Clara e as filhas ao saírem do Irã - Foto: Acervo pessoal
Fuga de Teerã
Jornalista brasileira tenta escapar com filhas pequenas e o marido de país onde até governantes morreram de Covid-19
Em seu livro de memórias, o economista Roberto Campos relata uma conversa entre ele, então embaixador brasileiro em Washington, e o ex-presidente americano John Kennedy. Era o ano de 1962. Naquele momento, uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética não parecia impossível, tendo em vista a crise dos mísseis dirigindo-se a Cuba. No caso de um eventual ataque russo, Washington seria alvo certeiro. Kennedy disse a Campos que estaria seguro nos subterrâneos de Camp David e perguntou qual era o plano do brasileiro. Campos respondeu que buscaria refúgio na adega da embaixada. E citou um provérbio francês: “Entre a calamidade e a catástrofe há sempre lugar para uma taça de champagne”. Por diferentes motivos, a boutade tem servido de inspiração na minha casa desde que nos mudamos para Teerã. O mais recente foi a confirmação da chegada do coronavírus ao Irã, no dia 19 de fevereiro. Sou casada com um diplomata brasileiro e no último mês observei de perto o país se tornar um dos epicentros do novo vírus no mundo. Primeiro foram as escolas e universidades que suspenderam as aulas, depois os eventos foram cancelados, países vizinhos fecharam as fronteiras, e o país bloqueou algumas estradas para evitar a circulação interna. Ao longo das semanas, vi as minhas mãos e as de amigos ressecarem de tanto lavar e usar álcool gel. Ouvi relatos de pessoas que acordavam de madrugada para lavar as mãos e de outras que nunca mais conseguiram sair de casa, tamanho o pânico de contrair a doença. Depois de uma epopeia, consegui sair do Irã e chegar ao Brasil. A sensação é de déjà-vu.
Quarta, 19 de fevereiro
Número de mortes: 2
Casos confirmados: 2
Eram 10h18 quando, em um dos grupos de WhatsApp de expatriados no Irã do qual faço parte, apropriadamente intitulado “Surviving Tehran”, recebi a notícia de que o Ministério da Saúde iraniano confirmava que duas pessoas mortas na cidade de Qom tiveram testes positivos para o coronavírus. Não entrei em pânico com a mensagem, embora a cidade fique a apenas 150 km da capital. Apesar das fatalidades, o número de casos era baixo e a situação, à primeira vista, parecia controlável. A chegada do vírus era esperada de alguma maneira. Uma semana antes, a pediatra das minhas filhas, uma iraniana de ascendência alemã que fala um inglês impecável, havia se queixado de que as companhias aéreas iranianas não só não tinham cancelados os voos para a China como estavam vendendo passagens mais baratas para estimular as vendas. Ela se mostrou preocupada com a capacidade do sistema de saúde local em lidar com a doença.
O que chamou minha atenção, e a de muitos, foi o fato de terem anunciado duas mortes antes mesmo de qualquer caso confirmado. Esse fato inusitado levou o país a registrar, nesse primeiro dia, uma taxa de letalidade de 100%. A coisa começou mal, as duas vítimas sequer tinham ido à China. Assim, já não era possível traçar a linha de transmissão do vírus nem nos primeiros casos.
Sábado, 22 de fevereiro
Número de mortes: 5
Casos confirmados: 28
Liguei para uma grande amiga em Xangai que, àquela altura, já estava havia cinco semanas confinada em casa. Ela recomendou que eu saísse correndo para comprar máscaras, luvas descartáveis, álcool 75% e borrifadores para desinfetar tudo que viesse de fora de casa. Também sugeriu que estocássemos alimentos. E ainda foi categórica: “Se tiver como sair, melhor sair agora. Se forem rápidos, o risco de contágio em táxi, aeroporto e avião ainda é baixo. E as fronteiras ainda estão abertas. Reflitam, e rápido.”
Até ali, eu só sabia de duas mortes, e isso não me parecia motivo para tanto. Sem pressa, tracei o primeiro plano de fuga do Irã. Já tínhamos passagens compradas para passarmos o primeiro fim de semana de março na casa de amigos em Istambul. Decidimos que, se as coisas piorassem até lá, iríamos da Turquia direto para o Brasil.
