Piscina do Sesc Niterói fotografada na última quinta-feira. A unidade estava vazia em função do prolongamento do recesso de fim de ano ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI / FOTO ORIGINAL: ELISÂNGELA MENDONÇA
Disputa por comando tranca Sesc no Rio e paralisa atividades
Diretoria afastada pela Justiça dá folga a funcionários, fecha sede e suspende serviços, de aulas de natação e futebol a atendimentos odontológicos
Pouco antes do Ano-Novo, os funcionários que trabalham na sede do Sesc/Senac-RJ, no bairro do Flamengo, na Zona Sul, e na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro, receberam um comunicado. O recesso de fim de ano, que se estenderia de 20 de dezembro a 1° de janeiro, acabara de ser prolongado. Eles deveriam voltar ao trabalho apenas em 19 de janeiro, completando um mês em casa. Por trás da benevolência dos diretores, como sabiam os empregados, escondia-se a briga pelo comando das entidades, cujo orçamento anual chega a quase 1 bilhão de reais. É uma disputa que vai além da questão financeira: envolve a liderança sobre o setor do comércio no estado e escancara os problemas de gestão do Sistema S, sustentado por contribuições recolhidas sobre as folhas de pagamento da indústria e do comércio. Neste caso, com suspeitas de desvio e mau uso dos recursos, inclusive para o favorecimento do ex-governador Sergio Cabral. Além de, mais grave, penalizar a população que depende dos serviços das entidades.
O mais recente episódio dessa batalha é o vaivém de mandatos judiciais a respeito da nomeação de Luiz Gastão Bittencourt da Silva como interventor no Sesc/Senac-RJ. Bittencourt foi designado para o cargo após o afastamento do presidente das entidades, Orlando Diniz, investigado na operação Calicute, a 37ª fase da Lava Jato. Deposto por decisão do ministro Napoleão Maia, do Superior Tribunal de Justiça, em 14 de dezembro, Diniz presidia a Fecomércio-RJ há quase 20 anos. O ministro do STJ ressaltou que a entidade sindical dos setores de comércio e serviços fluminense, responsável por gerenciar o Sesc e o Senac, encontra-se sob procedimento fiscal de diligência da Polícia Federal – e determinou o afastamento de Diniz por causa das suspeitas de irregularidades. A Confederação Nacional do Comércio, a CNC, então nomeou Bittencourt, presidente da Fecomércio do Ceará, como interventor. A análise do caso pelo plenário do STJ está marcada para o dia 6 de fevereiro.
Na última quinta-feira, ao chegar à sede das entidades, acompanhado por uma equipe de quinze pessoas e com um novo mandato, Bittencourt encontrou o prédio no bairro do Flamengo totalmente fechado. Nem mesmo os seguranças terceirizados estavam no local. Eram 16 horas quando ele conseguiu entrar, com a ajuda de um chaveiro e o entendimento de seus advogados de que não “invadia” o prédio, já que a intervenção fora determinada pelo STJ.
“Dar mais recesso aos funcionários foi uma tentativa de evitar que tivéssemos acesso à documentação e aos números do Sesc e do Senac-RJ e pudéssemos, assim, colaborar com a Polícia Federal e o Ministério Público”, disse Bittencourt à piauí, duas horas depois de entrar no edifício. Na sexta-feira, um anúncio publicado nos jornais convocava os funcionários ao trabalho, a partir desta segunda-feira. A equipe do interventor também os chamou de volta por e-mail e WhatsApp. “Nossas equipes estão trabalhando nas auditorias e teremos balanços mais precisos sobre os números da entidade nos próximos dias”, afirmou Bittencourt.
A gestão que estendeu o recesso tem outra versão: afirma que aumentou o benefício não para impedir a decisão da Justiça e evitar que o interventor assumisse, mas para fazer sua própria auditoria. Diniz entende que um vice-presidente da Fecomércio, e não o indicado da CNC, deveria tomar a posição. Essa hipótese foi negada pelo STJ em 26 de dezembro. Nesta segunda-feira, 8, ele disse que a decisão do ministro foi desvirtuada pelo CNC. “Em vez de nomear um administrador temporário estão, de maneira ilegal, demitindo funcionários [os diretores] e alterando rumos de importantes projetos do Sistema”, escreveu, por e-mail.
