Roupas e objetos retirados da lama - FOTO Amanda Rossi
Fragmentos de vida e morte
Os 300 dias de luto e espera das famílias de pessoas engolidas pela lama em Brumadinho
Edição: Fernanda da Escóssia
A manhã daquela sexta-feira, 25 de janeiro de 2019, parecia igual a muitas outras no trabalho do sondador Lieuzo dos Santos: fazer mais uma perfuração no alto da Barragem 1, a B1, da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. O objetivo era instalar um piezômetro, instrumento que indica como a barragem está por dentro. Pouco depois do meio-dia, Santos e seus colegas deram o serviço por encerrado e decidiram que estava na hora de ir almoçar. Não deu tempo. A terra começou a se abrir sob os pés dos cinco funcionários terceirizados da Vale. A barragem com rejeitos da mina de ferro se rompia, dando início à maior tragédia da mineração no Brasil. Trezentos dias depois, três dos cinco trabalhadores que estavam no alto da B1 naquele dia ainda estão desaparecidos. Só Lieuzo dos Santos escapou. “O único que estava comigo e que eu vi afundando foi o Miro. Eu afundei de uma vez. A terra deu um aperto em mim e pensei: ‘se foi’. Aí eu não vi mais nada”, conta o sondador. Fragmentos do corpo de Miraceibel Rosa, o Miro, foram identificados em 12 de novembro. Como ele, outras 253 vítimas passaram pelo mesmo processo até agora. Restam 16 desaparecidos. O drama continua não só para as famílias desses 16, porém. Outras convivem há mais de nove meses com um dilema inimaginável: enterrar um fragmento de seus parentes ou esperar que todo o corpo seja encontrado.
O telefonema
Quase seis meses depois do rompimento da barragem, numa sexta-feira, 12 de julho, o celular de Arlete Gonçala Silva tocou. Ela torceu para que a chamada fosse do Instituto Médico Legal de Belo Horizonte. Da cozinha de casa, onde tomava café e comia os biscoitos de polvilho que acabara de fritar, avistou a casa do filho, vazia, nos fundos da sua. Respirou fundo e agarrou o aparelho. Não seria o primeiro telefonema do IML. Em 10 de maio, o órgão ligou para informar que Vagner Nascimento da Silva, o Vaguinho, havia sido identificado entre as 270 vítimas do rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão.
Não era o corpo inteiro do rapaz, avisou a funcionária do IML na primeira ligação, mas só um fragmento, reconhecido por DNA: a perna direita, ligada à ponta da coluna, com um pedaço do intestino e outro da pélvis. Para o Corpo de Bombeiros e a Vale, Silva deixava de constar na lista dos desaparecidos da tragédia. Oficialmente, dos 270 mortos, 254 já foram localizados e identificados – dois de cada três deles, em fragmentos. Para Arlete, porém, começava uma nova espera, por mais partes do corpo do filho. “Ele não saiu para trabalhar só com uma perna. Perna não é corpo. Cadê o resto do meu filho?”, questiona. “Ele tinha o olho da cor da pele, marrom-claro. Ele só vivia rindo.”
Vaguinho tinha 39 anos, era casado e tinha uma filha de 16 anos. Havia quinze anos trabalhava na mina do Córrego do Feijão. Era magro, de rosto alongado, e chamava atenção pelo sorriso largo de dentes grandes. Operava uma motoniveladora e trabalhava na parte alta da mina, protegida do que depois se revelou ser a zona de impacto da lama – um traçado previsto em detalhes pelo plano de emergência compartilhado entre Vale e Defesa Civil e que deveria ser posto em ação no caso de uma tragédia, mas que jamais foi divulgado para a maior parte dos funcionários e moradores da região.
Em 25 de janeiro, Vaguinho desceu até a parte baixa da mina para fazer um exame médico periódico na Vale. O consultório ficava na área administrativa da mineradora, uma das regiões atingidas com mais violência, porque recebeu o baque da parte mais veloz do rejeito. Bastaram cerca de 60 segundos para que a lama percorresse os 1.300 metros entre a barragem e as primeiras construções administrativas, a mais de 80 km por hora. De cada quatro pessoas que morreram na tragédia, três estavam nesse trecho. Junto à perna de Silva, os legistas acharam documentos médicos. “A perna estava com a calça. E, no bolso, estava o exame”, diz a irmã Daiane, de 25 anos.
A notícia do rompimento da barragem correu rápido por Brumadinho. Menos de meia hora depois do início da tragédia, Arlete ligou para o celular do filho, que não atendeu. De imediato, teve certeza que ele tinha morrido. “Eu sabia que não tinha mais jeito. Porque, se ele tivesse escapado, ligaria para dizer ‘mãe, não se preocupa’.” Para Arlete, começava uma longa busca, que poderia se encerrar no telefonema daquele fim de tarde de 12 de julho, por notícias do IML.