Nesse mesmo dia, o Kuwait e o Iraque fecharam a fronteira com o Irã, e minha amiga começou a me parecer profética. As aulas do dia seguinte das minhas filhas, de três e quatro anos, foram canceladas.
Domingo, 23 de fevereiro
Número de mortes: 8
Casos confirmados: 43
Acordo com a notícia de que a Turquia e a Geórgia também fecharam fronteira com Irã. Meu primeiro plano de fuga foi por água abaixo. Escrevo para minha amiga avisando que, infelizmente, não poderemos visitá-la. Àquela altura, ela provavelmente nem queria mais que nós fôssemos. Naquele momento o Irã contava oito mortes, maior número fora da China.
Esses dados pareciam comprovar a suspeita de que o governo havia escondido a informação por causa das eleições parlamentares, realizadas no dia 20 de fevereiro, um dia depois do anúncio das mortes dos dois primeiros pacientes. No Irã, o voto não é obrigatório. Para o regime iraniano, era importante garantir alto comparecimento, de forma a legitimar um resultado que já se anunciava polêmico. Nas semanas anteriores ao pleito, divulgou-se que vários candidatos ao Majlis, como é chamado o Parlamento iraniano, haviam sido vetados pelo órgão responsável por supervisionar as eleições. A maior parte dos impedidos de se candidatar era da ala moderada do sistema político iraniano. Embora o presidente Hassan Rouhani fosse desse grupo, a ala dos conservadores vinha se fortalecendo desde o momento em que os Estados Unidos se retiraram do acordo nuclear e reimpuseram duras sanções contra o Irã. Mais de cem deputados foram impedidos de se recandidatar, por defenderem posições alegadamente contrárias ao regime. Não surpreenderia, portanto, que muitas pessoas não tivessem motivos para sair de casa para votar. Com um vírus circulando pelo país, menos ainda.
Um amigo também jornalista, com quem adquiri o hábito de comentar as notícias envolvendo o Irã desde que cheguei, me escreveu perguntando o quão preocupada eu estava com a situação. Brincou que eu lhe lembrava uma chefe antiga no Estadão com quem ninguém queria fazer plantão, porque as tragédias sempre aconteciam no plantão dela.
Ele, que chegou ao Irã um ano e meio antes de mim, vinha publicando matérias espaçadamente. No entanto, desde que desembarcamos em Teerã, em agosto passado, quase não houve mês em que ele não tenha ocupado as páginas dos jornais brasileiros.
Em setembro, rebeldes houthis do Iêmen, aliados do regime iraniano, atacaram instalações de petróleo na Arábia Saudita. O Irã negou qualquer relação com os ataques, mas a possibilidade de um confronto foi reacesa. Em novembro, o governo anunciou um aumento de mais de 100% no preço da gasolina, extremamente barata no Irã, e protestos tomaram conta do país. Nas ruas, os manifestantes foram violentamente reprimidos. Em uma medida draconiana, as autoridades cortaram a internet do país por quase quinze dias.
A sensação de “ano novo, vida nova” não durou dois dias no Irã. No terceiro dia do ano, soube-se que o general Qassem Soleimani havia sido morto em um ataque americano nas proximidades do aeroporto de Bagdá. Os iranianos prometeram vingança, e a probabilidade de um conflito aumentou. Na noite de 7 de janeiro, o Irã atacou uma base militar norte-americana no Iraque. No dia 8 de janeiro, logo antes do amanhecer, um avião civil caiu após decolar do aeroporto Imã Khomeini. Alguns dias depois, o Irã reconheceu que o avião foi abatido por engano.
Em fevereiro, as coisas finalmente pareciam ter se tranquilizado. Depois de seis meses no país, comecei a vislumbrar uma rotina possível em Teerã, organizamos planos de viagens pelo país e pela região. Aí veio o coronavírus, e instabilidade e imprevisibilidade voltaram à ordem do dia. Que fase. Esses últimos meses parecem ter durado uma eternidade.