A sua própria auditoria seria necessária, afirmou Diniz, pelo fato de Bittencourt já ter entrado no prédio, em 21 de dezembro, de forma “ilegal e brutal”. “Não respondo mais pela administração do Sesc e do Senac-RJ desde o fim de dezembro, mas soube por comunicado emitido pelo diretor regional [Marcelo Almeida, segundo a assessoria de Diniz] que se estendeu o recesso para que uma empresa de auditoria apurasse eventuais fraudes, furto de documentos ou violação do sistema, uma vez que o prédio do Sistema Comércio foi invadido brutal e ilegalmente pelo sr. Luiz Gastão Bittencourt no dia 21 de dezembro, conforme comprovam uma certidão de oficial de Justiça e ata notarial”, respondeu o presidente afastado, por e-mail.
Ele se refere ao fato de que, naquele dia, o interventor e sua equipe entraram no prédio, mesmo com uma oficial alertando-os sobre a necessidade de Diniz ser primeiro afastado do cargo – àquela altura, ele ainda tentava na Justiça que um vice-presidente da Fecomércio-RJ assumisse. Após conseguir uma nova ordem judicial entre o Natal e o Ano-Novo, Bittencourt e equipe retornaram na última quinta, e encontraram o prédio vazio. Bittencourt sustenta que Marcelo Almeida, funcionário do Sesc-RJ desde 2005, não poderia ter concedido as férias coletivas, já que uma de suas primeiras medidas como interventor, após a decisão do STJ, foi destituir a antiga diretoria.
Na versão de Diniz, o recesso “não interfere nas unidades”, tampouco prejudica os pagamentos a funcionários e fornecedores. “O fato excepcional, relacionado à necessidade de apuração de fraudes e furto de documentos após uma invasão ilegal, a meu ver mostra a correção da medida.” O presidente afastado agora quer processar o interventor por “esbulho possessório” (quando há invasão ou retirada violenta do dono de um imóvel) e formação de quadrilha.
As acusações mútuas e as idas e vindas processuais vêm de longa data. Entre 2014 e 2015, Bittencourt já havia se tornado interventor nas entidades, depois de outra disputa judicial com Diniz. Após identificar indícios de irregularidades, a CNC e o Sesc/Senac nacional conseguiram a intervenção na regional do Rio, posteriormente revogada pela Justiça – foi quando Diniz conseguiu voltar à presidência, em 2015. O argumento acatado à época foi o de que não há hierarquia entre as entidades e, portanto, uma não pode intervir na outra. Ainda há discussão sobre esse tema nos tribunais.
As mudanças de comando têm ajudado a agravar o efeito mais perverso dessa crise. Os relatos sobre a redução dos serviços, num estado quase falido, são muitos – e atingem principalmente os usuários mais pobres do sistema. Um vídeo feito por Ester Damasceno, que foi funcionária do Sesc-RJ por mais de 20 anos, mostra salas de atendimento odontológico vazias e dezenas de caixas de arquivo empilhadas. Lotada em Ramos, na Zona Norte do Rio, ela foi designada para fazer o desmonte da área odontológica naquela unidade e em Niterói, São Gonçalo e Nova Iguaçu. Sua função era retirar equipamentos das salas e arquivar fichas dos pacientes. Ester postergou o trabalho em um dia, ao ver o lugar onde trabalhara por anos apagado e fechado, pelo desgosto que diz ter sentido. “Tínhamos seis dentistas, atendendo oito pacientes pela manhã e oito à noite, fora as especialidades: as pessoas entravam com a autoestima lá embaixo e saíam outras”, disse ela, posteriormente demitida. “Num estado carente, no qual o governo não oferece saúde bucal, encontrar um bom serviço com preço baixo faz muita diferença.”
Hoje, apenas três das sete unidades que oferecem atendimentos odontológicos do Sesc no Rio estão funcionando, e apenas para serviços mais simples, como higienização e prevenção. Deixaram de ser prestados atendimentos mais complexos, como ortodontia, endodontia e pediatria.
Nessa disputa pelo comando das entidades, iniciativas adotadas pelos gestores acabam sendo canceladas pelo sucessor e vice-versa. Durante a intervenção anterior, Bittencourt havia investido em unidades móveis de serviço odontológico e prevenção ao câncer. Entre elas, um caminhão do Sesc Saúde Mulher, com equipamentos para exames, como mamógrafo e ultrassom. Desde a volta de Diniz ao cargo, ele está estacionado na unidade de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, sem uso. O presidente afastado prioriza outras atividades, segundo os funcionários. Bittencourt, por sua vez, afirmou que não renovará o programa Segurança Presente, assinado pela gestão Diniz com o governo do estado do Rio, para reforçar o patrulhamento na Lagoa, no Aterro, no Centro e no Méier.
