Ilustração: Carvall
Fake news versão 2.0.22
Para não repetir 2018, TSE terá de ser mais eficiente ao enfrentar milícias digitais
“Nós podemos absolver por falta de provas, mas sabemos o que ocorreu. Sabemos o que vem ocorrendo e não vamos permitir que isso ocorra.” A frase de Alexandre de Moraes, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), foi dita no final de outubro do ano passado no julgamento da ação que pedia a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão por disseminação em massa de fake news nas eleições de 2018. O pedido foi rejeitado por unanimidade, mas a declaração do ministro, que presidirá o TSE a partir deste ano, sintetiza o imbróglio em que o Tribunal está metido na tentativa de fazer frente às milícias digitais que praticaram e seguem praticando estratégias de desinformação. Olhando para 2022, o elemento mais desafiador é fazer com que o “não vamos permitir que isso ocorra” seja uma declaração de força real sobre as eleições, e não uma profecia irrealizável.
Não se pode dizer que seja um sinal de saúde para uma democracia que o processo eleitoral tenha que se iniciar com afirmações de força da Justiça Eleitoral. Um bom juiz de futebol é aquele que não é lembrado depois do jogo. Talvez o mesmo princípio valha para árbitros eleitorais. Acontece que, de fato, não são tempos normais. A mais antiga democracia do mundo, a dos Estados Unidos, há pouco mais de um ano passou por um questionamento violento ao seu sistema eleitoral. E, se é verdade que o sistema eleitoral brasileiro é muito mais robusto do que o americano (mais independente, mais inclusivo e mais eficiente), o cenário eleitoral brasileiro é muito influenciado pelo cenário norte-americano. Incluindo a importação de boatos e notícias falsas, e a nacionalização de campanhas de desinformação e ódio que já se tornaram tendências globais.
Não à toa o presidente Bolsonaro emula seu parceiro Trump nos ataques constantes ao próprio sistema que o elegeu. Trump e Bolsonaro tentaram ativamente burlar regras eleitorais, e os dois acusam o sistema de favorecer seus rivais. Em um vídeo que circula pelas redes sociais de influenciadores bolsonaristas, Steve Bannon, o famoso marqueteiro de Donald Trump, comenta a eleição brasileira: “É a segunda mais importante do mundo, e será a mais importante de todos os tempos na América do Sul. E Bolsonaro vai vencer, a não ser que seja roubado – adivinhem pelo quê? Pelas máquinas.” Bannon se referia, é claro, ao nosso resiliente sistema de voto eletrônico. E apesar de esse ataque — sem nenhuma base lógica — ao processo eleitoral brasileiro desrespeitar a política de integridade cívica do Twitter, seu conteúdo permanece no ar até agora.
Nesse contexto, a independência da Justiça Eleitoral está constantemente sendo questionada e ameaçada. Assim, para voltar à metáfora futebolística, os árbitros eleitorais ficam em uma situação parecida à de juízes de futebol que apitam jogo de time de cartolas poderosos e sempre críticos da arbitragem: passam o jogo com medo de favorecer o adversário e evitam prejudicar o time da casa. Ou seja, se o TSE for duro demais contra Bolsonaro dará razão aos ataques que ele faz ao poder. Se não fizer nada ele atuará, mais uma vez, de forma ilegal durante o pleito.
Nos últimos meses, houve clara sinalização por parte do TSE de que não quer repetir 2018 nas eleições deste ano. Em suma, não quer ser mero espectador de estratégias maciças de tentativa de manipulação da opinião pública que, a despeito da falta de consenso sobre o tamanho do impacto no voto, impactam de forma definitivamente negativa o processo eleitoral. O julgamento da ação contra Bolsonaro-Mourão trouxe discursos fortes, como o de Moraes, e um voto do ministro Luis Felipe Salomão que caracterizou os disparos em massa de fake news como crime eleitoral, desde que cumpridos determinados critérios. O mesmo ministro, como corregedor do TSE, havia determinado, dois meses antes, a interrupção do financiamento de contas que propagam desinformação no YouTube. Ainda em 2021, o ministro Barroso oficiou as plataformas digitais pedindo colaboração no enfrentamento à desinformação. Com a ausência de respostas do Telegram, em janeiro deste ano, o TSE passou a discutir e avaliar concretamente a possibilidade de suspensão do serviço.
A questão chave no momento é que não está claro se a Justiça Eleitoral terá, de fato, dentes para fazer valer o que anunciam os discursos de suas autoridades. As regras que organizam o processo eleitoral mudaram muito pouco nos últimos anos. A proposta do novo Código Eleitoral, que unificaria a legislação e traria atualizações importantes na definição de condutas ilícitas nessa área, passou na Câmara dos Deputados mas não foi apreciada a tempo no Senado. O Projeto de Lei 2630, apelidado de PL das fake news, está desde julho de 2020 na Câmara dos Deputados, e só em novembro de 2021 foi aprovado por um Grupo de Trabalho (que faz as vezes de comissão informal em uma Câmara com procedimentos atípicos em meio à pandemia). Se aprovado pelo plenário, terá de voltar ao Senado, ser aprovado, passar por sanção presidencial, depois ter os vetos apreciados. Isso sem contar o vacatio legis, período entre a sanção e a efetiva aplicação dos termos da lei. Parece muito improvável que o projeto tenha efeito significativo este ano.