Segunda, 24 de fevereiro
Número de mortes:12
Casos confirmados: 61
Encarei o primeiro supermercado desde o anúncio do coronavírus. A cidade, que costuma ter um trânsito caótico, já estava mais vazia. Fiz em oito minutos um trajeto que normalmente leva o dobro de tempo. Na porta do estabelecimento, um funcionário conferia a temperatura de cada freguês antes de permitir que eles entrassem. Outro borrifava álcool em nossas mãos, no carrinho do supermercado e oferecia luvas descartáveis. Achei prudente a iniciativa.
Dentro do supermercado, contudo, o cenário era de tensão. Salvo o uso massivo de luvas e máscaras, acredito que o aniversário do supermercado Guanabara deva ser mais ou menos assim. O ambiente estava apinhado de pessoas empurrando carrinhos com montanhas de produtos. As pessoas claramente se preparavam para o apocalipse. Desisti de passar no açougue, a fila estava grande demais. Qualquer coisa comemos pratos vegetarianos, pensei. O mercado, apesar de lotado, estava bem abastecido.
Na saída do supermercado passei em cinco farmácias diferentes e não encontrei nem máscaras, nem luvas e nem álcool gel em nenhuma delas. Uma amiga me contou que na farmácia ao lado da sua casa estavam leiloando esses produtos e levava quem pagasse mais. Seu marido levou as máscaras por vinte vezes o valor original.
À noite liguei para nosso médico de família contando que não havia conseguido comprar esses produtos. Ele disse que conseguiria trazer do hospital onde trabalha e mandaria entregar lá em casa no dia seguinte. Um problema a menos.
Terça, 25 de fevereiro
Número de mortes: 15
Casos confirmados: 105
A mãe de uma amiga da minha filha me escreve dizendo que a família dela será repatriada. Ela trabalha para a rede de supermercados Carrefour e seu marido para a Nestlé, ambos franceses. Como produtos alimentícios estão fora das sanções, essas são duas das poucas multinacionais que continuaram operando no Irã. Eles ainda estavam sob o choque da informação, pois teriam menos de 24 horas para arrumar as coisas e partir.
A essa altura, amigos e familiares no Brasil já estavam a par da situação e pressionavam para eu voltar logo com as crianças. Me dei conta da vulnerabilidade da nossa situação. Se o Itamaraty não havia feito muito no caso da embaixada e dos consulados na China, não seria com o Irã que algo mudaria. Enquanto outras embaixadas receberam protocolos de seus países e ofertas de repatriação, os diplomatas brasileiros em Teerã tiveram que se valer de contatos e decisões pessoais para tomar as medidas necessárias. Lamentavelmente, não houve orientação de Brasília.
Por uma questão de sanidade mental, reservei uma passagem para irmos para o Brasil no dia 7 de março pela Qatar Airways. A reserva durava 24 horas e ganhei tempo para pensar.
Eu estava resistente a deixar meu marido, que não poderia vir com a gente. Ainda mais em uma viagem sem data para voltar. Estava bem claro que as coisas ainda iriam piorar bastante antes de melhorar. E se a epidemia durasse meses a fio? E se ele ficasse preso no Irã? Ou, pior, e se ele ficasse doente sozinho? Uma parte de mim dizia que era o momento de unir, e não de separar a família.
Quarta, 26 de fevereiro
Número de mortes: 19
Casos confirmados: 139
Às 11h30 recebo e-mail da Qatar avisando que minha reserva iria expirar. A manhã tinha sido caótica, com as meninas irritadiças, brigando por qualquer motivo e apresentando os primeiros sinais de cansaço depois de sete dias sem sair de casa. Meu marido que se cuide.
Entro no site decidida a emitir a passagem, mas a conexão está lenta. A página simplesmente não carrega. Meia hora depois, quando finalmente consigo entrar, minha reserva havia caído. As passagens agora custam quase o dobro do preço e só há disponibilidade a partir do dia 16 de março. Assim como a Turkish, a Emirates também já havia cancelado os voos para o Irã.
Depois de perder uma tarde inteira angustiada pesquisando passagens sem sucesso, resolvo deixar quieto. A verdade é que as estatísticas pedem cautela, mas não há motivo para pânico. Em 80% dos casos, quem contrai o coronavírus apresenta sintomas de gripe. Apenas 5% dos casos são críticos, e a taxa de letalidade é de cerca de 2%. Na minha casa, felizmente, não há ninguém nos grupos de risco. Crianças não só têm sintomas mais leves como também tendem a contrair menos o vírus. Além do mais, restringindo nossas saídas ao essencial, as chances de contágio são muito baixas. O problema é que as meninas continuam sem aulas.