A lama
“Ó o gado… como tá correndo hoje. Mas não tem ninguém tocando os animais. Por que os bois estão correndo?” Lieuzo dos Santos se surpreendeu com o tom da pergunta de Olímpio Pinto, seu companheiro de trabalho na Barragem 1, a B1. Havia um assombro desconfiado na voz de Pinto, como se o comportamento incomum dos bois fosse um presságio de algo que ele não conseguia decifrar. Provocado pelo espanto do colega, Santos interrompeu o serviço, virou o rosto e viu os bois galoparem de um lado para o outro, com o olhar assustado. O técnico de 56 anos nunca tinha visto os animais daquele jeito nos dois meses em que estava trabalhando no Córrego do Feijão.
Santos e Pinto eram funcionários da empresa holandesa Fugro, contratada pela Vale para instalar piezômetros automáticos na B1. A equipe era composta por mais três pessoas: Elis Costa, Miraceibel Rosa, o Miro, e Noel de Oliveira. Naquele dia, às 7h30, os cinco colegas iniciaram a jornada de trabalho. Como de costume, deram as mãos para rezar o pai-nosso, entraram na caminhonete da firma e rumaram para o alto da B1.
A B1 armazenava 11,7 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro produzidos ao longo de quatro décadas. Sua superfície, com área equivalente à de trinta campos de futebol, era tão sólida que era possível caminhar sobre ela. Alguns trechos eram cobertos por vegetação rasteira, onde pastava o gado. Uma encosta gramada de 86 metros de altura, equivalente a um prédio de trinta andares, sustentava a barragem. Espalhados pela estrutura havia 94 piezômetros. Metade exigia leitura manual dos dados e estava sendo substituída por modelos automáticos.
Lieuzo dos Santos era sondador, responsável por operar a máquina que fazia o furo por onde o piezômetro seria colocado. Pouco antes das oito da manhã, fez o sinal da cruz e ligou a sonda. Só interrompeu o serviço no fim da manhã, quando Pinto chamou sua atenção sobre o gado. Apesar da sensação de mau agouro, os colegas voltaram a trabalhar. Pouco mais de uma hora depois, a perfuração estava concluída. Era hora de sair da barragem e almoçar. Santos desligou o aparelho e desceu três degraus. Foi quando a terra se rompeu.
Era meio-dia, vinte e oito minutos e vinte e três segundos, segundo o relógio da câmera de segurança da Vale que vigiava a B1. Naquele exato instante, a imagem mostra que a superfície da barragem começou a afundar. Cinco segundos depois, a encosta verde que sustentava o rejeito já tinha se desprendido nas duas laterais e no fundo. A base da encosta se estufava, como se fizesse um esforço para conter um monstro que tentava rasgá-la por dentro. Passados mais cinco segundos, uma lama líquida extravasou e começou a formar uma onda.
A filmagem da câmera de segurança também mostra, em pontos minúsculos, a caminhonete e a sonda da equipe que instalava o piezômetro. Em treze segundos, foram tragadas. “Foi tão rápido. Em segundos, foi tudo para baixo”, lembra Santos.
Dez minutos depois do rompimento, a barragem tinha se transformado em uma vala aberta. Cerca de 80% do conteúdo havia jorrado, volume suficiente para preencher de lama toda a Avenida Paulista até uma altura de cem metros. Em menos de uma hora, o rejeito se espalhou por 2,7 milhões de metros quadrados, quase duas vezes o Parque do Ibirapuera, também em São Paulo.
Quando recobrou a consciência, Santos não sabia onde estava nem quanto tempo havia se passado. “Eu não tinha entendido nada. Só olhava em volta. Não via ninguém. Parei por cima do minério. Era minério mesmo, estava preto. A sorte é que não parei na lama, senão ia afundar. Depois de muito tempo que eu estava lá, veio na minha mente: será que a barragem estourou?”
Santos fora carregado por cerca de 900 metros. Já consciente, começou a cavar para liberar a perna direita que ficara soterrada, mas não conseguia levantar. Acenou e gritou para helicópteros que passaram a sobrevoar a área, mas ninguém o ouvia. Só foi resgatado no final da tarde e levado para um hospital em Belo Horizonte. Quem o via só dizia uma palavra: “milagre”. “Deus pegou com as duas mãos nas minhas costas e não me deixou afundar. Fui flutuando por cima das coisas.”