A única mudança que houve foi na resolução eleitoral que trata de propaganda eleitoral que, graças a uma ação da sociedade civil que incidiu no processo de consulta pública, trouxe alguns avanços. Entre eles, a caracterização de desinformação contra o processo eleitoral como crime e a proibição de que as campanhas paguem influenciadores digitais para fazer propaganda eleitoral em seus canais. São mudanças interessantes, mas parece pouco para dizer que 2022 será muito diferente de 2018.
As eleições municipais de 2020 serviram como uma amostra do equilíbrio factível, até aquele momento, entre regulamentação, planejamento e execução efetiva do controle da desinformação online. Dois anos atrás, já sob impacto dos duros aprendizados do pleito anterior, o TSE dava início ao Programa de Enfrentamento à Desinformação. O programa contava com a parceria de mais de sessenta entidades da sociedade civil, incluindo as mais importantes redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter) e o WhatsApp – que, a partir de então, passaram a ter diálogo direto com uma equipe especializada dentro do tribunal, na intenção de mitigar possíveis riscos que seus serviços pudessem oferecer ao processo eleitoral brasileiro.
Com foco muito mais direcionado à educação e prevenção, o Programa teve uma atuação inaugural ainda tímida no controle direto da desinformação. Um chatbot no próprio WhatsApp serviu como canal extrajudicial de denúncias de disparos em massa de mensagens, prática proibida durante as campanhas eleitorais – experiência que será repetida em 2022. Segundo o relatório de impacto do TSE, 5.229 denúncias foram recebidas, e 1.042 contas do WhatsApp foram banidas por envio massivo de mensagens relacionadas às eleições. O monitoramento ativo do TSE e seus parceiros nas redes sociais levou à localização de 752 “indicações de desinformação”, que foram comunicadas às plataformas, aos parceiros de checagem e às autoridades competentes, garantindo inclusive a preservação dos dados para análises futuras.
O programa deixou um legado evidente de presença e liderança do TSE no debate público sobre desinformação online. Ainda assim, avaliar o impacto concreto das ações e avanço verificado em 2020, em relação aos graves problemas experimentados em 2018, é uma tarefa difícil. É fato que a dinâmica informacional das eleições municipais é galgada nos territórios, muito distinta da que se dá durante as eleições gerais. Além disso, há a própria falta de transparência das plataformas, que não divulgam dados detalhados da sua atuação em eleições anteriores, para fins de comparação. Note-se: o número de contas removidas pelo WhatsApp por motivos de envio de spam/automação durante o período eleitoral de 2020 foi infinitamente superior ao identificado por meio das denúncias do tribunal, chegando a mais de 360 mil contas. Em 2018, já haviam sido mais de 400 mil remoções – a CPI das Fake News questionou, e recebeu como resposta um memorando do WhatsApp com explicações gerais do seu monitoramento de automação. Em resumo, os métodos e critérios que levaram a essas remoções autocráticas por parte da empresa nas eleições anteriores permanecem desconhecidos.
Se as regras mudaram pouco em relação aos pleitos passados, a chave para entender o que vai acontecer em 2022 com relação a fake news e plataformas digitais está no comportamento de quem vai atuar como árbitro: a Justiça Eleitoral e as plataformas digitais. Essa análise tem sido feita por pesquisadores que conhecem tanto de legislação eleitoral quanto de tecnologia, como Francisco Brito Cruz, do InternetLab.
Do lado das plataformas, os sinais têm sido dúbios. As redes abertas anunciam pequenos avanços ao mesmo tempo em que tentam blindar seus modelos de serviço (e de negócio). O Twitter só anunciou a adoção de um mecanismo de recebimento de denúncia de conteúdo desinformativo depois de campanha expressiva liderada pelo Sleeping Giants Brasil. O YouTube joga duro contra alguns canais de desinformação (como Allan dos Santos), mas faz vista grossa para atores políticos importantes e tem sido pressionado por checadores de fatos do mundo inteiro a tomar atitudes mais relevantes contra desinformação. O Facebook segue com foco no conteúdo em língua inglesa e atuando de forma tímida contra páginas cujo principal foco é desinformar, como revelaram os Facebook Papers e reafirmou uma ex-funcionária em artigo recente no New York Times.
Já as redes fechadas, como WhatsApp (que é do Facebook) e Telegram, operam em ambiente opaco, marcado pela circulação de milhões de mensagens virais por dia, e geram, pelo seu próprio modelo de serviço, a impossibilidade de apuração da maioria dos ilícitos eleitorais ou comuns. Politicamente, as empresas tomam atitudes bem distintas. Enquanto o WhatsApp criou proximidade com o Tribunal Superior Eleitoral e anunciou várias medidas que tentam gerar mais “fricção” para a difusão de fake news, o Telegram sequer recebeu a comunicação física enviada pelo TSE a seu escritório em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Entretanto, alguns advogados eleitorais avaliam que não há muita diferença entre elas no real acesso a dados que podem ser usados para identificar responsáveis pela disseminação de fake news.
Estamos a oito meses das eleições, e o fato é que, apesar de sinalizarem abertura e interesse em colaborar com as autoridades brasileiras, nenhuma das plataformas e serviços citados acima divulgou até agora um planejamento concreto e detalhado de como será sua atuação durante o processo eleitoral brasileiro – se haverá equipe local de recebimento de denúncia e avaliação de conteúdo (e segundo quais critérios), quais as tecnologias e métodos a serem importados/aplicados no controle de comportamento inautêntico, se haverá marcação de conteúdo sensível com direcionamento para fontes de checagem oficiais (como já acontece em algumas delas em relação à informações sobre a pandemia de Covid).
Por sua parte, a Justiça Eleitoral parece menos preparada do que ela mesma julga ser necessário para enfrentar as fake news. No julgamento da chapa Bolsonaro-Mourão, o ministro Salomão afirmou que “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas visando promover disparos em massa contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social, nos termos do artigo 22 da LC 64/1990 [Lei de Inelegibilidade], a depender da efetiva gravidade da conduta, que será examinada em cada caso concreto”.
De acordo com a tese dele, a gravidade precisa ser avaliada com base nos seguintes parâmetros: (a) teor das mensagens e, nesse contexto, se continham propaganda negativa ou informações efetivamente inverídicas; (b) de que forma o conteúdo repercutiu perante o eleitorado; (c) alcance do ilícito em termos de mensagens veiculadas; (d) grau de participação dos candidatos nos fatos; (e) se a campanha foi financiada por empresas com essa finalidade. Acontece que a realidade dos aplicativos fechados de mensagem pode tornar virtualmente impossível a observação desses cinco parâmetros.
Na avaliação de advogados eleitorais, alcançar esses elementos de prova em redes abertas exige um alto grau investigativo, mas ainda é possível. Em redes fechadas, contudo, a missão parece bem mais difícil, a não ser que um denunciante interno de uma parte envolvida resolva expor todas essas informações. Será necessário que o Tribunal trabalhe com teses mais flexíveis, que já têm sido adotadas em determinados julgamentos – considerar, por exemplo, que é suficiente avaliar a gravidade dos fatos em vez de tentar entender o real impacto das fake news sobre o voto do eleitor, o que, na prática, é impossível de medir.
Os julgamentos das ações de 2018 mostraram que a falta de provas sobre alcance e impacto foram decisivos para se afirmar que não houve como provar a gravidade da disseminação de fake news no processo eleitoral. Em um cenário em que as redes fechadas ou não respondem ou não cedem dados relevantes – como, apesar dos esforços do tribunal eleitoral, seguiu acontecendo, na maioria dos casos, em 2020 e 2018 – o acesso a essas informações passa a ser dependente da capacidade de as partes produzirem provas diretamente. Em uma campanha que se dará de forma predominantemente digital, o acesso a dados em tempo oportuno se torna essencial para viabilizar a contenção da disseminação de fake news durante a campanha e o julgamento adequado das ações depois do pleito.
Se a Justiça Eleitoral estará preparada para apoiar as partes na obtenção de provas e atuar de forma rápida para reduzir danos, isso ainda está pouco claro. Sem viabilizar isso, talvez as eleições de 2022 sejam mais parecidas com as de 2018 do que alguns ministros imaginam que será. E, se isso ocorrer, a credibilidade que a Justiça Eleitoral conquistou principalmente depois da Constituição de 1988 ficará definitivamente abalada. Hoje, nos Estados Unidos, há uma percepção, tanto entre democratas quanto republicanos, de que o sistema eleitoral favorece seus oponentes. Esse é um legado profundo e grave da radicalização política levada a cabo por Trump. Cabe ao TSE evitar que sigamos pelo mesmo caminho.
Diretor para a América Latina da Open Society Foundations. Doutor em ciência política pelo Iesp-Uerj. Publicou este ano o livro Democracia Equilibrista - políticos e burocratas no Brasil (Cia das Letras), em co-autoria com Gabriela Lotta.
Diretor do Instituto Cultura e Democracia e coordenador do projeto Desinformante. Doutor em ciência política pela USP.
Gerente de Informação do Programa da América Latina da Open Society Foundations.
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