Sexta, 28 de fevereiro
Número de mortes: 34
Casos confirmados: 388
O Irã começa a televisionar as aulas em cadeia nacional através de seus canais estatais. As escolas privadas mandam deveres e conteúdos por e-mail e WhatsApp. Os rumores são de que os colégios só serão reabertos em abril após o Nowruz, ano novo iraniano que acontece nas duas últimas semanas de março, mas que o governo segura o anúncio para evitar que as pessoas viajem pelo país.
Continuo tranquila. O trabalho me obriga a manter uma rotina e me organizar também internamente. Sou cofundadora do Redes Cordiais, um projeto de educação midiática que capacita influenciadores digitais a combater notícias falsas e discursos de ódio nas redes sociais. Atualmente me dedico à produção de conteúdo do projeto. Além do Redes, estava com uma série de frilas trabalhosos para entregar até o fim do mês.
Depois de uma semana em casa, no entanto, ficava cada vez mais claro que o ideal seria conseguir tirar as crianças do confinamento. O problema não era a quarentena em si, mas não saber quanto tempo ela poderia durar. E traçamos nossa terceira tentativa de fuga do Irã. No fim de semana seguinte, iríamos para o Azerbaijão, único país vizinho que ainda mantinha fronteira aberta. De Baku, a capital, pegaríamos um voo para o Brasil. Até lá o visto de saída de nossa babá brasileira, que teve a coragem de nos acompanhar para bem longe de casa, já estaria pronto. No Irã, estrangeiros sem visto diplomático, bem como os próprios iranianos, precisam pedir visto de saída para poder deixar o país.
Sábado, 29 de fevereiro
Número de mortes: 43
Casos confirmados: 593
Resolvi de última hora passar o dia em Dizin, uma estação de esqui a pouco menos de duas horas de Teerã. Meu marido já estava lá em um chalé que alugou com outros cinco amigos naquele fim de semana, quando haveria uma competição de esqui organizada pela embaixada da Eslovênia. A competição havia sido cancelada por causa do vírus, mas muita gente manteve os planos de ir para a montanha e se divertir um pouco. No inverno frio e poluído de Teerã, sair da cidade para ir esquiar é uma das poucas opções de lazer ao ar livre.
Achei que faria bem a mim e às meninas também respirar o ar da montanha. Placas avisando para as pessoas não se cumprimentarem com as mãos, ficarem em casa caso tivessem sintomas de gripe, não acariciarem animais, espirrarem em lenços de papel e usarem álcool gel povoavam os 80 km da nova estrada para Dizin. A estrada havia sido inaugurada naquela semana, e seus dezoito túneis remetem ao Irã pós-acordo nuclear, que podia exportar petróleo normalmente e atraía investimentos estrangeiros bilionários, tendo crescido 12,5% em 2016. Esse Irã eu não conheci, mas sempre ouvimos falar dessa época “dourada” que acabou em maio de 2018 com a volta das sanções. Em 2019, o FMI estima que o PIB iraniano tenha encolhido 9,5%, após queda de 4% no ano anterior.
O dia estava lindo, o céu, azul, e a neve, fofa, perfeita para esquiar e fazer bonecos de neve. Voltamos felizes para casa, até recebermos a informação de que a fronteira com o Azerbaijão também havia sido fechada. O cerco se fechava. Alguns dias depois, as estações de esqui também foram fechadas.
Domingo, 1º de março
Número de mortos: 54
Casos confirmados: 978
Com todos os países vizinhos fechando fronteiras, me perguntei se o risco de desabastecimento não era real. Até onde sei, o Irã é autossuficiente em pistache, maçã e frango. Voltei ao supermercado, dessa vez também para fazer as compras do apocalipse. A cena era a mesma da semana passada. Mas fora a prateleira de arroz que estava vazia, o mercado continuava bem abastecido. Saí tranquila de lá.
Meu marido veio almoçar em casa e me contou que o embaixador brasileiro em um país vizinho havia oferecido evacuar parte do pessoal da embaixada em Teerã para lá. Essa opção seria bem-vinda para as famílias com crianças, permitindo que alguns servidores trabalhassem à distância. Ali, o confinamento seria menor e haveria maiores opções de fuga para o Brasil. O convite solidário foi bem recebido. Algumas dúvidas se impunham, no entanto. O Itamaraty concordaria? Quanto tempo levaria para operacionalizar a mudança? Precisaríamos fazer quarentena? Onde seria? Era melhor tentar ir para o Brasil.
Segunda, 2 de março
Número de mortos: 66
Casos confirmados: 1501
Seguindo nosso lema de que há sempre lugar para champagne entre a calamidade e a catástrofe, recebemos um casal de amigos para jantar em casa. No meio do jantar, nosso amigo, um funcionário da ONU, contou que iria fazer o teste para o coronavírus dali a dois dias. Ele havia estado em uma reunião a portas fechadas com a vice-presidente para Assuntos da Mulher e da Família, que pouco tempo depois soube que havia sido infectada pelo vírus. Todos que participaram daquela reunião teriam que fazer o teste, dez dias depois do encontro, ainda que não apresentassem sintomas.
Tentei disfarçar minha tensão depois que ele contou essa história. Imediatamente me veio à cabeça a faca do queijo, do pão e o pote de pistache que estavam à mesa e que todos nós tocamos. Estávamos tomando os cuidados de higiene recomendados, mas sempre fica alguma preocupação no ar.
Conversamos sobre o número de autoridades iranianas infectadas pelo vírus. Além da vice-presidente e do vice-ministro da Saúde, 8% do parlamento foi contaminado. Dois deputados, um deles recém-eleito, morreram. Além de ser perto de Teerã, Qom é o centro religioso mais importante do país e, portanto, com estreitas ligações com a elite política da República Islâmica.
Terça, 3 de março
Número de mortos: 77
Casos confirmados: 2336
Hoje foi um dia triste. A BBC Persian publicou um vídeo feito no celular mostrando uma fila de cadáveres cobertos por sacos plásticos pretos esperando para serem enterrados no cemitério de Qom. Eu, que perdi meu pai em janeiro de 2018 por causa da febre amarela, me lembrei da brutalidade que é ver uma pessoa querida virar estatística. Neste caso do coronavírus é ainda pior, pois os enterros foram proibidos devido à aglomeração de pessoas.
Quarta, 4 de março
Número de mortes: 92
Casos confirmados: 2922
Meu marido chegou com uma excelente notícia em casa. Um amigo da embaixada que não poderia mais viajar no Ano-Novo iraniano se prontificou a fazer o plantão por ele. Isso significava que poderíamos ir todos juntos diretamente para o Brasil. Começamos a ver passagens imediatamente. O único voo que tinha lugar nos próximos dias para sair de Teerã era para Milão. Os aeroportos e aviões aumentariam nossa exposição ao vírus, abrindo uma janela para o contágio. Mas entramos no modo “brace for impact”.
Brincamos com amigos e familiares que faríamos uma dupla quarentena depois de passar pelos dois países. Embora o Brasil, naquele momento, ainda não estivesse aconselhando quarentena para os viajantes que chegavam dos países mais afetados, decidimos que iríamos nos autoisolar pelos protocolares catorze dias, considerado o tempo máximo para a incubação do vírus. Liguei para uma tia minha que tem uma casa de campo na região serrana do Rio de Janeiro e pedi para ficarmos lá durante esse período. O plano foi traçado: depositei dinheiro na conta da moça que trabalha na casa para ela deixar supermercado e farmácia feitos. A chave seria escondida na caixa do correio, e nem nos veríamos.
Sábado, 7 de março
Número de mortes: 145
Casos confirmados: 5823
Convidamos amigos para um jantar de despedida lá em casa. No início da noite, contudo, recebemos a notícia bombástica de que o nosso e todos os voos da IranAir para Europa haviam sido cancelados. Passamos boa parte da noite conjecturando alternativas de fuga tipo atravessar o Estreito de Ormuz a nado.
