BRASILIA, BRAZIL - JANUARY 11: Damage inside the Supreme Court building following the January 8 attacks, in Brasilia, Brazil, on January 11, 2023. (Photo by Rafael Vilela/ For The Washington Post via Getty Images)
Menos Exército, mais carro de som: a extrema direita um ano depois do 8 de janeiro
Os autointitulados patriotas deixaram de lado os pedidos de intervenção militar, passaram a se concentrar no discurso de justiça divina e na mobilização popular, enquanto incorporam novos elementos da gramática das esquerdas
Ao longo do ano que se seguiu aos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, a extrema direita voltou a ocupar as ruas. Depois de meses acuada pela falta de legitimidade da depredação profanadora das sedes dos três poderes e pelos processos judiciais protagonizados por Alexandre de Moraes e de sequer ter buscado disputar espaço na data do Sete de Setembro, houve uma primeira tentativa, fracassada, no feriado da Proclamação da República, com apenas duzentas pessoas respondendo à convocatória. Em seguida, ocorreram protestos maiores em 26 de novembro e 10 de dezembro de 2023.
Fui a campo na Avenida Paulista para observá-los. Descrever os discursos, símbolos e emoções que circularam nessas manifestações na capital de São Paulo permite também identificar e interpretar tendências e contratendências de como o campo reacionário pode influenciar o desenvolvimento do processo político brasileiro.
O primeiro desses protestos, de 26 de novembro, teve a sua convocatória protagonizada pelo pastor Silas Malafaia, e houve uma tentativa de avançar uma pauta única, dando centralidade à morte de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão, um autointitulado patriota que foi preso por conta do 8 de janeiro e teve um mal súbito na penitenciária da Papuda. Nesse contexto, deu-se uma surpreendente apropriação pela extrema direita da temática dos direitos humanos. A grande novidade dessa manifestação na Paulista foi a inédita ocorrência de um carro de som unificado. Eu acompanho protestos da direita desde março de 2015 e nunca havia observado tal fenômeno; as domingadas desde a época da campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff até chegar aos protestos pró-governo Bolsonaro entre 2019 e 2022 sempre foram marcados pela existência de múltiplos carros de som, que disputavam a atenção dos manifestantes.
Ao contrário da tradição da esquerda de organizar protestos como passeatas – com local de concentração e marcha até um ponto de chegada negociado entre organizadores e PM no qual os manifestantes se dispersam, muitas vezes sob bombas de gás lacrimogêneo – a direita inaugurou com suas domingadas uma dinâmica de protesto singular, na qual as pessoas circulam de um lado a outro das faixas da Paulista, mas sem que a manifestação como um todo saia em qualquer momento do local de concentração. Contudo, a pluralidade de carros de som sempre implicou um grau de flutuação dos corpos e das atenções das pessoas. Elas davam mais bola para os encontros que aconteciam no chão do que para os discursos das lideranças nos caminhões. Muitas vezes os equipamentos de som inclusive se sobrepunham, disputando os olhos e ouvidos de apoiadores nada sedentários, sempre se movendo de um lado para o outro.
Dois dias antes do protesto de novembro, Silas Malafaia foi a público atacar a iniciativa de Carla Zambelli e de seu movimento NasRuas de alugar o próprio carro de som. Ele foi capaz de minar no nascedouro a pluralização desses veículos ao emplacar a interpretação de que a atitude seria divisionista e personalista. Assim, o pastor estabeleceu pela primeira vez o monopólio da atenção dos manifestantes que atenderam sua convocatória. Isso teve implicações profundas para a dinâmica desse protesto e do seguinte, com as atenções voltadas para os discursos.
