Ilustração de Paula Cardoso
Governo Doria omitiu 11 mil casos de Covid-19 em São Paulo
Dados oficiais do estado estão subnotificados em relação aos da prefeitura; plano de redução do isolamento social ignorou diferença
Nos últimos 70 dias, o governo do estado de São Paulo deixou fora das estatísticas oficiais de Covid-19 pelo menos 11.060 casos confirmados da doença na capital desde 7 de abril. A subnotificação se revela na comparação entre os boletins epidemiológicos apresentados pelo estado e os boletins do município de São Paulo. O governo de João Doria (PSDB) já havia se pronunciado em meados de abril sobre o que considerou um atraso na atualização dos dados estaduais, mas a diferença aumentou ainda mais nas últimas semanas. O mesmo acontece em outras cidades do estado. Até ontem (18), Santos contabilizava 528 casos a mais que os atribuídos à cidade no boletim estadual; em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, a diferença era de 1.030 casos.
Pelos dados oficiais da Prefeitura de São Paulo, também comandada pelo PSDB, a cidade tinha 109.192 casos até o dia 17 de junho. Pelo boletim do estado, a capital tinha 98.132 casos até a mesma data. Essa discrepância nos dados afeta tanto o número total de casos quanto a evolução diária de novos registros da doença. Essa evolução é um dos critérios utilizados no plano de flexibilização das medidas de isolamento do estado de São Paulo, iniciado no dia 1º de junho. Depois dessa data, a diferença observada entre os boletins estadual e municipal para os casos de Covid-19 na cidade de São Paulo ficou cada vez maior. De 1º a 17 de junho, mais de 6 mil novos casos de coronavírus foram ignorados pelo governo Doria na capital.
O Plano São Paulo, anunciado no dia 27 de maio pelo governo, divide as regiões do estado por fases. A fase 1 representa alerta máximo, ou seja, todos os serviços não essenciais devem permanecer fechados. A fase 4 representa a liberação de praticamente todos esses serviços, incluindo academias, salões de beleza, restaurantes etc. Cada fase intermediária representa um passo em direção à reabertura total. Para avançar para a fase seguinte, a região precisa apresentar, por duas semanas, uma melhora nos indicadores. O primeiro balanço, apresentado no dia 3 de junho, colocava a cidade de São Paulo na fase 2, em que shoppings, comércio e outros serviços já estariam autorizados a funcionar, com algumas restrições. Mas nas duas semanas anteriores à data da publicação do primeiro balanço, os dados do estado deixaram de incluir pelo menos 2.443 novos casos de Covid-19 na capital. No dia 10 de junho, a cidade de São Paulo continuou na fase 2, com autorização para o funcionamento de vários serviços – nesse período de uma semana, pelo menos mais 532 novos casos foram ignorados no município.
O epidemiologista Otavio Ranzani, pesquisador da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, explica que essa diferença atrapalha a análise correta da situação epidemiológica no estado. “É um atraso injustificável”, diz. Ele explica que, na realidade, a melhor forma de verificar o atual estágio da epidemia seria verificar a curva de casos baseada nos dias em que os pacientes sentiram os primeiros sintomas da doença. Isso porque o tempo que leva desde a infecção até a confirmação do resultado do exame pode ser muito longo. “Como o dia que você desenvolve sintomas é mais próximo da data de infecção, esse seria o melhor indicador para observar se a curva da epidemia está de fato caindo”, explica Ranzani. Mas os boletins epidemiológicos do estado e do município de São Paulo não apresentam esse dado, e nada indica que o estado, epicentro da epidemia no Brasil, esteja no fim da primeira onda de contaminação.
“O que está acontecendo em São Paulo podem ser novos surtos epidêmicos que alimentam ainda mais essa onda”, analisa Ranzani. Ou seja, mesmo que a taxa de transmissão diminua, as chances de novos surtos continuam sendo altas. Como a prevalência no estado de São Paulo ainda é baixa – ou seja, poucas pessoas apresentam o anticorpo para a doença –, e o vírus é muito transmissível, o risco de perder o controle da epidemia é alto. “O número de casos pode voltar a subir exponencialmente de novo, principalmente se as medidas de prevenção e isolamento forem deixadas de lado”, explica Ranzani.
A retomada das atividades no estado acontece em um momento em que não é possível observar uma queda nos novos casos de contaminação. Na verdade, os números não pararam de crescer. No dia 17, entretanto, o boletim epidemiológico estadual apresentou uma queda de 86% no número de novos casos – comparado ao dia anterior. No dia 18, esse número caiu ainda mais. O secretário de Saúde do estado, José Henrique Germann, em entrevista coletiva, alegou que nesses dias o e-SUS – sistema online gerenciado pelo Ministério da Saúde onde são registrados os casos de Covid-19 – não estava funcionando adequadamente. A queda de dois dias consecutivos no número de novos casos não era sinal de melhora, mas um erro. A justificativa do secretário, entretanto, não explica os mais de dois meses de incongruência dos dados.
A Prefeitura da cidade de São Paulo e o governo do estado de São Paulo afirmaram que a confirmação dos casos de coronavírus é notificada pelo serviço que realizou o atendimento do paciente à prefeitura local. A gestão municipal é responsável por abastecer o sistema oficial do Ministério da Saúde – o e-SUS –, de onde o governo estadual extrai os dados. A Secretaria de Saúde do estado de São Paulo não soube explicar por que há essa subnotificação crescente dos dados da capital em seu boletim. Por telefone, a assessoria afirmou apenas que essa diferença se dá por conta do atraso na atualização dos dados.
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Após a publicação da reportagem, a Secretaria de Estado da Saúde enviou a seguinte carta à piauí:
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