"Na política de violência da extrema-direita a polícia atira primeiro e nem pergunta depois, já que não poderá ser julgada ou investigada pela prática de homicídios. Porque pouco importam as vítimas." Colagem de Thallys Braga
Cristãos, pero no mucho
No Congresso, ascensão da extrema direita e enterro da direita moderada dificultam políticas de segurança voltadas às vítimas
A nova composição da Câmara dos Deputados e do Senado mostra que a política brasileira segue firme rumo à extrema direita. Seja qual for o resultado do segundo turno das eleições presidenciais, o fato é que a conformação do Congresso Nacional após as eleições de 2 de outubro reforça o enterro da direita moderada e o protagonismo de políticos reacionários e profundamente ideológicos.
Mas o que isso significa para o debate sobre prevenção da violência ou de segurança pública? Se considerarmos a chamada “bancada da bala”, formada por parlamentares egressos das forças de segurança, temos um recorde no número de eleitos com crescimento de 42,86%, chegando a 40 deputados federais. Destes, 39 foram eleitos por partidos de direita e centro-direita e 31 se declaram abertamente bolsonaristas. Além do crescimento da bancada formada por profissionais da segurança pública, o Brasil assiste ao surgimento da bancada dos CACs com a eleição de 23 parlamentares apoiados pelo Proarmas (dos quais sete são policiais), maior grupo armamentista do país.
Soma-se a essas figuras a eleição de bolsonaristas puro-sangue que se destacaram na política nacional por posições ideológicas radicais. Desde o fundamentalismo religioso da ex-ministra e agora senadora Damares Alves (Republicanos), que travou uma cruzada para impedir o aborto legal de uma criança de 10 anos que engravidou após ser estuprada, à reeleição da negacionista Carla Zambelli (PL), importante membro da tropa de choque bolsonarista, que atuou fortemente contra a imunização da população brasileira durante a pandemia de Covid sob o pretexto da liberdade individual.
Considerando as pautas defendidas por esses grupos e o importante espaço sedimentado pela extrema direita no Congresso Nacional, a próxima legislatura deve radicalizar o discurso sobre segurança pública e enfrentamento ao crime. Pautas como excludente de ilicitude, redução da maioridade penal, ampliação do armamento da população civil e criminalização do aborto mesmo em casos de estupro devem dar o tom do debate nos próximos quatro anos.
E, nesse sentido, chamo aqui especial atenção para os destinatários dessas políticas. Em um país marcado pela violência – urbana, rural, política, de gênero – o olhar para a vítima parece cada vez mais distante. Pautados por um discurso reacionário de ódio e violência, o modo de fazer política da extrema direita depende necessariamente da construção do inimigo a ser combatido. Seja o PT, a esquerda, o comunismo ou as religiões de matriz africana, a extrema direita liderada por Bolsonaro se caracteriza pela busca permanente pelo conflito.
O grande problema da política de segurança pautada pelo inimigo a ser combatido não é apenas o fato de que esta já foi tentada muitas vezes na história deste país e não surtiu efeito. Mas, principalmente, porque essa política perde de vista aquele que deveria ser o principal destinatário das políticas de segurança: o cidadão a ser protegido. Na estratégia de guerra da tropa de choque da extrema direita o foco deixa de ser nas milhares de vítimas das armas de fogo e passa a ser no direito do indivíduo de se armar, ainda que episódios como o ocorrido esta semana na escola estadual de Sobral, no Ceará, em que um aluno de 15 anos pegou a arma do pai, CAC, e atirou contra três amigos, tornem-se cada vez mais frequentes. Porque pouco importam as vítimas.
No conservadorismo fanático da extrema direita, a violência contra a mulher é um problema de ordem privada e não merece ser objeto de políticas públicas. Estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos mostrou que em 2022 o país teve o menor orçamento destinado a projetos de enfrentamento à violência contra a mulher em uma década. Sob o guarda-chuva do Ministério da Família e dos Direitos Humanos, tirou-se a centralidade das mulheres, destinatárias legítimas das políticas, transferindo-as para as famílias, lugar que é com certa frequência o espaço da violência. Porque pouco importam as vítimas.
E no país que ostenta anualmente mais de 66 mil estupros de meninas, a maioria abusadas por seus familiares, a Câmara deve continuar perseguindo a aprovação de projetos que restringem ainda mais o aborto no Brasil. Ao invés de debater como garantir a segurança de milhares de crianças vítimas de abuso sexual, a preocupação está em garantir que estas não interrompam a gestação caso engravidem de seu estuprador. Porque pouco importam as vítimas.
Com o projeto do excludente de ilicitude, uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro, o Legislativo pode institucionalizar algo que já ocorre na realidade nas periferias de muitas cidades, que é a violência estatal como instrumento de controle dos territórios. Vale destacar, no entanto, que o excludente de ilicitude está previsto no artigo 23 do código penal desde 1984, que prevê não existir crime quando o agente o pratica em estado de necessidade, em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever legal. Na política de violência da extrema direita a polícia atira primeiro e nem pergunta depois, já que não poderá ser julgada ou investigada pela prática de homicídios. Porque pouco importam as vítimas.
Em suma, a conformação do Congresso brasileiro para a próxima legislatura indica que as propostas na área de segurança serão baseadas em mais penas, mais punição e mais violência como estratégia de atuação do Estado. Às vítimas e seus familiares deve permanecer a eterna busca pelo mínimo de cidadania e dignidade. Chama a atenção, no entanto, que a maioria dos parlamentares da extrema direita se identifiquem como cristãos, quando os ideais de justiça e solidariedade pareçam tão distorcidos em suas propostas. Cristãos, pero no mucho.