O sondador imaginava que algo semelhante ocorrera com os outros quatro colegas e que iria vê-los no hospital. No dia seguinte compreendeu: ninguém mais havia sobrevivido. Em busca da equipe da Fugro, os bombeiros mapearam onde foram parar os piezômetros, rastrearam metais em busca da sonda e da caminhonete, cavaram quinze metros de profundidade. Somente em 12 de novembro, Miro foi identificado por DNA – a penúltima vítima identificada até agora. “Eu arrepiei todo quando soube. Chorei. Mas foi encontrado vestígio só”, diz Santos. Pinto, Oliveira e Elis Costa seguem na lista de dezesseis desaparecidos. Santos, que viu ao lado dos colegas o rompimento da barragem, foi o único sobrevivente do primeiro grupo atingido pela lama.
Até agora, já foram identificadas 94% das vítimas, taxa considerada um sucesso inédito em tragédias desse porte. Na queda das Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, o percentual de identificação não passou de 60%. Os números, no entanto, não consolam famílias e amigos de quem ainda não foi achado. “Todo dia eu peço a Deus para serem encontrados e dar um alívio para a família deles. Pelo menos vão saber que achou. Ficar desaparecido é triste demais”, diz Santos. “Nós era tudo amigo. Eu nem vi eles afundando”, lamenta o sondador.
Santos e seus colegas não faziam ideia, mas a B1 vinha dando sinais preocupantes. Em dezembro, um radar havia detectado grande movimentação na barragem, em uma área de 1,5 hectare. “Deformação total progressiva”, anotou o funcionário da Vale responsável pelo equipamento. O local da deformação era a área 17, que “corresponde à área de atuação de instrumentação da Fugro”, informou outro funcionário, segundo relatório da CPI da Câmara sobre o caso. Os cinco colegas também não tinham a informação de que, em junho de 2018, a perfuração da barragem para instalação de um dreno havia produzido uma fratura no maciço da estrutura.
Não sabiam ainda que, quinze dias antes de subirem a B1 pela última vez, os piezômetros automatizados passaram a se comportar de forma anômala. Por isso, desde então, os dados desses instrumentos não estavam sendo acompanhados. Somente em 23 de janeiro, dois dias antes do rompimento, membros da Vale e da Tuv Sud, empresa responsável por atestar a segurança da barragem, começaram a trocar e-mails para discutir o problema. “Ainda estamos sem leituras para prosseguir com o monitoramento desta barragem alteada à montante. Priorizar isso!”, escreveu, na véspera da tragédia, um funcionário da Vale.
A Polícia Federal leu os e-mails sobre os piezômetros para Makoto Namba, um dos engenheiros da Tuv Sud. Em seguida, perguntou qual seria a atitude de Namba caso seu filho estivesse trabalhando próximo da B1. “Ligaria imediatamente para meu filho para que evacuasse o local, bem como ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência das Barragens de Mineração para as providências cabíveis”, disse o engenheiro. Porém, naquele 25 de janeiro, as sirenes de emergência da mina do Córrego do Feijão silenciaram. Namba e outros funcionários da Vale e da Tuv Sud chegaram a ser presos, mas, hoje, todos estão soltos. A força-tarefa do Ministério Público Federal que investiga a tragédia ainda não apresentou denúncia contra nenhum dos investigados.
A busca
Em 29 de janeiro, um helicóptero da Aeronáutica decolou do bairro rural do Córrego do Feijão, vizinho da mina, levando uma nova equipe de bombeiros para um ponto de buscas. O soldado Guilherme Baliza, um dos recém-chegados, ficou em choque. “Antes de chegar a Brumadinho, eu pensava que era como uma piscina de lama. Do alto, comecei a ver lama, lama, lama. Falei comigo: meu Deus, esse negócio é muito grande!”, lembra o bombeiro de 31 anos.
A equipe do soldado Baliza foi uma das primeiras a entrar na lama. Até então, a maior parte das operações havia sido feita a partir das próprias aeronaves ou nas margens da área atingida. Havia dúvidas se o rejeito era tóxico e causaria danos à saúde, mas isso não impediu que os profissionais mergulhassem em busca dos mortos. Mais de noventa horas após a tragédia, já se sabia que era praticamente impossível encontrar alguém com vida. A onda de lama matou praticamente todos que estavam em seu caminho. Apenas oito pessoas atingidas não morreram – uma taxa de sobrevivência de 3%.