A faixa pendurada no carro de som de novembro dizia: “Em defesa do estado democrático de direito, dos direitos humanos e em defesa da memória de Cleriston Pereira da Cunha.” Inúmeras falas, cartazes e camisetas emulavam o discurso da esquerda nos tempos da ditadura militar, como se estivesse se desenhando um fechamento de regime. Enquanto um cartaz dizia “sem urnas eletrônicas com contagem pública de votos não há democracia”, um outro clamava “abaixo o regime lulofascista”. O deputado Marcel Van Hattem (Novo), o primeiro a discursar depois de o hino nacional abrir os trabalhos no carro de som, se referiu aos “patriotas” como “presos políticos” que estariam sendo “torturados injustamente”. A também deputada Bia Kicis (PL) afirmou que Clezão foi “vítima da tirania”. Já o ex-deputado Sebastião Oliveira (Avante) alegou que “o sangue do Cleriston está nas mãos do Moraes”. O deputado Marcos Pollon (PL) se referiu ao processo de implantação de uma “ditadura absoluta”. Por fim, um homem que eu não consegui identificar apresentou a diferença entre a democracia (“quando o povo se opõe à vontade de um homem”) e a tirania (“quando um homem se opõe à vontade do povo”).
Depois de senadores e deputados federais e estaduais falarem no carro de som, o evento foi chegando ao final. O discurso mais longo foi o penúltimo, realizado por Silas Malafaia. Depois de se referir a Moraes como “ditador de toga”, o pastor desenvolveu uma crítica jurídica em torno dos presos do 8 de janeiro, uma vez que eles não têm foro no STF, para ele o “Supremo Tribunal Político”. Os “patriotas”, ele acredita, tiveram seu direito ao “duplo grau de jurisdição” desrespeitado; nessa situação, ele apresentou a pergunta retórica que, para mim, sintetiza o encaminhamento coletivo proposto pelos organizadores frente ao diagnóstico de um fechamento “ditatorial” do regime político brasileiro: “A quem recorrer? Só ao povo e a Deus.” Só há essas duas soluções para o dilema político do campo bolsonarista: a primeira é o povo ocupar massivamente as ruas (a fim de exigir o impeachment de Moraes e de outros ministros do STF, para demandar anistia aos “presos políticos”, ou com o objetivo de salvar a democracia e a liberdade). A segunda revela um pouco o ceticismo político da principal liderança que convocou esse primeiro ato diante da encruzilhada em que a extrema direita se encontra: “Se esses caras escaparem do supremo povo e da justiça eles não vão escapar da justiça divina, que eu declaro em nome de Jesus!”
Essa bifurcação entre, de um lado, o povo fazer justiça pressionando nas ruas o sistema político e, de outro, a justiça divina, revela as grandes ausências em termos de solução política para o que esse grupo político enxerga hoje como implementação de uma “tirania” ou “ditadura absoluta”: as Forças Armadas e a reivindicação (tão recorrente no final de 2022) da “intervenção militar”. Tais palavras simplesmente não foram mencionadas durante todo o protesto, nem em cima do carro de som, nem no chão do ato em conversas, cartazes, faixas ou camisetas. Isto é sintomático do esgotamento da breve hegemonia do intervencionismo militar no campo reacionário. O 8 de janeiro não foi tanto o ápice dessa hegemonia, mas a consequência do seu ocaso: diante do fracasso da esperança messiânica por meio da qual os “patriotas” terceirizavam a salvação do país com relação à “fraude eleitoral” e ao “comunismo”, só restou a ação direta de tomar a história pelas próprias mãos e invadir as sedes dos três poderes, em uma tentativa desesperada de criar a desordem que poderia acelerar e legitimar uma intervenção militar que restaurasse a lei e a ordem.