Na prática, os usuários veem apenas os efeitos dos desmandos. Criado em abril, o movimento SOS Sesc/Senac-RJ afirma que foram cancelados cursos, fechadas bibliotecas e interrompidos programas para idosos, como dança, teatro, artesanato, coral e baile da terceira idade. Nas unidades de Ramos e Madureira, na Zona Norte, por exemplo, a demissão de bibliotecários impediu saraus e diminuiu as oficinas de escrita. De acordo com uma das coordenadoras do movimento, funcionária do Sesc que pediu anonimato por temer retaliações, foram prejudicadas ou canceladas atividades de turismo social, cursos de inglês e espanhol, alimentação saudável e alternativa, bem como aulas de circo, dança, coral, teatro e música.
No Sesc Niterói, na última quinta-feira, funcionários informaram que as atividades esportivas estão paradas em função da extensão do recesso, entre elas as aulas de natação, pilates, alongamento e a escolinha de futebol, que seriam oferecidas em janeiro. Na semana passada – antes do comunicado aos funcionários de que teriam de retornar nesta segunda-feira –, a informação no local era que voltariam a funcionar em 2 de fevereiro. Inseguros, os trabalhadores das entidades temem demissões em massa. Pelo menos 800 funcionários foram demitidos em 2017, segundo Diniz. A auditoria também servirá, afirma Bittencourt, para saber ao certo o número de demissões.
Nas respostas enviadas por e-mail à piauí, o presidente afastado afirmou que a informação de que os serviços deixaram de ser prestados é “equivocada”. “Ao longo do ano passado, as instituições [Sesc-RJ e Senac-RJ] passaram por reformulações no método do trabalho”, afirmou Diniz. “Com menos recursos, conseguiu-se manter e até aumentar em alguns casos o número de atendimentos em todos os setores. Optou-se pelo uso eficiente dos recursos disponíveis, inclusive no atendimento médico-odontológico preventivo.” Já o interventor Bittencourt reiterou que “está sendo feito um levantamento que dará certeza sobre o impacto nos serviços”.
Em relação às demissões, Diniz afirma que a intervenção anterior “aumentou significativamente o número de funcionários”, o que teria “quase dobrado” a folha de pagamento. “Isso nos obrigou a reduzir os cargos posteriormente, de modo a readequar o número de colaboradores (…). É fundamental compreender que não há qualquer desacerto nas contas do Sistema Comércio RJ. Estas demissões se devem, repito, à irresponsabilidade dos interventores [de 2014 e 2015], ou seja, do grupo político que ocupa a CNC e que vive de criar factoides e mentiras”, escreveu.
Diniz tornou-se presidente da Fecomércio-RJ em 1998. A entidade tem como principal responsabilidade comandar o Sesc (que promove serviços sociais como cultura, lazer e esportes) e o Senac (aprendizagem). Nos últimos anos, porém, suas contas passaram a ser questionadas por diferentes fontes.
Relatório de uma auditoria interna, de fevereiro do ano passado, apontou pelo menos quinze irregularidades. Entre elas, o pagamento de valores superiores aos contratados, pagamentos antecipados, obras inacabadas, contratações de serviços inadequados e alta de quase 180% em gastos com propaganda, entre 2012 e 2015. Uma dessas irregularidades foi analisada e julgada pelo Tribunal de Contas da União, o TCU: repasses feitos do Senac/Sesc-RJ para a Fecomércio. Ainda em andamento, o processo foi convertido pelo TCU em Tomada de Contas Especial, instrumento utilizado para apurar responsabilidades por dano à administração e obter ressarcimento. O prejuízo nas entidades pode ter chegado a 46 milhões de reais, segundo o Tribunal.
Para os opositores de Diniz, ele teria tentado, com esses repasses entre as instituições, tirar da alçada do TCU a fiscalização dos números do Sesc/Senac. Por serem sustentadas com contribuições recolhidas sobre as folhas de pagamento do setor de comércio, as contas do Sesc e do Senac são auditadas pelo Tribunal, enquanto as da Fecomércio, não.