O trabalho de buscas era dificultado pelo comportamento de areia movediça da lama, mas auxiliado pelo odor. “O cheiro humano é um ardor, fica impregnado. A gente passava por um local, sentia um cheiro e pensava: tem alguma coisa aqui. Mas, às vezes, a gente só estava com o resquício do cheiro de algo que removemos antes. Era um cheiro residual, uma memória”, se recorda Baliza. Cães foram convocados para ajudar. Estima-se que oito de cada dez restos humanos encontrados em Brumadinho foram farejados por um dos mais de sessenta cachorros, de onze estados do Brasil e de Israel, que participaram das buscas. “Os cachorros são insubstituíveis. Não existe uma máquina que faça o trabalho deles”, explica o tenente Jonas Linke, do Corpo de Bombeiros, que cuidou da logística das operações.
Ao longo do dia, os helicópteros retornavam até as equipes de buscas para recolher os restos encontrados. Diante do número de voos, foi preciso pegar emprestado da Aeronáutica uma estação de controle do espaço aéreo – que, no primeiro mês da tragédia, chegou a operar mais pousos e decolagens que o Aeroporto Internacional de Confins, em Belo Horizonte. O céu de Brumadinho foi tomado por uma procissão mórbida de aeronaves com cordas amarradas a sacos cadavéricos do lado de fora. Nas homenagens que os bombeiros receberam de crianças, havia diversos desenhos retratando essa cena.
Durante quatro dias de trabalho, praticamente tudo que os bombeiros do grupo de Baliza entregaram para os helicópteros foram fragmentos de corpos. “A lama chegou varrendo e destruindo tudo. O que ficou na superfície foram, realmente, pedaços”, diz o soldado.
Quando as buscas começaram, Arlete não tinha mais ilusões sobre a vida de Vaguinho. Passou a ter esperanças sobre a morte. “Quando os bombeiros chegaram em Brumadinho, eu achei que iam achar o Vaguinho muito rápido, eu pensei que iam achar ele inteiro. Mas depois eu fui vendo as pessoas comentando que os caixões estavam leves.” Uma das histórias que mais impressionaram Arlete foi a de uma família que se dirigiu ao IML de Belo Horizonte, para onde foram encaminhados os restos mortais encontrados em Brumadinho, na expectativa de buscar o corpo da filha, esposa e mãe. Porém, se deparou apenas com um pé. Depois desse episódio, a mãe de Vagner avisou ao IML: quando chegasse sua vez de receber a notícia, queria que fossem claros sobre o que havia sido achado.
Em mais de nove meses de operações em Brumadinho, foram encontrados 79 corpos inteiros e 749 fragmentos humanos, alguns tão pequenos como um dedão ou um pedaço de couro cabeludo. Mais de um terço desses mais de oitocentos achados só puderam ser identificados por DNA. Mais de cem ainda não puderam ser identificados de forma alguma.
A grande maioria das vítimas morreu por politraumatismo e teve os corpos fragmentados pela velocidade e pela força da lama, potencializadas pelo peso de contêineres e máquinas de grande porte que foram sendo arrastados. O poder de destruição atingiu mais de cem vezes o que seria necessário para fazer ruir um prédio. Os restos mortais se espalharam pelos 9 km de extensão da lama e atingiram até doze metros de profundidade. De uma mesma pessoa chegaram a ser identificados quinze fragmentos diferentes pelo laboratório de DNA do Instituto de Criminalística da Polícia Civil de Minas Gerais.
A vítima mais preservada que a equipe do bombeiro Baliza achou havia perdido apenas um membro. Estava abraçada a um tronco de árvore submerso, derrubado pela força da enxurrada. Os cabelos longos e os seios indicavam que era uma mulher. No fim da tarde, quando a equipe estava indo embora, um senhor perguntou: “Bombeiro, encontraram algum corpo de mulher hoje?” Era um pai à procura das filhas, desaparecidas na tragédia. Baliza respondeu que haviam achado uma mulher, mas não sabiam quem era. O corpo seguira para o IML de Belo Horizonte, junto com dezenas de outros restos mortais achados naquele dia. A identificação ainda levaria alguns dias, e aquele pai teria que continuar sua espera. Baliza e seus colegas nunca souberam quem era a mulher abraçada à árvore.
Os enterros
Atenagos Jesus, coveiro do Cemitério Municipal de Brumadinho há vinte anos, nunca fora homem de chorar a morte alheia. Aos 63 anos, também nunca tinha visto nem ouvido falar de enterro de partes do corpo. Mas, após sepultar 33 das 270 vítimas do rompimento da barragem, passou a chorar pelos cantos do cemitério e a decifrar, pelo peso, o tamanho do pedaço enterrado. “O caixão que está levinho é porque é uma perna, um braço”, explica. “O sepultamento deles foi lá na lama. Os restos mortais estão vindo para o cemitério, um lugar digno.”