Entre o segundo turno da eleição presidencial de 2022 e a posse de Lula em 1º de janeiro de 2023, havia no discurso e na experiência dos “patriotas” uma verdadeira fusão entre povo, Deus e Forças Armadas. Quando os bolsonaristas bradavam naquele momento “O Brasil é nosso”, o significado político (e teológico) dessa expressão não era nada superficial; dizia respeito ao encontro de duas matrizes: um cristianismo de reconquista da terra prometida e o golpismo secular das Forças Armadas. A desejada intervenção militar sempre foi interpretada também como uma intervenção divina. Quando Exército, Marinha e Aeronáutica não compareceram diante de setenta dias de orações na frente dos quartéis e de tentativas dispersas de espalhar caos e baderna, se movendo do interior do Sul, Norte e Centro-Oeste em direção à Brasília, os “patriotas” entraram em curto-circuito; para preservar o líder Bolsonaro do fracasso da empreitada, foi preciso queimar os militares como “melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro (vulgo “comunistas”). Com a matriz do intervencionismo militar desgastada e descartada, o tripé povo/Deus/Exército que se retroalimentava reciprocamente ficou manco e se tornou um binarismo que se enfraquece mutuamente: ou “o Povo” retorna às ruas ou só resta a justiça divina. Como ficou evidente no protesto seguinte, a primeira opção exige uma desafiadora massificação, enquanto a segunda opção é despolitizante, o que enfraquece e sabota a mobilização política dos bolsonaristas que poderia efetivar essa mesma massificação.
Navegando pelo protesto de 26 de novembro, cheguei a um ponto de estreitamento do espaço entre as pessoas, bem na frente da calçada do Parque Trianon. Uma manifestante falou nesse momento para a sua amiga “Encheu!”, enquanto a outra replicou: “Graças a Deus!” Esta falsa impressão de que a manifestação seria um sucesso quantitativo não era compartilhada de maneira nenhuma pelas lideranças que estavam em cima do carro de som. Repetidas vezes, eles reconheceram que “ainda” não eram “milhões” que ocupavam as ruas, mas tão somente “milhares”, demonstrando que a organização do ato tinha plena consciência de que não se tratava de um público massivo.
O deputado Nikolas Ferreira (PL) verbalizou com precisão a narrativa que estavam tentando emplacar: “Não menosprezem os pequenos começos.” Embora a referência paradigmática (e mesmo autobiográfica) da maioria dos oradores seja a campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff, que de fato começou com três pequenos atos no final de 2014 e apenas se massificou em seguida (com destaque para os protestos de março de 2015 e de 2016), é significativa a apropriação da extrema direita do grito “Amanhã vai ser maior!”, que sintetizava a tática do Movimento Passe Livre em junho de 2013 de reunir cada vez mais manifestantes até que se formasse uma revolta popular que forçasse o sistema político a recuar e aceitar a sua demanda de derrubada do aumento de 20 centavos na passagem do transporte público.
De acordo com reportagens e colunas de opinião na grande imprensa e na mídia alternativa de esquerda, o protesto de 26 de novembro foi “flopado”. Meu diagnóstico é outro. Focar única e exclusivamente na quantidade de pessoas que saíram de suas casas nesse dia específico é um equívoco, pois obscurece outros elementos fundamentais. Em primeiro lugar, é preciso sempre contextualizar o tamanho do público inserindo-o em uma série histórica. Por um lado, é evidente a flutuação declinante da mobilização bolsonarista se comparada com os anos anteriores: se eram centenas de milhares no Sete de Setembro de 2021, tornaram-se em seguida dezenas de milhares (tanto no Bicentenário da Independência, também na Paulista, quanto no feriado de Finados, na frente do quartel na região do Ibirapuera, ambas as vezes em 2022) e em novembro de 2023 eram meras centenas na Proclamação da República, se tornando, por fim, milhares em 26 de novembro. Por outro lado, a manifestação no final de novembro foi a primeira vez que a extrema direita voltou a ocupar as ruas de modo significativo depois da ressaca pós-8 de janeiro. Neste sentido, é preciso encarar o protesto como um possível pontapé inicial na busca da reconstrução da legitimidade de sua ação coletiva diante da derrota eleitoral e da campanha golpista que desaguou nas depredações em Brasília bem como em sérias consequências judiciais, que a colocaram em posição defensiva diante da opinião pública.
