Em seu perfil no Twitter, Benedito se identifica como procurador da República, e trata de temas controversos. Para ele, "violência de gênero não existe" e defensores de direitos de LGBTs têm um "discurso ideológico contra as igrejas"
Guinada à direita
Expoente-mor da onda conservadora no Ministério Público, o procurador Ailton Benedito prega, dentre muitas polêmicas, que o nazismo é um regime socialista
Se seus livros expostos na estante reúnem autores de diversas matizes ideológicas, a atividade de Ailton Benedito, recém-eleito procurador-chefe da Procuradoria-Geral da República em Goiás, nas redes sociais é cartesiana. Há algum tempo, ele vem chamando a atenção de seus pares por suas críticas veementes aos “esquerdopatas”, aos “juristas da orcrim (organização criminosa)”, ao debate de gênero e a ampliação de direitos de LGBTs, defesa da “escola sem partido” e uma campanha contundente contra o que chama de “bandidolatria” e “democídio”.
Recentemente, ele ganhou os holofotes nacionais ao defender que o nazismo seria um regime declarado “socialista” (como tuitou em 13 de agosto) e com o pedido de explicações ao Itamaraty sobre “recrutamento ideológico” de menores brasileiros à Venezuela (sindicância aberta por ele em 2014).
Ailton Benedito me recebeu em seu gabinete, na sede do Ministério Público Federal de Goiás, no Park Lozandes, em Goiânia. Suas posições mostram também um embate crescente dentro do Ministério Público, entre defensores de causas coletivas e dos direitos humanos (áreas de atuação consagradas da instituição desde que foi criada, com a Constituição de 1988) e dos que pedem mais rigor na punição de criminosos.
Da janela de sua ampla sala – mobiliada por um jogo de sofás, mesa para reuniões e uma variada estante com cerca de setenta livros – avista-se o enorme esqueleto da futura sede da Assembleia Legislativa estadual, obra iniciada há doze anos e que ainda não terminou, apesar de já ter custado mais do que o dobro do orçamento inicial, de 54 milhões de reais.
Mineiro de Paracatu, aos 47 anos, Ailton Benedito abre um amplo sorriso e ri alto a cada pergunta mais polêmica. Formou-se em direito na Universidade Federal de Uberlândia, em 1999, foi defensor público da União e, em 2003, tornou-se promotor de Justiça no Distrito Federal. Em 2006, passou no concurso para procurador da República e foi para Jales, cidade de 49 mil habitantes no interior paulista. Escolheu a transferência para Goiânia na primeira promoção da carreira, por ser uma capital perto de sua Paracatu e onde havia “muito pequi”. Na semana passada, Benedito atingiu um novo patamar na carreira, quando foi eleito por seus pares o procurador-chefe da Procuradoria da República em Goiás. Ele assume em 2 de outubro para um mandato de dois anos.
Apesar das intensas manifestações nos perfis no Facebook e no Twitter, ele não se reconhece como militante e se diz um “cidadão de ideias”. “Minha visão ideológica está no artigo 5º, caput, da Constituição: vida, defesa da vida, da liberdade, da propriedade e da segurança pública, direitos fundamentais de qualquer cidadão brasileiro no país, direito inclusive dos estrangeiros que estejam aqui no Brasil.”
Quem emite opinião nos perfis “não é o procurador”, afirma, mas o cidadão. É como se existissem duas pessoas. O procurador, homem branco, olhos claros, cabelo louro puxando para o ruivo e que gosta de chá. Tomou quatro chávenas de infusão de capim-cidreira em três horas de conversa. Já o cidadão do avatar no Facebook e no Twitter em nada lembra o primeiro. A foto em preto e branco dos perfis virtuais faz pensar em um homem sombrio, altivo, que parece o personagem Agente Smith (o ator Hugo Weaving), do filme Matrix.
Apesar do discurso de que seriam coisas diferentes, é impossível dissociar procurador e cidadão, seja nas redes sociais ou na vida pública. Nos próprios perfis, ele não esconde a atividade e se apresenta como procurador da República. E, no MPF, põe em prática ações que surgem das ideias defendidas virtualmente.
Um exemplo disso é a audiência “Segurança Pública e Manifestações Sociais”, que ele promoverá em 21 de setembro em Goiânia. Nela, o procurador contemplará apenas a sua ponta do espectro ideológico: convidou o ativista Kim Kataguiri, do Movimento Brasil Livre (MBL), representantes do Vem pra Rua e de confederações de empresários. Por não se tratar de estudioso do tema, Kataguiri teve sua presença criticada – a exemplo do que aconteceu em um evento organizado pelo Ministério Público Federal no Rio, na semana passada, sobre “Segurança Pública como Direito Fundamental”, ao qual o ativista também foi convidado. “MBL e Vem pra Rua foram chamados porque organizaram grandes manifestações nos últimos anos”, justifica Benedito. “Coincidentemente, elas não descambaram para a violência generalizada. Pretendo ouvi-los justamente para entender por quê.”
Mas não seria producente convidar os organizadores de movimentos que terminaram em violência para entender por que ela aconteceu? Benedito dá uma risada: “Poderia, mas eu entendi que não seria produtivo”. Ele provoca: “Isso se eu tiver a qualificação dos organizadores [risos]. Porque muitas vezes eles estão mascarados. É difícil descobrir quem são.”