O coveiro conhece pelo nome as 33 vítimas que enterrou. Caminha pelo cemitério mostrando onde estão seus túmulos e contando alguma história de cada um. Vez ou outra, leva uma das mãos ao rosto para enxugar as lágrimas. O rompimento da barragem também fez desmoronar esse homem robusto, de 1,81 metro, cujos únicos indícios da idade são os cabelos brancos em contraste com a pele negra.
“Isso mexe muito com o sentimento da gente. Na hora de dormir fico pensando na tragédia. O pessoal engolido pela lama, que aflição, que sofrimento, que angústia, sem poder se defender”, diz Jesus, com a voz embargada. “Foi uma coisa terrível! As pessoas sendo moídas por outras coisas levadas junto na lama, partidas no meio”, continua.
Por causa da tragédia de Brumadinho, ele precisou realizar um dos piores serviços da sua longa carreira de coveiro. Em fevereiro, menos de uma semana depois do sepultamento de uma das vítimas, a família foi avisada que um novo fragmento do corpo da pessoa fora encontrado. Retornaram ao IML, pegaram o novo pedaço – sempre entregue dentro de um caixão lacrado – e levaram para Jesus e seus colegas refazerem o sepultamento.
“A gente fechou o portão do cemitério e não deixou a família entrar até a gente fazer o serviço”, lembra Jesus. Os coveiros quebraram a laje do túmulo recém-construída, retiraram o caixão e o abriram. “Pegamos a parte dele [do corpo da vítima] que estava no primeiro caixão e colocamos no caixão novo, junto com a outra parte dele”, explica o coveiro. Foram dois sepultamentos da mesma pessoa. “Se quando você faz o primeiro sepultamento a pessoa já está com mau cheiro, imagina depois”, diz o coveiro. Feita a troca de caixões, a família foi chamada. Alguns quase desmaiaram, lembra Jesus. De novo, ele chorou.
Nove meses depois da tragédia, o movimento no cemitério diminuiu, mas o coveiro segue “esperando esses últimos que vão chegar aqui”. Espera por seus conhecidos. “Tá faltando o Aroldo, a Juliana, o Max, o Vaguinho”, diz, incluindo na contagem o filho de Arlete. A lista de Atenagos diminuiu há poucos dias. Em 14 de novembro, o laboratório de DNA identificou um fragmento de Aroldo Ferreira de Oliveira, que era funcionário da Vale – a última vítima identificada até agora. O coveiro Atenagos Jesus tem mais um enterro a fazer.
A volta ao trabalho
Na segunda semana após o rompimento da barragem, depois que a equipe do bombeiro Guilherme Baliza havia terminado sua jornada e dado lugar a um novo time, Josiana Resende, de 31 anos, foi até o que restara da mina. Precisava buscar o carro da irmã, Juliana Resende, funcionária da Vale, que desaparecera no desastre junto com o marido, Dennis Augusto da Silva. Ela era auxiliar administrativa. Ele, técnico de planejamento e controle.
O casal não costumava ir trabalhar de carro. Mas havia passado em claro a madrugada de 25 de janeiro porque Antonio, um dos gêmeos de dez meses, não conseguia dormir. Cansados, os pais perderam a hora e o ônibus da Vale para o serviço, e tiveram que ir para a mina com o veículo da família. Às sete horas, deixaram os meninos nos avós e seguiram para a Vale. Os bebês também teriam a companhia de Josiana, a tia Jojo. Técnica em enfermagem da Vale, ela estava de folga naquela sexta-feira e voltaria ao trabalho no sábado.
Mas não haveria dia seguinte no Córrego do Feijão. Cerca de cinco horas e meia depois de o casal se despedir dos gêmeos, a onda de lama varreu os setores onde os dois trabalhavam. O corpo de Dennis Silva foi identificado cerca de uma semana depois da tragédia. Juliana segue desaparecida. Os meninos continuam na casa dos avós. “Eles foram os únicos que ficaram órfãos de pai e mãe. É tão triste! Dá revolta na gente. Se os responsáveis pela segurança da barragem tivessem feito o que tinha que ser feito, Antonio e Geraldo não teriam ficado órfãos”, diz Josiana.
O local de trabalho de Silva era a área administrativa. O de Juliana ficava um pouco antes. Para fugirem até o estacionamento, seria preciso correr mais de 350 metros. Uma pessoa treinada faria isso em mais de um minuto – tempo que a lama levou para chegar ao local. Era uma missão difícil, especialmente se não soasse nenhum alerta, como foi o caso. A Vale alegou que as sirenes não tocaram “devido à velocidade do evento”. O acionamento era manual e poderia ser feito por duas pessoas. Uma estava fora de Brumadinho. A outra morreu na tragédia.
O carro de Juliana e do marido estava intacto no estacionamento da Vale, que não foi atingido. Ao chegar ao local, a cerca de cem metros do início da área administrativa, Josiana ficou em choque. “Não consegui identificar nem onde eu trabalhava.” Todas as mais de trinta construções haviam sido completamente varridas pela lama. Nem os alicerces resistiram. “Em Mariana, as construções do distrito de Bento Rodrigues ficaram de pé. Em Brumadinho, não. A lama passou arrasando tudo. Era uma lama muito mais rápida e com uma densidade maior. Isso produziu um efeito muito mais danoso. A lama levou telhado, alvenaria e fundação. Em alguns lugares, levou o terreno”, diz o tenente-coronel Anderson Passos, do Corpo de Bombeiros, que chefiou as operações de busca.
Josiana perdeu diversos colegas que estavam trabalhando naquele dia. Se não estivesse de folga, a técnica em enfermagem poderia ter tido o mesmo destino. “Não é ingratidão a Deus, mas é tão difícil a gente agradecer, sendo que minha irmã, meu cunhado e meus amigos estavam lá.”
Em 8 de março, dia do aniversário de Juliana, Josiana voltou a passar pela área atingida. O local estava diferente. A lama havia endurecido. Veículos trafegavam de um lado para o outro, levando o solo removido durante as buscas pelos desaparecidos. “Aquilo me fez tanto mal. Pelo fato de não ter encontrado minha irmã, fiquei imaginando: ela pode estar nessa pilha?” Josiana seria submetida a uma avaliação médica da Vale, que iria verificar se ela poderia voltar ao trabalho. Mas a técnica em enfermagem teve uma crise de choro e foi encaminhada para um psiquiatra.
Para os sobreviventes, retomar o serviço é doloroso. Alguns pediram e conseguiram transferência para outras cidades, mas a maioria ficou em Brumadinho. Nesse caso, não há outro lugar para atuar senão a própria área atingida, onde as vítimas ainda estão sendo procuradas. O solo está todo escavado na procura por corpos e fragmentos. Uma pessoa desavisada poderia confundir o local com uma área de mineração. Mais de 750 mil toneladas de terra foram levadas para pontos de descarte. É suficiente para preencher 125 mil caminhões de eixo simples. Enfileirados, eles ocupariam toda a distância de Porto Alegre a Belo Horizonte.
Onde ficava a barragem, há hoje uma vala aberta, coberta por uma vegetação rasteira de um verde muito vivo. O córrego que existia antes da tragédia voltou a correr, abrindo novo curso em meio à lama seca. Pássaros, macacos e borboletas retornaram. “A natureza vai se recuperando e buscando seu caminho. Agora, a gente também tem que encontrar o caminho da gente”, diz Elias de Jesus Nunes, técnico em meio ambiente da Vale, que voltou ao serviço cerca de trinta dias depois de ter vivido seu maior inferno.
“Entrega a alma para Deus e pede perdão, que a hora de passar para o outro lado é essa. Vamos orar o pai-nosso”, disse Nunes ao colega Sebastião Gomes, quando viu que a lama estava prestes a atingi-los. Os dois estavam em uma caminhonete a mil metros da barragem. Antes do “amém”, o carro foi impulsionado para o alto da avalanche e parou. Os dois sobreviveram. “Para a lama, uma caminhonete como a nossa era a mesma coisa que pegar uma folha de papel e amassar nas mãos. Mas Deus achou que a gente devia sobreviver naquele dia. Só ele sabe por quê”, diz Nunes.
Depois da tragédia, Nunes ficou cerca de um mês em casa. Mas não conseguia se livrar da imagem da chegada da lama na caminhonete. Resolveu voltar ao trabalho para tentar ocupar a mente com outra coisa. Gomes também tentou retornar ao serviço mas, muito abalado, acabou entrando em licença médica. Quando voltou, no final de outubro, pediu demissão.
“Fácil não é [voltar a trabalhar]. Podia ser eu sendo procurado ali, no meio da lama. Isso mexe com a gente”, diz Nunes. Na área atingida, o técnico em meio ambiente recebeu a atribuição de identificar substâncias que possam contaminar o solo. Já outros colegas da Vale ficaram responsáveis por ajudar os bombeiros no resgate de corpos e fragmentos. São operadores de retroescavadeiras e megacaminhões, equipamentos de mineração necessários para escavar, vasculhar e remover a lama na procura por desaparecidos.