Domingo, 8 de março
Número de mortes: 194
Casos confirmados: 6566
Pela primeira vez sinto uma angústia de talvez não conseguir sair do Irã. Para piorar, nossos vizinhos se queixaram de estarmos recebendo convidados em casa em meio à epidemia. E o proprietário do apartamento mandou nos avisar que as crianças não podiam brincar no terraço, único lugar ao ar livre que podíamos frequentar. Segundo ele, aquele espaço era de descanso, e elas podiam estragar a madeira. Detalhe: a madeira fica ao ar livre sujeita a todas as intempéries. Quis chorar de raiva. Respondi que, por recomendação médica, as meninas continuariam frequentando o espaço, pois a vitamina D é essencial para o sistema imunológico.
O dia foi difícil, mas terminou bem. Tarde da noite nosso agente de viagens liga dizendo que tinha aberto vaga em um voo da Qatar, conseguiríamos sair via Doha. Felicidade me define.
Segunda, 9 de março
Número de mortes: 237
Casos confirmados: 7161
Leio duas notícias inverossímeis, porém verdadeiras. A primeira diz que o Ministério da Justiça do Irã determinou a liberdade provisória de 70 mil presos para evitar que o vírus se espalhe nos presídios superlotados. O ministro Ebrahim Raisi disse ainda que mais prisioneiros seriam soltos até o ponto de não representarem um risco à sociedade. E não deu detalhes de quando voltariam.
A agência iraniana Fars reportou que ao menos 27 pessoas morreram por acreditarem em uma fake news que dizia que a ingestão de álcool curaria o coronavírus. Como a venda e consumo de bebidas alcóolicas são ilegais no país, as pessoas acabaram recorrendo ao etanol e metanol como substitutos, e os hospitais passaram a receber centenas de casos de intoxicação depois que o boato se espalhou.
E só agora li que no dia 26 de fevereiro entrou em vigor uma lei que condena à pena de um a três anos de prisão qualquer pessoa que espalhar fake news sobre coronavírus no país. De acordo com a BBC, pelo menos 24 pessoas foram presas por espalharem boatos e outras 118 receberam notificações da Polícia Cibernética.
Terça, 10 de março
Número de mortes: 291
Casos confirmados: 8042
Hoje seria o dia da nossa viagem para a Itália. A situação lá piorou tanto nos últimos quatro dias que, pela primeira vez, começo a achar que o cancelamento do nosso voo foi para o melhor. Milão, por onde chegaríamos, estava em quarentena, como toda a Itália. Entro no site da Qatar para me certificar que nosso voo continua confirmado. Faltam apenas dois dias para a viagem, mas as coisas têm mudado muito rápido.
As mortes chegam a 291, e o supremo líder, aiatolá Ali Khamenei, declara que médicos e enfermeiros que morrerem combatendo o coronavírus terão status de mártires de guerra.
À noite fomos jantar na casa do nosso amigo da ONU, que a essa altura já havia recebido resultado do exame e não pegou o corona da vice-presidente. Chegamos um pouco atrasados e os outros quatro convidados já estavam lá. Acho estranho cumprimentar as pessoas sem poder tocá-las. Eu sempre fico levemente sem graça, sem saber o que fazer com as mãos. Acabei adotando um estilo mais japonês de acenar com a cabeça e curvar levemente o tronco para frente com as mãos em prece.
O jantar transcorria descontraído até que o anfitrião espirrou. Todos imediatamente olharam para ele, que se levantou de pronto e foi lavar as mãos. Voltamos para casa alegres com o encontro. Depois de algumas taças de vinho nos despedimos com um forte abraço, e a orientação de não nos tocarmos foi para as cucuias. De qualquer forma, lavamos as mãos antes de sair.
No carro, a caminho de casa, meu marido comentou que não achou o prato servido o mais apropriado para ocasião. O jantar foi fondue. O que quer dizer que todos comemos o queijo de uma mesma panela, levando o garfo à boca e botando de volta no recipiente. Como queijo bom é uma das coisas mais difíceis de se encontrar no Irã por causa das sanções, eu nem percebi. Meu marido disse que teve o cuidado de não tocar a boca no garfo, apenas no pão. Eu não.
Quarta, 11 de março
Número de mortes: 354
Casos confirmados: 9000
O dia da viagem chegou. Às 8h30 recebemos nossa professora de ioga, uma congolesa-belga casada com um diplomata. Ela preparou uma aula especial para nossa empreitada, com uma sequência de posturas que trabalham o sistema imunológico. Ela também sugeriu que mentalizássemos uma nuvem de proteção azul em volta de todos durante a viagem. E por que não? Depois disso comecei a fazer a minha mala e das meninas. Não tinha adiantado nada com medo de o voo ser cancelado e eu ter que desfazer as malas de uma viagem que nunca aconteceu. Isso seria deprimente. É difícil saber o que levar quando se vai por tempo indeterminado. Só pretendo voltar quando as escolas no Irã reabrirem. A princípio isso ocorrerá no início de abril, depois do Ano-Novo iraniano. Mas tenho minhas dúvidas. Em Hubei, o Covid-19 levou dois meses e meio para alcançar o pico da curva de contaminação.
Na mala de mão separo álcool gel, lencinhos umedecidos, luvas e máscaras. Desde o início da epidemia no Irã optei por não usar máscara. A OMS recomenda o uso apenas para as pessoas que estão doentes não contaminarem quem não está. E alerta que quem optar por usá-las precisa estudar a forma correta do manuseio e descarte. Também tive dificuldade em entender quais tipos de fato protegem contra o vírus, quais os filtros adequados e qual a durabilidade delas. Além disso, nosso médico falou que o mais importante é não colocar a mão no rosto, e que muitas vezes as pessoas acabam levando mais as mãos ao rosto para ajeitar as máscaras do que quando não as usam. É o meu caso. Só pus na mochila caso haja alguém tossindo ao nosso lado no avião.
Também me ocorre a ideia de levar capa de chuva para cobrir o carrinho das meninas. Elas ainda estão numa idade que se esfregam no chão e lambem corrimão.
Às 21h30 o táxi chega para nos levar. Fico aliviada quando vejo que o motorista usa máscara e luvas. Nosso voo é apenas às 3h40 da madrugada, mas estão exigindo que os passageiros cheguem com cinco horas de antecedência para passar por revisão médica obrigatória antes do check-in.
Chegamos ao aeroporto. Achei a tal da revisão médica pouco rigorosa. A enfermeira sequer olha para sua cara, apenas confere sua temperatura e já carimba o certificado que você mesmo preenche. Penso que uma pessoa de má-fé poderia perfeitamente tomar um antitérmico pouco antes do exame e embarcar sem problemas.
As meninas, que dormiram no carro no trajeto para o aeroporto, não acordam nem quando tiram a temperatura delas. Fazemos o check-in e aguardamos mais quatro horas até o voo. Com praticamente todos os voos cancelados, o aeroporto está vazio.
Quinta, 12 de março
Número de mortes: 429
Casos confirmados: 10.075
O embarque começa às 2h40, o voo está lotado. Não vejo nenhum assento livre no avião. Acho que 75% das pessoas estão usando máscaras. As aeromoças não. O clima é de apreensão. Às 5h20 pousamos em Doha. Não deixa de ser um alívio sair do Irã. Na chegada, todos do voo passam por uma espécie de Raio-X que, mais uma vez, mede nossa temperatura. Somos tocados como rebanho para uma área separada que mais parece um curral. Funcionários do aeroporto só nos permitem sair dali uma hora antes da conexão, não importa o tempo de espera. Querem restringir ao máximo a circulação dos passageiros provenientes do Irã. As meninas acordam quando já estamos no portão embarcando para o próximo voo, pouco antes das 7h. Melhor cenário impossível, elas estavam capotadas justamente no momento mais crítico.
Ainda assim, o voo Doha-São Paulo teve dezesseis horas de duração. Do nosso lado, no outro lado do corredor um homem tossiu o tempo todo. Ele estava de máscara, mas percebi que mexia nela o tempo todo. Tenso. O comissário, depois de recolher a bandeja dele, aperta a bochecha das meninas. Sem noção.
Sábado, 14 de março, Brasil
Número de mortes:0
Casos confirmados: 121
Estamos autoisolados na casa de campo da minha tia. Sinto uma leveza que há tempos não sentia. Finalmente, as crianças brincam ao ar livre. Escapamos do Irã. Descobriremos em catorze dias se escapamos também do coronavírus. Enquanto os sintomas não aparecem, há lugar para uma taça de champagne, ou melhor, de vinho ou de cerveja.
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