Em segundo lugar, a dimensão quantitativa sempre anda lado a lado com uma dimensão qualitativa, algo que só pode ser apreendido por meio da observação in loco. Embora o formato de comício eleitoral tenha sido surpreendente e inédito, ele não chegou a esgotar a dinâmica emocional do protesto de novembro. A produção de um mártir “assassinado” por um ministro do STF “tirano” foi uma poderosa narrativa que energizou os manifestantes, reposicionando a identidade coletiva dos “patriotas” como vítimas antissistêmicas da perseguição de uma “ditadura”. Quando você está rodeado por mais de 10 mil pessoas chamando espontaneamente e a plenos pulmões Alexandre de Moraes de “Assassino! Assassino!”, torna-se difícil menosprezar o evento como simplesmente “flopado”, como sugeriu a imprensa, tendo em vista a consciência de que um setor da população que não é politicamente desprezível acredita que não estamos vivendo em uma democracia e que o Estado brasileiro matou um de seus cidadãos por perseguição política.
Como as próprias lideranças elegeram a dimensão quantitativa como índice de sucesso do futuro da mobilização – já que o protesto de amanhã precisa ser maior do que o de hoje – torna-se inevitável o questionamento se a promessa foi cumprida no protesto seguinte, no início de dezembro. A resposta simples e direta é: não. Levantamentos realizados pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital com softwares que analisam fotos aéreas comprovam que o público decaiu para menos da metade de um protesto para o outro: de 13.300 pessoas em novembro a 5.600 em dezembro.
Para ser coerente com a análise anterior, não basta a quantificação para diagnosticar os rumos da mobilização. Dessa vez, a dinâmica de comício eleitoral se repetiu, mas sem a mesma intensidade emocional do protesto anterior. Em especial pela combinação de dois elementos. Em primeiro lugar, o protagonismo no carro de som deixou de ser de políticos profissionais e passou a ser de lideranças de movimentos conservadores, com carisma e retórica inferiores. Em diversos momentos, os oradores foram atropelados e silenciados por palavras de ordem e gritos espontâneos, puxados pelos manifestantes no chão do ato.
O segundo elemento foi a incapacidade do foco em pressionar o Senado para barrar a indicação de Flávio Dino ao STF e em energizar os manifestantes da mesma forma que a memória de Clezão, o que escancarou os limites de um protesto organizado em torno de um carro de som unificado, que antes estavam obscurecidos pela poderosa narrativa que opunha um “mártir” a um “assassino”. Minha hipótese aqui é que a retórica de origem olavista teve um efeito colateral de desgastar e dificultar uma mobilização que estivesse à altura do necessário para evitar a chegada de Dino à Suprema Corte – se todo o sistema político brasileiro já é “comunista” há anos e décadas, sua indicação deixa automaticamente de ser algo inédito, urgente ou particularmente relevante.
Não apenas havia mais pessoas em novembro do que em dezembro, como elas estavam com seus corpos, olhares e atenções mais centralizados no carro de som, repetindo de uma certa forma a relação totêmica com que os “patriotas” se relacionaram com os quartéis durante a sua campanha golpista de contestação do resultado eleitoral. O ato de 26 de novembro foi organizado de forma meticulosa e eficiente, como um comício ritualizado: o hino nacional abriu e fechou o evento; os oradores pré-inscritos, a maior parte políticos profissionais, tinham falas curtas e precisas; Silas Malafaia foi o penúltimo a falar; e a última etapa do protesto foi o protagonismo da família de Clezão. A viúva e suas duas filhas encarnaram o clímax emocional do evento. A mãe disse: “A gente era uma família, nós somos agora incompletos”, ao passo que uma filha pediu para que os manifestantes “não deixem a morte dele ser esquecida”. A outra filha complementou: “Meu pai deu a vida pra que tudo isto acontecesse.” Se fosse um protesto de esquerda, a palavra de ordem poderia facilmente ter sido “transformar o luto em luta”.