O operador de retroescavadeira, por exemplo, manobra a pá da máquina para sacudir a lama seca no ar. Enquanto isso, um bombeiro fica ao lado, para tentar identificar pedaços de corpo que podem cair junto. É o militar que ensaca e registra o fragmento, mas não há como evitar que o funcionário que está operando o maquinário veja todo o processo. “Como o bombeiro vai operar retroescavadeira? O bombeiro não sabe”, diz Nunes. “Mas os bombeiros têm treinamento psicológico para fazer esse tipo de trabalho. A gente não tem. Você sabe que é um colega seu que tá ali [na lama]. Um colega, um amigo.”
Em nota, a Vale afirmou que todas as atividades de busca e recuperação de corpos são feitas, única e exclusivamente, por equipes de bombeiros militares, especificamente designadas para este fim. Segundo a empresa, os funcionários que trabalham com maquinário na área de buscas não estão fazendo resgate de corpos – considerando como resgate de corpos apenas os trabalhos que envolvem colocar a mão nos restos mortais. A empresa também contratou dezenas de trabalhadores terceirizados para atuar na zona de buscas. “A Vale reitera que os empregados aptos para o trabalho que retornaram à rotina foram acolhidos por uma equipe de profissionais da saúde”, diz a nota. A Vale e o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais assinaram um acordo que assegura a parentes dos trabalhadores mortos em Brumadinho indenizações por danos morais, mais seguro e outros benefícios. O acordo também prevê estabilidade de três anos para trabalhadores próprios e terceirizados.
Lieuzo dos Santos, o sondador que estava no alto da B1 na hora do rompimento, também não voltou a trabalhar. A perna que ficou soterrada ainda não se recuperou. “Eu dou graças a Deus de ter sobrevivido. Mas não sei como vai ficar daqui para a frente. Eu não aguento andar muito. Até dormindo minhas pernas doem. O médico falou que se eu ficar assim não vou conseguir voltar a trabalhar. Mas o INSS deixou de me pagar em agosto. A Vale até hoje não me deu um centavo”, desabafa.
Josiana também continua afastada. Desde a tragédia, se ocupa em procurar respostas. Ajudou a reunir os familiares das vítimas em um grupo de WhatsApp, chamado “Famílias dos Não Encontrados”, e a criar uma reunião semanal entre as famílias, os bombeiros e o IML, sempre às quartas-feiras. Josiana e Arlete, a mãe de Vaguinho, estão entre as mais presentes. “A Juju é minha maior motivação para continuar. Porque, se fosse o contrário…”, diz Josiana, interrompendo a frase para chorar baixinho. Em seguida, retoma: “Se fosse o contrário, ela estaria fazendo tudo por mim. Da mesma forma.”
O dilema
Ao longo dos meses, os técnicos do IML telefonaram para várias casas de Brumadinho para informar sobre corpos e fragmentos resgatados da lama. “Da esposa do Sr. T. encontraram um pedacinho que nem se sabe o que é. Do tio da V. acharam o corpo sem a cabeça. De D. foi enterrada só o pé. Eu queria que as pessoas falassem o que foi encontrado de cada um, para ter uma expressão do desastre tão grande que a Vale fez. A palavra é feia, mas infelizmente é isso: eles foram triturados. Todos eles foram triturados”, fala Arlete.
O superintendente da Polícia Técnico e Científica de Minas Gerais, Thales Bittencourt, médico legista há dezessete anos, nunca havia visto nada parecido com a tragédia de Brumadinho. Logo no dia do rompimento da barragem, ficou claro que aquele seria um trabalho inédito. Não só pelo elevado número de vítimas, mas pelo que havia acontecido com os corpos. Em vez de 270 cadáveres, o IML recebeu mais de oitocentos restos mortais.
“Desde o primeiro dia, a grande maioria dos corpos era incompletos ou segmentos. Aí, começamos a ter muitas dúvidas”, revela Bittencourt, em conversa no IML. “Se chegar uma mão e eu identificar que é da Maria, vou comunicar a família e vai fazer o funeral de uma mão? Mas se a pessoa tiver perdido uma mão, não quer dizer que ela morreu.” Usualmente, a declaração de óbito não é fornecida para pedaços de corpo não vitais, já que é possível viver sem membros ou ter passado por um transplante de órgãos.
Para lidar com essa questão, o IML elaborou um parecer, aprovado pelo Ministério Público Federal, estabelecendo que qualquer segmento corporal encontrado no local atingido pela tragédia de Brumadinho seria suficiente para declarar o óbito. “Nunca tínhamos passado por uma situação dessa. A gente teve corpos despedaçados no rompimento da barragem de Mariana, em 2015. Mas, em número de perdas humanas, Mariana não chegou nem perto de Brumadinho”, comenta o superintendente.