Diniz, evidentemente, nega. “O Sistema Comércio do Rio de Janeiro tem suas regras de rateio para despesas comuns às instituições envolvidas, como ocorre em outras unidades da Federação”, escreveu. “Durante os períodos de intervenção e avocação do Sesc-RJ e Senac-RJ, os interventores suspenderam, ilegalmente, o repasses de recursos legalmente devidos à Fecomércio-RJ.” Os acordos firmados entre as instituições seriam para “estancar os graves prejuízos causados pela CNC” ao Sesc e ao Senac, segundo o presidente afastado. Diniz afirmou que o Tribunal de Contas está recebendo os esclarecimentos e no fim do processo eles serão acolhidos. “O sistema de repasses de recursos em todo o Sistema S é complexo, o que pode levar a entendimentos equivocados em um primeiro momento”, afirmou, também por e-mail.
A assessoria de Bittencourt disse, porém, que durante a gestão de Diniz houve desvios de função do Sesc/Senac-RJ. Segundo levantamento feito pela nova equipe em cima de uma auditoria de 2016, quase 75% da arrecadação das entidades foram gastos em quatro itens: publicidade, advogados, patrocínio de vôlei e transferências a terceiros, sem comprovação de serviços prestados. Naquele ano, a arrecadação do Sesc-RJ foi de 476 milhões de reais e a do Senac-RJ, de 377 milhões de reais. Destinados a salários e despesas gerenciais, os 25% restantes não seriam suficientes para completar as atividades de educação, lazer, esporte e outros serviços de inclusão social para as quais as entidades foram criadas – o que resultou na suspensão de atendimentos, dizem os adversários de Diniz.
Vizinho de Sérgio Cabral tanto no prédio no Leblon, na Zona Sul, quanto no condomínio de luxo em Mangaratiba, o presidente afastado tem sido questionado por seu envolvimento com o ex-governador, preso e condenado quatro vezes na Lava Jato. A proximidade é atestada por uma troca de e-mails entre ambos, por exemplo, na qual Cabral pede a Diniz um aumento para a chef de cozinha Ana Rita Menegaz. Ela dava expediente no Palácio Guanabara, com o salário pago pela Fecomércio. Cabral é atendido, e ainda faz menção a amigos e parentes interessados em empregos nas entidades dirigidas por Diniz. Para pagar os favores, ele teria pedido e sido atendido na sanção a uma lei que ajudaria o comércio.
Questionado, Diniz afirmou não haver “obstáculo legal que impeça uma funcionária do Senac-RJ de atuar no Palácio Guanabara, em favor do governo do Estado do Rio de Janeiro”. Para o mandatário afastado, o aumento só aconteceu porque a funcionária “acumulava duas funções, a de coordenadora no gabinete do prefeito e de chef no Palácio Guanabara”. “Isso sem falar que é uma das melhores chefs do mercado”, disse à piauí.
A operação Calicute também tem investigado os contratos feitos entre escritórios de advocacia e a Fecomércio. Um deles é o de Adriana Ancelmo, mulher de Sérgio Cabral que, durante a gestão do marido, quadruplicou seu faturamento. A Fecomércio teria gasto com a firma de Ancelmo 13 milhões de reais. Com todas as bancas, 180 milhões de reais. “O escritório da dra. Adriana Ancelmo prestou serviços ao Sistema Comércio do Rio de Janeiro entre 2015 e 2016, conforme farta documentação entregue às autoridades”, informou Diniz. “A banca dispunha de respeitabilidade no meio jurídico e prestava serviços para empresas de diversos setores e para pessoas públicas.” O presidente afastado afirmou não poder falar sobre valores de contratação, “pois a relação com advogados é protegida por sigilo legal.”
Das disputas pelo comando do Sesc e do Senac no Rio, sobram como consequências os relatos de problemas de usuários do sistema e de funcionários das unidades. Dezenas de depoimentos e fotos foram enviados à piauí. “As quatro quadras de Nova Iguaçu estão interditadas há meses, ameaçando cair e destruir as casas dos vizinhos”, afirmava um deles. “A parede da piscina de São Gonçalo está sem azulejos e sempre tem alguém que se corta, inclusive crianças”, contava outro. “Preciso colocar uma prótese. Cadê o atendimento odontológico?”, dizia, num vídeo, a vendedora Simone Oliveira. No esvaziado Sesc de Niterói, na semana passada, funcionários informavam que o calendário de atividades ainda estava indefinido e aulas haviam sido canceladas em função do recesso prolongado. Nem mesmo home office era permitido para adiantar tarefas, por causa da extensão do recesso. “Isso nunca aconteceu antes”, disse o segurança da unidade de Niterói, praticamente deserta em um fim de tarde da semana passada.
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Para esta reportagem, colaborou a jornalista Elisângela Mendonça.
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