Tudo em 10 de dezembro estava mais frágil. Músicas podem ser importantes catalisadores de identificação coletiva e solidariedade compartilhada. Mas a insistência dos organizadores em canções que não eram de conhecimento da plateia teve o efeito contrário. O samba Dino não foi tocado insistentemente. Alguns dos versos diziam por exemplo: “Dino não/Dino não/Esse cara no Supremo/é uma esculhambação/Dino não/Dino não/Já não basta o desmando/do tal ministro Xandão.” Ninguém acompanhava a cantoria, pois a música era recém-lançada – e, portanto, desconhecida – além de ter sobreposições e modulações difíceis de acompanhar. Já a música Canção da Liberdade havia sido gravada no início de 2022 e circulou modestamente durante a campanha golpista, mas esse misto de música sertaneja e country também não ressoou muito entre os espectadores.
Talvez as coisas teriam sido diferentes se a organização tivesse optado pela versão brasileira (e golpista) de Stand Up (originalmente, canção de Cynthia Erivo para o filme Harriet, sobre a abolicionista Harriet Tubman), gravada e imortalizada pela cantora gospel Fernanda Ôliver, que se tornou musa nos acampamentos em frente aos quartéis e chegou a ser presa por incentivar os atos de 8 de janeiro. Todos ali certamente conheciam a música e poderiam cantar em uníssono. Mas isso implicaria ressuscitar a disposição insurrecionista (dizia um dos versos da canção: “Lutarei com as forças que tenho até o final”), o contrário da disposição apassivadora diante do carro de som, um ano depois da baderna em Brasília. Nem sequer o hino nacional se salvou em 10 de dezembro. Em vez da reprodução da clássica gravação oficial, convidaram uma jovem para cantar. De forma melancólica, a ressonância foi baixa, quase ninguém ressoando a letra de forma imponente e patriótica; o ato já estava esvaziado depois de quase 3 horas ininterruptas de discursos pouco empolgantes e músicas desconhecidas no carro de som, e as poucas pessoas que permaneceram até o final preferiram se dirigir para suas casas.
O engajamento afetivo dos manifestantes em dezembro foi prejudicado por vários fatores: menos pessoas presentes, narrativa menos poderosa e oradores menos carismáticos, porém bastante teimosos em fazer valer a lista de inscrição para falar no carro de som, essa tecnologia de gestão racional e burocratizante da relação entre líderes e sua base. A dinâmica do carro de som unificado que monopoliza a palavra sob a forma de discursos eletrificados e amplificados é chata e cansativa, além de exigir corpos disciplinados, como os que costumam comparecer nos atos da esquerda institucional.
Esse comício ordeiro com público e intensidade emocional declinantes contrasta com as principais características da campanha golpista do final de 2022: emoções profundas mobilizadas e potencializadas por uma impressionante criatividade tática (bloqueios em rodovias, acampamentos em quartéis, ações diretas múltiplas que borraram a fronteira entre “desobediência civil”, violência política e ao menos um atentado terrorista, na véspera do Natal) e orientadas por uma poderosa noção de guerra santa – reconquistar o Brasil das mãos dos “comunistas” dado que esta é uma segunda terra prometida por Deus a um segundo povo escolhido. Se antes a extrema direita parecia surfar no uso da internet e na inovação tática (se apropriando inclusive de alguns dos repertórios da esquerda autônoma), agora eles passaram a copiar o que a esquerda institucional faz de pior em termos de repertório maçante e desmobilizador.
No ato pela memória de Clezão, os dilemas e encruzilhadas inerentes a uma reviravolta institucionalista e ordeira da extrema direita não tinham ficado evidentes, mas em 10 de dezembro eles se tornaram gritantes. Qual poderia ser o significado da reconstrução da legitimidade do grupo político em ocupar as ruas depois das ações diretas de profanação do 8 de janeiro passar pela mimetização do repertório político mais moderado e burocratizado da esquerda institucional? A encruzilhada do campo bolsonarista se localiza na desproporção do diagnóstico (supostos presos políticos sendo assassinados por uma suposta tirania) e o prognóstico em termos de ação coletiva apresentado pelas lideranças (um comício que sequer conta com o seu líder eleitoral, pois ele se tornou inelegível). O desemaranhamento desse nó parece estar diante de três caminhos.