“Mas aí vem a outra questão”, emenda Bittencourt. “Se chegar outro segmento da mesma pessoa? Como fazer com a família? Vamos supor: em um caso que chegaram nove segmentos de uma mesma vítima, todo dia eu ligo para a família dizendo: chegou mais um, chegou mais um?” A solução para esse outro dilema, de ordem moral, foi comunicar a família sobre o primeiro fragmento identificado. Na ocasião, seriam dadas duas opções: continuar avisando a cada novo achado ou não telefonar mais.
“A grande maioria, 99%, não quis ser comunicada novamente”, fala Bittencourt. Uma família chegou a pedir para saber de tudo, mas voltou atrás após a terceira ligação do IML, porque não estava “dando conta” de ter que reabrir o processo de luto a cada vez que surgisse um novo pedaço do morto. Arlete, a mãe de Vaguinho, foi uma das poucas que seguiu na espera. Deixou no IML o fragmento já identificado, na expectativa de ter algo mais para sepultar.
O corpo
Em 11 de julho, os bombeiros fizeram uma descoberta que abalou o arranjo estabelecido entre o IML e as famílias das vítimas. Com ajuda de um cão farejador, desenterraram um cadáver praticamente inteiro, só faltando a perna direita – justamente o pedaço do corpo de Vaguinho que já havia sido encontrado. Arlete viu sua esperança reacender.
De volta ao fim de tarde do dia 12 de julho, ela conversa com a repórter na cozinha de sua casa quando o celular toca. Como Arlete esperava, as notícias são do IML. Porém, a ligação vem de uma conhecida do grupo de WhatsApp das “Famílias dos Não Encontrados”. Em silêncio, Arlete escuta. Vai sendo tomada por dor e revolta. Desliga o telefone com força, vira-se para a repórter e fala: “Identificaram. É de uma pessoa que já foi sepultada. Não é o Vaguinho.” A família da vítima em questão nem seria comunicada, porque já havia pedido que o IML não ligasse mais.
O caso fez o superintendente da Polícia Técnico e Científica repensar o acordo feito com as famílias. “[O que foi encontrado] é um segmento muito mais representativo do corpo da pessoa do que uma perna”, pondera Bittencourt. Em outras palavras: será que o IML não deveria avisar a família que o restante do corpo foi encontrado? Ao final, decidiu-se que não. “A família pode dizer: ‘Já falei que eu não queria que você comunicasse mais’”, continua Bittencourt.
O superintendente imaginava, porém, que alguém iria acabar reivindicando o corpo. A descoberta dos bombeiros tinha sido noticiada, e a mídia iria divulgar que o corpo era de alguém já sepultado. Por isso, Bittencourt imaginava que famílias que haviam recebido caixões com apenas uma perna poderiam telefonar para o IML, querendo saber se aquele corpo era do seu ente querido. Mas isso não aconteceu.
O corpo foi encaminhado para o caminhão frigorífico do IML de Belo Horizonte. Ficará congelado, em temperatura negativa, junto com mais de 300 outros fragmentos não recolhidos, por serem de vítimas já identificadas e sepultadas. Há um projeto para que esses restos mortais sejam enterrados em cova única, em uma espécie de memorial, mas ainda não há definição a respeito.
Desde então, mais nenhuma parte do corpo de Vagner Nascimento da Silva foi encontrada. “Eu tenho esperança que o resto dele possa estar lá na lama, inteiro”, contou Arlete, em 4 de novembro. Um dia antes, nova descoberta dos bombeiros havia acordado a esperança da mãe de Vaguinho mais uma vez: um crânio e um tronco. Mas, novamente, era de alguém já identificado e sepultado, cuja família optou por não saber mais detalhes.
Arlete seguirá à espera, solitária na decisão de não sepultar o fragmento identificado do filho enquanto as buscas não cessarem. “Eu pego carona nos dezesseis [desaparecidos] que faltam. Porque se meu filho fosse o último que faltava, os bombeiros não iam estar mais procurando”, diz a mãe de Vaguinho. “Enquanto os bombeiros estiverem caçando, podem encontrar o meu filho. Podem encontrar um corpo sem uma perna e ser ele. Ou podem encontrar outros pedaços.”
Em 21 de novembro, a tragédia de Brumadinho completa trezentos dias. Na casa de Arlete, o Natal será amargo: o 25 de dezembro marca não só os onze meses do rompimento da barragem, mas também o aniversário de 40 anos de Vaguinho. Arlete segue em seu luto e sua espera. Parece não ter pressa de sepultar o filho em 2019. “Vou ser a última a ir buscar meu filho no IML. Eu não vou buscar para depois achar mais [fragmentos]. Só quando os bombeiros desistirem de caçar.”
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