Painel das 242 vítimas da tragédia da Boate Kiss, instalado em frente ao Foro Central, em Porto Alegre Foto: Amanda Gorziza
De frente para a dor
No julgamento sobre as mortes na Boate Kiss, sobreviventes e famílias revivem memórias dolorosas à espera de justiça
Paulo Carvalho se despediu do filho Rafael Carvalho na noite de 27 de janeiro de 2013. Ele tinha acabado de completar 32 anos – e nunca mais voltou. Rafael foi um dos 242 mortos no incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS). O pai se aposentou dois anos depois e dedica o que lhe resta de vida à espera, não pelo retorno do filho, mas por justiça. Passou a atuar na Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Semana passada, a espera por justiça ganhou alento com o julgamento dos quatro réus: Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, Marcelo de Jesus dos Santos, músico da banda Gurizada Fandangueira e Luciano Bonilha, produtor musical do conjunto. Eles são acusados de homicídio com dolo eventual, quando o réu não tinha a intenção de matar, mas tomou atitudes em que assumiu o risco.
O julgamento, iniciado em 1º de dezembro, é considerado o mais longo do Rio Grande do Sul e deverá acabar hoje, ao final de dez dias. Cerca de quarenta pessoas se deslocaram de Santa Maria para a capital gaúcha. Sobreviventes e famílias de vítimas precisaram enfrentar de novo o sofrimento da tragédia que parou o país. “O meu objetivo de vida passou a ser buscar a justiça para que não tenha sido em vão”, diz Paulo Carvalho. “É uma sensação de início da justiça, apesar da lentidão de quase nove anos. Finalmente vamos resgatar a memória dos nossos filhos. Muitos deles deram a vida para seus amigos”, completa.
Quando advogados mostraram fotos da boate destruída após o incêndio, por exemplo, que alguns pais nunca tinham visto, foi uma experiência que gerou ansiedade em muitos. “Esses momentos que mexem com a memória do dia 27 de janeiro de 2013 e da luta deles pela justiça são os mais difíceis”, afirma a enfermeira Patrícia Curti Bueno, 36 anos, uma das voluntárias do coletivo de apoio psicossocial e acolhimento às famílias e aos sobreviventes, localizado no saguão do Foro Central. “Eles vêm aqui, choram, nós oferecemos um chá, damos uma acalmada, descartamos qualquer situação mais grave clínica e liberamos eles”, completa.
A sala de apoio foi um pedido da associação e tem como objetivo prestar acolhimento às famílias e aos sobreviventes. Sem televisão nem computadores, é um ambiente no qual as pessoas podem espairecer, tomar um café, comer alguma coisa e conversar com os profissionais. Além disso, há uma equipe dentro do júri que tem o objetivo de antecipar crises de ansiedade, para que elas não se transformem em algo mais grave que precise de medicação.
O grupo de apoio, chamado Santa Maria Acolhe, foi criado no dia da tragédia e, desde então, presta acolhimento 24 horas e atenção psicossocial para familiares e sobreviventes. A equipe juntou voluntários para viabilizar o acompanhamento no julgamento. Cerca de 90% dos profissionais são voluntários. “Já temos uma experiência que mostra que as famílias e os sobreviventes precisam desse suporte para poder enfrentar tudo”, afirma Patrícia Bueno. A voluntária também é enfermeira servidora de Santa Maria na estratégia de saúde da família, além de já ter coordenado o núcleo de saúde mental do município. A jornada de Bueno com a associação é longa e começou no dia da tragédia. Ela já acompanhou a missa de sétimo dia, as oitivas que aconteceram em Santa Maria e até foi a Buenos Aires, em 2014, quando completaram dez anos do incêndio da boate República Cromañón.
A demora para se fazer justiça gerou um segundo sofrimento para os sobreviventes e as famílias: ter que reviver aquela noite. “Eles revivem tudo o que passaram, a hora em que ficaram sabendo, a hora em que viram os filhos, a hora em que os enterraram, todos os momentos do dia da perda. Quando passa muito tempo, tem coisas de que nem se lembram e sentimentos que nem sentiam mais e agora eles têm que reviver tudo”, diz a enfermeira Patrícia Bueno.
Esse é o caso de Kátia Giane Pacheco Siqueira, que trabalhava no bar da boate e foi chamada para depor no julgamento na condição de vítima. “Eu coloquei na cabeça que eu não ia mais pensar no assunto, não assistiria mais televisão. Quando me perguntavam o que eram as queimaduras no braço, eu dizia que tinha sido um acidente”, afirmou, em depoimento no primeiro dia de oitivas. Ela teve 40% do corpo queimado e passou por cinco cirurgias de enxerto de pele, além de outras reparativas. Ao receber a notícia de que teria que ir ao julgamento estando grávida, Siqueira se inquietou. “O que me preocupou foi ter que relembrar tudo de novo. Minha filha está sentindo todo o sofrimento que eu já passei. Estou mais preocupada com ela do que comigo.” A oitiva gerou um gatilho mental, o que desencadeou uma crise de ansiedade.