Se essa reorientação institucionalista for para valer, diante da ilegitimidade pública do estado de insurgência anterior, o desafio é forjar uma nova liderança que seja elegível e capaz de manejar o campo reacionário e manter unida uma frente ampla que viabilize a hegemonia da extrema direita sobre a direita e a centro-direita. Isto não é trivial, tanto porque essa era a grande habilidade retórica de Bolsonaro de falar com “autenticidade” para múltiplos públicos quanto porque a centralidade de sua família nesse campo político pode implicar o boicote a lideranças emergentes que não pertençam ao clã.
Ou talvez estejamos vendo apenas uma pausa temporária do caráter insurgente da extrema direita. Em sua dissertação de mestrado, intitulada Contestando a ordem, o cientista político Caetano Patta relata uma conversa que ele teve sobre um ato “Fora Temer” com um secundarista que havia ocupado sua escola em 2015 – alguém, portanto, que foi educado politicamente na ação direta, sob a hegemonia da esquerda autônoma. Embora impressionado com a retórica de Lula, que ele havia presenciado pela primeira vez, o jovem estava atônito com a desconexão entre os discursos no carro de som de que Dilma tinha sido alvo de um golpe e o encaminhamento inconsequente das lideranças políticas: “Mas tipo, os cara falam que é golpe… que não sei o que lá… Aí é tipo um comício, com os tiozinho falando uma pá de groselha… Tinha que parar tudo então se a parada é treta assim… se é golpe, coisa de ditadura… Não sei, fui lá e achei meio coxa…”
Qual é então o significado profundo dos bolsonaristas diagnosticarem a aliança entre STF e governo Lula 3 como uma “tirania” ou uma “ditadura absoluta”? É “uma pá de groselha” ou, se esse diagnóstico de fechamento do regime for levado a sério, isso poderia inclusive conduzi-los a alguma forma de clandestinidade e de múltiplas formas de ação direta e violência política?
Um terceiro e último caminho poderia ser o reconhecimento de que a derrota eleitoral de 2022 e a derrota política e judicial da campanha golpista dos “patriotas” foram, na realidade, uma derrota verdadeiramente histórica da extrema direita. Assim como em novembro, o ato de dezembro repetiu o binarismo de que apenas o povo ou Deus poderiam intervir no processo político. Conforme o amanhã não foi maior do que o ontem e a massificação da mobilização não se verificou, os discursos no carro de som acabaram reconhecendo que a justiça divina virou o último recurso dos bolsonaristas.
O senador Magno Malta chegou a dizer que, conforme “Nós somos a favor da vida, se fôssemos apenas dois, já bastaria”. A esta altura do campeonato, dispensar tão radicalmente assim a massificação da mobilização é um reconhecimento de fracasso. Outro orador, aparentemente um pastor, clamou em seguida por misericórdia e que Deus interviesse na sabatina de Flávio Dino no Senado, que ocorreria três dias depois: “Que o Senhor coloque a mão nos senadores indecisos, esprema o coração deles para rejeitar esta indicação nefasta. Isto não vai acontecer se o Senhor não quiser.” Terceirizar para Deus o veto a Dino foi uma manobra retórica arriscada, uma vez que a partir do momento em que o cenário político mais provável se comprovasse, como seria possível conciliar a onipotência divina com a realidade efetiva? Arrisca-se o teísmo ou então o reconhecimento de que Deus não seria tão anticomunista como se desejava. Com a matriz cristã desassociada seja da ocupação massiva das ruas, seja do intervencionismo militar, restaria apenas aceitar o curso da história como desejo divino. Esse quietismo religioso é excessivamente apassivador, não inspira e até mesmo dificulta a organização da ação política, podendo então ser expressão simbólica do reconhecimento da própria extrema direita de uma derrota material histórica – ou, no mínimo, da sua incapacidade de se adaptar e se reinventar diante de um novo cenário político, o que já seria por si só uma reviravolta histórica, em contraste com sua habilidade, flexibilidade e inventividade nos últimos anos.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí