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    Juliana Vicente, produtora do clipe “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)” e do documentário do Racionais que estreou em novembro na Netflix. " Eu quis fazer um diálogo com o Brasil contemporâneo, mostrar como há avanços em relação às conquistas da população negra, ao mesmo tempo em que continuamos vendo os mesmos protestos de antigamente porque a violência e o preconceito racial se repetem." Foto: Tiago Tambelli/Preta Portê Filmes

depoimento

“Fazer um filme sobre o Racionais me ajudou a entender quem eu sou”

A cineasta negra Juliana Vicente conta a saga de sete anos para produzir o documentário sobre o grupo de rap

Juliana Vicente | 22 nov 2022_07h20
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 “Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama/Eu sou o fruto do negro drama”, dizem os versos de Negro Drama, integrante do álbum Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, lançado em 2002 pelo grupo Racionais MCs. Para a cineasta paulista Juliana Vicente, de 38 anos, os versos contam parte da história dela. “Eu me vejo refletida nessa música. Minha avó Cassimira Celestina dos Santos é uma mulher negra que saiu da Bahia com sete filhos em busca de uma vida melhor em São Paulo. Minha família sofreu toda a crueldade de uma estrutura racista. Eu represento o sonho de ascensão da minha avó”, diz ela. No relato a seguir, a diretora do documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, que estreou na quarta-feira (16) na Netflix, conta sobre o processo de descoberta de si mesma por meio do mergulho na trajetória de mais de três décadas do grupo de rap mais influente do país.

Em depoimento a Lia Hama

Eu tinha 13 anos quando Sobrevivendo no Inferno, do Racionais, foi lançado, em 1997. O disco tocava o tempo inteiro lá em casa e, para mim, era “a música dos meninos”. Nessa fase da adolescência, eu ouvia Bob Marley e quem gostava de rap eram os meus irmãos mais velhos. A gente vivia num condomínio residencial em Vinhedo, no interior de São Paulo. Minha família era a única preta naquele lugar de brancos, éramos conhecidos como “os pretos do condomínio”. O sucesso do Racionais, do Tim Maia e do Jorge Ben nos dava uma sensação de força, pertencimento e orgulho num ambiente de hostilidade: “Vocês reclamam que a gente faz barulho, mas vocês, brancos, também ouvem a nossa música preta.”

Eu venho de uma família negra de migrantes nordestinos. Meus avós paternos saíram de Itapitanga, na Bahia, rumo a São Paulo em pau de arara. Dona Cassimira e seu Galdino chegaram com os sete filhos em Osasco, na Grande São Paulo. Meu avô era analfabeto e vendia doce na frente de um quartel. Minha avó mal sabia ler e era costureira. Apesar do pouco estudo, eles ensinaram os filhos a empreender e foi assim que a família melhorou de vida. Meu pai, Reginaldo, se casou com minha mãe, Márcia, e eles abriram uma firma de aluguel de andaimes em Campinas (SP), onde eu nasci.

Nossa família se mudou para o condomínio em Vinhedo e levou toda essa carga cultural periférica para lá. A gente vivia fazendo festas e churrascos com os parentes à beira da piscina, o que causava conflitos com a vizinhança. Na época da faculdade, eu me mudei para São Paulo para estudar cinema na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado). Mais uma vez, era uma das únicas alunas negras a frequentar aquele espaço de gente branca.

 

Minha primeira experiência profissional com o Racionais aconteceu em 2012. Mano Brown tinha feito a música Mil Faces de um Homem Leal (Marighella) para o documentário Marighella, dirigido pela Isa Grinspum Ferraz. O Daniel Grinspun, sobrinho da diretora, me ligou para saber se eu queria fazer o clipe da música. Na primeira reunião com o Brown, rolou uma identificação imediata. Assim como ele e o Marighella [Carlos Marighella, fundador da Ação Libertadora Nacional, grupo armado de oposição à ditadura militar], eu tenho a pele mais clara do que a de muitos negros. Comentei isso com o Brown e ele falou: “Pra quem não vê que nóis é preto, óculos!” 

Até então eu sabia muito pouco sobre o Racionais. Eu vinha da experiência de ter filmado a ocupação Mauá, no Centro de São Paulo, e sugeri o lugar como locação para o clipe. Chamamos Ice Blue, KL Jay e Edi Rock para participar, foi quando tive a oportunidade de conhecer os outros três integrantes do grupo Racionais. Depois quis inscrever o clipe para concorrer ao VMB, a premiação realizada pela MTV Brasil, mas o Brown não queria. Eu insisti e ele me perguntou: “É importante para você?” Respondi que sim, e ele topou. Ganhamos o prêmio de melhor videoclipe naquele ano de 2012.

 Na cerimônia da MTV, conheci o “furacão” Eliane Dias, que estava começando a trabalhar como empresária do Racionais. Ela então me chamou para fazer alguns vídeos para eles. Fui convidada para assistir ao primeiro show da turnê de 25 anos do grupo no Rio de Janeiro. Eu já estava emocionalmente envolvida com a história deles e, quando vi o que tinha sido produzido de vídeo, achei que poderia somar e falei: “Deixa que eu mesma filmo.” No final dessa turnê rolou o lançamento do disco Cores & Valores, que também filmamos.

Ter acompanhado aquela turnê foi importante para eu ter contato com a base dos fãs do Racionais e entender a dimensão do grupo. “Racionais foi o pai que eu nunca tive”, me explicavam os fãs. “Racionais é a minha religião”, diziam outros. “Racionais é o grito da periferia”, declaravam. O grupo tem seguidores que vão a tudo quanto é lugar do Brasil, onde o Racionais vai, eles vão atrás. No final, tínhamos um vasto material, e aquilo ia virar um DVD de uma turnê comemorativa dos 25 anos. Só que, àquela altura, eu já estava totalmente mergulhada no Racionais, a música deles tinha tomado conta do meu corpo, e eu sentia falta de uma pegada mais política no material gravado.

Eu tinha filmado cenas dos caras fumando e jogando videogame, mas não era isso o que eu queria mostrar do Racionais. Então disse para o Brown que eu ia devolver o material para outra pessoa fazer o DVD. Aí o Brown foi falar para a Eliane, que veio me cobrar: “Ô Juliana, você não vai deixar um cara branco fazer isso no seu lugar! Faz o que você quiser, mas me entrega alguma coisa.” Foi a brecha para eu pedir para entrevistar o Racionais porque, até aquele momento, não tinha rolado nenhuma gravação dos quatro contando a trajetória deles.

 

A primeira entrevista foi gravada em 2015 na sede da minha produtora, a Preta Portê Filmes, na Zona Oeste de São Paulo. Era um lugar onde eles ficariam à vontade porque estavam acostumados a ir e já conheciam a galera. Eu sabia pouco sobre a história do Racionais, então comecei a fazer as perguntas do zero. Coloquei minha cadeira o mais perto possível deles para criar um ambiente de intimidade. Quando sentaram para gravar, falaram por seis horas seguidas. Eles começaram a relembrar os fatos desde o início da carreira no final dos anos 1980 na estação São Bento de metrô. Entraram num fluxo de conversa e parecia que tinham se esquecido de que estavam sendo gravados.

Muito material de arquivo veio de trezentos vídeos em VHS que estavam guardados numa caixa na sede da produtora do Racionais, a Boogie Naipe, na Zona Sul. A Eliane colocou uma pessoa para digitalizar o material. Juntei as imagens de arquivo com as entrevistas e o material da turnê e, com a ajuda de vários montadores, fizemos uma primeira versão do filme. Àquela altura, já estava claro que o projeto não se limitaria a um DVD sobre uma turnê específica, tínhamos material para um documentário sobre os mais de trinta anos de carreira do grupo.

Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock opinaram pouco, eu não dei brecha para isso porque a ideia não era fazer um filme institucional e, sim, dar a minha visão sobre eles. Deixei isso claro: “Espero que vocês gostem do filme, mas não estou fazendo para agradar vocês. Esse documentário é o meu olhar sobre o que vocês fizeram ao longo desse tempo todo.” Eu e a minha equipe recebemos apenas uma direção geral que era: “Não matem o Racionais no final.” A gente não deveria dar a sensação de que o grupo estava no fim da carreira, então esse era um cuidado que nós tivemos, até porque, de fato, considero que eles ainda têm um belo caminho pela frente.

Essa primeira versão foi a que a Netflix assistiu e, com isso, decidiu entrar como parceira do projeto. Até então a gente não tinha grana nenhuma, era tudo feito com a estrutura da minha produtora. Só quando assinamos o contrato com a Netflix, em 2020, entrou o dinheiro que nos permitiu abrir um monte de dias de filmagem para complementar o material que já tínhamos. Eu sentia falta de mostrar o processo criativo do grupo, uma coisa mais sensorial, que entrou nas cenas do prólogo do documentário. Também tinha o desejo de dar um tratamento mais elegante ao longa.

Nesse meio-tempo, entre as primeiras filmagens em 2015 e hoje, o mundo mudou, o debate sobre as questões raciais foi elevado a outro patamar, e o Racionais se transformou. Isso precisava ser refletido no filme. Na primeira versão, a gente falava sobre a ascensão do grupo, a entrada da Eliane como empresária e a chegada às casas noturnas mais conhecidas. Hoje isso já não é mais uma questão central porque eles já estão estabelecidos nesses espaços. Eu quis fazer um diálogo com o Brasil contemporâneo, mostrar como há avanços em relação às conquistas da população negra, ao mesmo tempo em que continuamos vendo os mesmos protestos de antigamente, porque a violência e o preconceito racial se repetem. Tem algo de cíclico nesse sentido.

Eu demorei para terminar esse documentário, fui obsessiva até o último segundo. Teve uma hora em que ninguém aguentava mais e eu ouvia: “Juliana, larga esse filme! Desse jeito você não termina nunca.” Eu queria terminar, mas da forma que eu considerava correta. Tive pesadelos, dormia e acordava com tremedeira tentando achar um final para ele. Pedia ajuda aos orixás e cheguei a colocar uma saudação a Exu no filme para que ele abrisse os meus caminhos. Deu certo.

Esse encontro com o Racionais foi fundamental para eu me entender como artista porque, durante muito tempo, isso me foi negado. Até então eu tive que engolir um monte de referências que não serviam para mim. Estudei a vida inteira com um monte de pessoas brancas e trabalhei em produtoras onde meu trabalho não era valorizado. Eu já tinha dirigido mais filmes do que muitos diretores para quem eu produzia, mas não me davam o título de diretora. Era como se falassem: “Esse lugar não é seu, os artistas somos nós.” Tive que abrir a minha própria produtora, a Preta Portê, para que pudesse realizar filmes sobre os assuntos que são relevantes para mim.

A sessão de estreia de Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo ocorreu no prédio da Cinemateca Brasileira durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Foi um dia especial, estávamos todos com a sensação de estar saindo do período tenebroso que vivemos nos últimos tempos sob o governo de Jair Bolsonaro. No filme, a gente faz um apontamento de futuro, da potência que nós somos como pretos e da importância de ocuparmos esses espaços frequentados majoritariamente por brancos.

Esse documentário levou sete anos para ficar pronto. Filmei a última parte quando estava grávida da minha filha Amora, hoje com 1 ano e três meses. Na sessão de estreia, ela dormiu no cinema. Racionais é música de ninar para essa pretinha que estava na minha barriga durante o processo de montagem. A chegada do filme a uma plataforma global como a Netflix e o espaço que conquistamos para debater essas questões são a prova de que, como falam os versos de Negro Drama, Eu era a carne/agora sou a própria navalha/Tim-tim, um brinde pra mim/Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias. Eu enxergo esse filme como uma vitória nossa e dos nossos ancestrais e torço para que ajude a abrir portas para os que descendem de nós.

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