Ilustração: Carvall
A gramática da intolerância
No Brasil e no mundo, discurso de ódio da extrema direita prega aniquilação dos oponentes – e o xis da questão é quem aplaude esse discurso
Em Sonhos, lançado no distante 1990, o diretor japonês Akira Kurosawa retrata oito histórias. Talvez com exceção da sexta e da sétima, todas se desenrolam independentes umas das outras. Como o título sugere, é um filme que evoca diferentes sensibilidades. Do garoto abelhudo proibidamente presenciando um ritual de matrimônio entre as raposas na floresta, do menino punido pelas fadas pela destruição em sua casa de um pomar de pessegueiros, do impossível encontro do diretor com Van Gogh dentro de um de seus quadros, os sentidos e rituais da vida e da morte. Para quem não viu, fica aqui a sugestão. Dos oito curtas de Sonhos, há um, o quarto, que justifica um comentário mais detalhado: O Túnel. Se a memória não me for tão cruel o enredo é mais ou menos este.
Um homem fardado, solitário, caminha por uma estrada quando se depara com um cachorro bravo que, rosnando, o obriga a entrar em um túnel que desponta em sua frente. Passa-se um tempo e o homem sai do outro lado do túnel com uma expressão abatida. Na sequência ele ouve barulho de passos de uma outra pessoa vindo em sua direção. O fardado solitário na verdade é um comandante militar e quem surge do túnel o seguindo é um antigo subordinado de armas. Já sem vida. Mas que implora por novas instruções. O vivo convence o morto a voltar para o túnel, e esta determinação é, enfim, cumprida. O comandante ensaia retomar sua caminhada quando ouve o barulho de pés marchando, agora de um inteiro regimento, que se aproxima da boca do túnel. Tal como no caso anterior, todo batalhão também está morto. Porém aguarda as ordens sobre o que deve fazer.
Ao comandante não resta muito o que ordenar. Indicar que a guerra acabou, que eles agora pertencem para sempre ao túnel e que para ele todos deveriam retornar. Soldados cumprem ordens e assim eles o fazem. Meia volta, volver: o batalhão segue de volta para onde tinha vindo. Nosso solitário agora pode voltar à sua angustiada caminhada. Mas eis que novamente aparece um cachorro. Rosnando com os dentes expostos e exigindo que ele retornasse para o mesmo túnel. Assim acaba o quarto Sonho de Kurosawa. Aqui começa o nosso pesadelo.
A referência feita pelo diretor japonês obviamente remete à Segunda Guerra Mundial, e cães rosnantes com latidos bélicos são frequentes na história humana. A linguagem da guerra é um discurso público no mundo inteiro, e o exemplo mais recente é a referência ao ocorrido entre a Rússia e a Ucrânia. Porém, mais além do conflito entre os países, chama atenção o crescimento das narrativas que visam identificar os inimigos internos – essa sempre a pior das guerras, pois inexistem tratados internacionais que protejam esse grupo de vencidos.
Nos cinco continentes, é fácil verificar que o discurso pegou. Negros, povos indígenas, árabes (mulçumanos ou não), imigrantes e refugiados (especialmente os de pele escura e nariz alongado), judeus, feministas, não binários. Cada um desses grupos, em cada canto e por algum particular motivo, pode ser o eleito para o papel de inimigo a ter seu corpo controlado, aprisionado, mutilado ou abatido. O tempo atual do mundo vai assumindo uma progressiva gramática da intolerância e no ar começa a se propagar a imagem de trágicas cenas já anotadas nos anais da história. Mas que o bicho homem parece insistir em repetir.
No seu Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel já falava da importância da guerra para a virtude cívica na República Romana. Mais ou menos dois séculos e meio depois, a Revolução Francesa ensinou como um povo em armas animado pelo espírito revolucionário pode ser invencível no campo de batalha. Mas foi com o emergir do imperialismo no final do século XIX que a linguagem bélica se associou ao princípio “democrático” de supremacia nacional e racial. A tal eugenia que destinaria as delícias do planeta aos europeus brancos supostamente mais capazes de competir e sobreviver. Os resultados são conhecidos. Espoliações neocoloniais, trabalho forçado, xenofobia, chauvinismo, e com estes, uma crise econômica devastadora e duas guerras mundiais. A última, felizmente, terminou com a derrota do nazifascismo levando à constituição das Nações Unidas e, de certo modo, a um formal declínio daquele tipo de repertório – que até ao menos entre 1850 e 1950 era língua franca nos meios acadêmicos na seara internacional. Porém, hoje, por todos os cantos, exala um pestilento aroma do que deveria ter sido enterrado de vez.
Existem algumas lúgubres semelhanças entre o que ocorre atualmente com o cenário do entreguerras nos anos 1920. Crises inflacionárias em escala internacional, quebras de cadeias produtivas, guerras reais ou potenciais, riscos de colapso econômico, progressiva hegemonia da linguagem do supremacismo racial e do ódio. Mas existem duas diferenças fundamentais.
A primeira, gerada já na década de 1980, é a ausência de alternativas apontando para outros modelos de sociedade. Pelo contrário, nas últimas décadas o chamado campo progressista se deixou levar pela inevitabilidade da globalização neoliberal se transformando em “gestores da barbárie”, aqui reproduzindo um sombrio conceito do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Marildo Menegat. Mas há uma segunda característica que, malgrado causada parcialmente pela primeira, ganhou uma carga sociológica própria acompanhando o processo de revolução da informação: as mídias sociais.
A emergência das novas tecnologias e o surgimento de novas formas de organização do trabalho aposentaram antigas ocupações profissionais e deslocaram antigos know-how e qualificações, abrindo margem para uma ampla camada de ressentidos sociais, especialmente no sindicato global dos machos brancos, mas recebendo significativas adesões de mulheres confortáveis com seus privilégios raciais e dos demais varões de todos os tons de pele imersos em seus privilégios fálicos. Alternativamente, não faz muito tempo, racistas, nazistas, machistas, xenófobos, fundamentalistas religiosos e cretinos de todo tipo – coitadinhos deles – precisavam se resignar ao seu miserável mundo para expressarem seus mais honestos sentimentos. Nesse novo contexto, as novas plataformas midiáticas permitiram esse fascinante encontro, colocando em contato canalhas de todo tipo que descobriram não apenas não estarem sós, mas que perfilavam um número de alma-mater muito superior ao comumente estimado. O ovo da serpente foi chocado, e agora essa patota veio para ficar – tudo isso em meio a um cenário de perda de densidade dos movimentos sociais e de ideologias libertárias alternativas ao sistema. Parafraseando o velho profeta, um espectro ronda o mundo: o da tirania.
Sabendo que dificilmente a definição será considerada original, o mundo caminha para a extrema direita. Isso implica na retomada dos termos de um nacionalismo xenófobo e intolerante que não admite nada além do que a unidade férrea de um povo idealizado a partir de suas características raciais e culturais imaginadas, cada qual adaptada a um contexto específico. Se a máxima de Goebbels era de que uma mentira contada mil vezes tornava-se uma verdade, os grupos de WhatsApp e demais plataformas digitais permitem com que mentiras sejam contadas na escala dos milhões de vezes. O potencial tirano se transforma na primeira e última fonte da verdade, independentemente de evidências factuais, da lógica formal ou dos mais elementares princípios éticos que devem reger a vida humana em sociedade.
O mundo paralelo inventado pelos grupos de discussão na internet performa um campo de treinamento para os ativistas da extrema direita, cumprindo quase que linha por linha os termos apontados por Hannah Arendt acerca das origens do totalitarismo no começo do século XX. A malta recompondo a sua razão de existir a partir da adesão à família supremacista. Nesse sentido, a diferença entre os supostos Protocolos dos Sábios de Sião ou o terraplanismo é formal. Treinado no exercício diário do acreditar em falsas verdades, o agente da tirania é treinado no duplipensar Orwelliano: “escravidão é liberdade, guerra é paz, ódio é amor.” O pensamento dos indivíduos se funde à razão do líder supremo. Não há problema lógico e moral em se lidar com a óbvia contradição de que o inimigo de ontem (que tal o Centrão? ou o Putin?) pode se transformar no inquebrantável aliado do amanhã. E que o mal, exercido pela transformação do oponente em inimigo a ser destruído, pode virar uma bênção para a nação ou a espécie humana. Essa história e suas sequelas já são conhecidas.
Alimentada pelo ressentimento social e atualmente pelas mídias sociais, a extrema direita tropical inscreveu definitivamente seus termos no processo político brasileiro comprometendo o frágil arranjo institucional iniciado em 1988. Na falta de inimigos externos, ou capacidade bélica de derrotá-los, faz-se a guerra ao próprio povo. Será que serão bem-sucedidos nessa lamentável empreitada? A resposta parece desnecessária. O mero enunciado da pergunta já desfralda a confusão em que nos enfiamos. Que não paire a ingenuidade de se ignorar que, tal como a Espanha nos anos 1930, a extrema direita global elegeu o Brasil como um divisor de águas em seu projeto de poder em escala mundial.
Não somente a guerra faz parte da história humana como a existência de mentecaptos desvairados a clamando são recorrentes. O problema é quando ambas dimensões transformam-se em uma narrativa aceitável no espaço público. Precisando melhor essa questão: no eterno debate sobre quem nasceu primeiro, o ovo (da serpente) ou seu criador, chama atenção as razões pelas quais um deputado medíocre foi elevado ao centro das decisões nacionais portando um discurso de ódio.
Aqui a tragédia é antes sociológica que política. Se o chamado à aniquilação dos oponentes é ouvido e aplaudido em praça pública, quem ouve e quem aplaude é que é o xis da questão. A solução dessa incógnita gira atualmente no entorno de um terço do eleitorado e possivelmente em um quinto dos brasileiros. Já vai no tempo quando era divertido ouvir bobalhões alienados dizendo na rua que seu nome era Enéas. Essa família cresceu. Agora trata-se de uma uma minoria qualificada. E com capacidade de se transformar em maioria. Como foi em 2018, independentemente das alucinações que foram capazes de dizer em praça pública.
Em 1964, multidões foram às ruas em defesa da família, deus e da propriedade de alguma forma abrindo caminho para o golpe de primeiro de abril. As passeatas de 2013, que em um primeiro momento ensaiaram o avanço de uma pauta mais generosa, pareciam que seguiriam a mesma lógica. Mas agora não se pode dizer que a história se repetiu como farsa. Em 1964, após o levante das classes médias, para o novo regime já não havia motivos para manter a sociedade civil de direita mobilizada. Todos podiam voltar a cuidar de seus afazeres privados e deixar os assuntos públicos nas mãos de burocratas e generais.
Desta vez, há um processo ativo de mobilização da malta, inclusive um – que deveria de resto ser considerado inaceitável, legal e constitucionalmente – processo armamentista de seus segmentos mais degenerados. Segundo a Agência Senado, a partir de dados levantados pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE), “só em 2021, mais de 1 mil registros foram concedidos por dia, em média, pelo Exército. Em dezembro de 2021, havia mais de 1 milhão de registros de caçadores, atiradores e colecionadores ativos, o que representa um aumento de 325% comparado a 2018”. Isso fora as milícias e grupos paramilitares já de longa data constituídos atuando abertamente nas principais cidades brasileiras. Ou seja, atualmente lida-se com algo mais parecido com os SS ou camisas negras nazifascistas de militarização popular através de uma retórica agressiva em prol da tomada do poder por quaisquer meios.
Todas as vezes que seres humanos subestimaram o potencial destruidor desse tipo de movimentação política os resultados foram os piores. Na verdade, ninguém precisa de rebuscadas teorias políticas ou de uma bola de cristal para saborear o gosto desse tipo de solução. O quadro atual de devastação nacional já é uma amostra, um couvert, do amargo banquete preparado pela cambada atualmente na direção do país.
Se a caixa de exemplos da história é uma permanente fonte de sabedoria e inspiração, será preciso ir além do simples estudo de casos passados. O imperialismo, o racismo científico, o fascismo e o nazismo foram produtos de seu tempo de suas contradições. Nós vivemos o nosso tempo e as nossas dialéticas. E talvez a mais importante delas seja essa irritante incapacidade das mentes lúcidas de todo o planeta – e dos movimentos sociais – de projetarem diferentes modelos de sociedade com capacidade de aglutinação e representatividade fundados em princípios não menos radicais como solidariedade, democracia, antirracismo e justiça social e ambiental. É essa inapetência, afinal, a maior contradição de nosso tempo. Manancial que retroalimenta a reinante economia política da estupidez.
Em meio a tamanha escassez de inspiração, que ao menos não nos falte a lucidez acerca dos terríveis riscos que pairam sobre nossas cabeças, especialmente no Brasil, e das ações correspondentes exigíveis para fazer frente a tamanha tragédia em potencial. Há diferenças no discurso e prática da extrema direita do tempo pós-moderno e digital contemporâneo e de tempos pregressos. Seu pleno entendimento demandará tempo, esperando que a resposta não chegue tarde demais. De qualquer forma, há sim um importante aspecto que unifica as lógicas supremacistas do passado, do presente e do futuro. Tal como no quarto Sonho do célebre diretor de cinema japonês, hoje há um político brasileiro, nada mais nada menos que o chefe da nação, que rosna tentando jogar brasileiros contra brasileiros no túnel de uma insana luta fratricida. É sobre esse terreno pantanoso que caminhamos atualmente. Unifica a extrema direita global, e o extremismo direitista nacional, o seu desejo de destruição e morte. Para além dos sonhos e pesadelos de Kurosawa, e invertendo os termos do título do livro do nosso famoso escritor modernista, odiar é seu verbo intransitivo.
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