro, claro.
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