De acordo com Volnei Dassoler, psicanalista e membro da equipe do Santa Maria Acolhe, o fato de o júri ser um evento ativador de lembranças carregadas de sofrimento para os sobreviventes pode ser compreendido sob duas concepções. “Tem algo do trauma que não foi esquecido nem acomodado na memória, segue vivo, sendo revivido numa certa dimensão de literalidade. São esses os momentos em que não há catarse nem elaboração, e sim angústia, dor e medo”, afirma o profissional. Por outro lado, segundo ele, para algumas pessoas as lembranças da tragédia estão sendo atualizadas a partir do júri, circunstância que incide de forma positiva no processo de elaboração.
Apesar do sofrimento revivido, algumas vítimas conseguem lidar de uma maneira diferente, se encontrando nas histórias dos outros e ganhando elementos para a construção da própria narrativa. Gabriel Rovadoschi Barros, 27 anos, é sobrevivente e se localizou nos depoimentos de quem depôs no julgamento. “Para mim, especialmente no primeiro dia, foi muito doloroso, mas eu estou criando uma casca e conseguindo lidar melhor. Não é menos difícil, mas eu acho que eu tenho mais recursos para lidar”, afirmou. Enquanto as vítimas detalhavam o que aconteceu naquela noite e a rota de saída, por exemplo, Barros reviveu tudo o que ele passou, destacando ter ganhado mais elementos para a própria história. Segundo ele, a espera pelo julgamento foi longa, mas ao mesmo tempo construtiva. “Ao longo desses anos todos, eu tive que me conhecer para entender o que isso me causou. Tive que me reconstruir, na verdade, construir, porque eu não sabia que estrutura em mim tinha alguma validade.” Além de conviver com os traumas que o incêndio causou, também há um sentimento de culpa de ter sobrevivido, enquanto 242 vidas foram perdidas.
Diferente de Siqueira, que preferiu esquecer o que aconteceu para lidar com a dor, Barros optou pela lembrança. Mas nem sempre foi assim. “Ao longo dessa espera, em um primeiro momento, escolhi ficar distante do movimento. Fiquei uns quatro ou cinco anos sem me informar muito, só pensando na minha vida e como estava sendo essa dor para mim”, afirma o psicólogo. Em 2020, Barros conseguiu falar sobre o acontecimento publicamente e assumiu o lugar de fala, participando de vigílias e movimentos da associação. “Foi um tempo de espera, mas ao mesmo tempo, um tempo de produção sobre isso que me dói.” Ele acredita que a presença no julgamento representa outros que não tiveram condições de ir. Muitos sobreviventes ainda não conseguem falar sobre o que aconteceu no dia 27 de janeiro de 2013. Barros tem amigos que, assim como ele, sobreviveram à tragédia. Até hoje, eles não conseguem falar sobre o que aconteceu naquela noite. “Tem uma parede muito espessa de silêncio para ser rompida ainda. Respeito completamente isso, e é muito doloroso para nós.”
Para lidar com a espera e a dor permanente, Barros criou um grupo de sobreviventes da tragédia chamado ExpreCidade, que já conta com noventa integrantes. “O grupo foi criado no período pré-julgamento porque nós sabíamos que haveria muitas informações e notícias, o que é algo inevitável. Portanto, esse é um espaço para que possamos compartilhar esse momento e falar sobre as coisas que nos incomodam”, afirmou o psicólogo. Ele também utiliza os espaços que estão sendo oferecidos no Foro, como a sala de apoio, para espairecer nos momentos tensos do julgamento. Para a enfermeira Patrícia Bueno, a empatia e o companheirismo entre vítimas e familiares está sendo essencial. “Eles estão indo muito bem. Entre eles, tem uma rede de apoio muito boa, e eles também conseguiram ver em nós uma rede de apoio externa que conseguisse dar o suporte de que precisam”, afirmou.
Para Paulo Carvalho, Kátia Siqueira e Gabriel Barros, de diferentes maneiras, a espera foi dolorosa – e o julgamento é um marco numa luta que ainda não acabou. “Essa nossa luta não vai acabar com o julgamento. Para mim, ela está só começando. A justiça é algo contínuo e que vai se iniciar com a condenação dos quatro réus, mas para que seja algo contínuo, tem que existir garantias e serem providos os recursos necessários para que isso nunca mais aconteça. Essa é a minha luta, muito além da proposta deste julgamento”, afirmou Barros.
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Atualização às 18h28: No final da tarde de hoje (10), os quatro réus foram condenados pela morte de 242 pessoas na Boate Kiss. Para Elissandro Spohr, a pena é de 22 anos e 6 meses de reclusão; para Mauro Hoffmann, de 19 anos e 6 meses; para Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha, 18 anos. Ao ler a sentença, o juiz Orlando Faccini Neto afirmou que a decisão foi por maioria do júri. O juiz decretou a prisão imediata dos condenados, mas em razão de um habeas corpus preventivo concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul à defesa de Elissandro Spohr, foi suspensa a prisão. Eles seguem soltos até que a Câmara Criminal do TJRS analise o habeas corpus.
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