Em novembro de 2014, o nome de Benedito apareceu nacionalmente quando pediu explicações ao Itamaraty sobre o suposto envio de crianças e adolescentes do Brasil para treinamento armado na Venezuela. Soube-se depois que o “Brasil” que enviava as crianças era uma comunidade no estado de Sucre, no país vizinho – para oficinas de jornalismo, e não instrução militar. O procurador defende-se, afirmando que apenas “pediu uma investigação” sobre a denúncia e “incluiu nos autos” que a informação teria vindo de um jornalista, Claudio Tognolli (blogueiro conhecido por seu ativismo antipetista, autor de Assassinato de Reputações), e que, portanto, seria necessário averiguar.
O procurador voltou a ressoar país afora quando acionou o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para que divulgasse com antecedência quais seriam os conceitos de direitos humanos usados como referência para corrigir as redações do Enem 2016. A intervenção era uma resposta à prova do ano anterior, quando o tema da redação foi “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, assunto que desagradou Benedito.
Discussão sobre gênero, aliás, está entre as causas combatidas pelo procurador – para ele, violência de gênero não existe. “Olha, existe violência contra mulher, contra homem, contra criança”, diz, e repete o argumento de muitos militantes contrários ao que chamam de “ideologia de gênero”. “Isso para mim é um desvirtuamento do que está previsto na Constituição. Sou contra qualquer tipo de discriminação. Mas, no que diz respeito à imposição de uma ideologia de gênero, para mim é uma violência contra as vítimas, contra os estudantes, crianças, que estão sendo obrigados a receber essa carga de informação no momento de suas vidas em que não estão preparados para absorver.”
A confiança do procurador não se abala, mesmo que os números sobre violência contra a mulher no Brasil sejam expressivos – pesquisa do Datafolha de 8 de março, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança, revelou que 503 mulheres brasileiras são vítimas a cada hora. “É violência de homem contra a mulher, violência de sexo. Essa coisa de não existir sexo se não for uma construção social, isso para mim não existe. Para mim, é homem e mulher. A mulher é vítima de violência dentro de seu lar, isso tem de ser atacado, mas essa categorização de gênero eu não reconheço.”
Ele reconhece os transgêneros – “eles existem” –, mas não aceita o nome social. Argumenta que uma “categoria” não pode ter “direitos a mais”, como o de trocar o nome de homem por um de mulher, por causa de sua condição sexual. “Você cria a possibilidade de um nome social para atender aos desígnios e vontades de uma pessoa, de alguma categoria, quando você pode ter outros grupos de pessoas que também podem querer ter um nome social. Por exemplo, eu me chamo Ailton e poderia querer me chamar João.”
Ele reclama que essa discussão tem levado a muita “exacerbação” por parte de grupos como os defensores de direitos dos LGBTs, e atribui a eles um “discurso ideológico de confrontação às igrejas”. Mas, pergunto, quais frações e ativistas desses grupos se insurgiram contra denominações religiosas? “Teve um caso em São Paulo de uma pessoa dessa categoria [LGBT] pegando um crucifixo e enfiando no ânus.” Neste caso, era notícia falsa. Todos os anos vazam na internet, depois da Parada Gay paulistana, supostas fotos de manifestantes com ofensas a símbolos cristãos. O Boatos.org, site que checa informações na internet, investigou fotos e apontou as que nada tinham a ver com a Parada Gay 2017, entre elas a de um crucifixo que bate com a descrição do procurador.
Crítico contumaz da esquerda ou, como diz, da “esquerdopatia”, o procurador classifica detratores da força-tarefa da Lava Jato no MPF e das decisões do juiz Sérgio Moro de “juristas da orcrim”. Da mesma forma considera todos os apoiadores “da organização criminosa que tomou de assalto o país” a partir de 2003 como membros desta mesma orcrim. Benedito mostra pouco apreço a nuances: para ele, nazismo e socialismo são “irmãos gêmeos”. “Os nazistas eram socialistas, nazismo é gêmeo, tem a mesma árvore que o socialismo. Agora, os socialistas são muito mais amplos.”
Até pouco tempo atrás, as opiniões do procurador poderiam parecer um ponto fora da curva em sua instituição. Em especial, numa área em que Benedito atuou, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, setor identificado com causas coletivas como violência no campo, direitos indígenas e quilombolas e de minorias. “Foram causas que ajudaram a escrever o perfil mais conhecido do Ministério Público brasileiro, a partir da Constituição de 1988. Temos um forte capital institucional, e não foi com a área penal, mas com uma atuação coletiva e ao lado dos que têm menos recursos”, afirma o procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis, que disputou e perdeu a eleição interna para a Procuradoria dos Direitos do Cidadão em Goiás.
Rocha teme pelo futuro do MPF e pelo capital institucional construído pela geração de procuradores da época da Constituição. Na opinião de Ailton Benedito, a instituição acompanha as mudanças vividas pela sociedade, e o crescimento do conservadorismo não passaria batido. “Isso é inexorável. A instituição está no mundo real e ela vivencia esses aspectos, para o bem ou para o mal, há muito tempo, desde que começou a interagir com a sociedade.”
As redes sociais têm notabilizado outros expoentes da direita no MP, além de Benedito. O procurador da República Guilherme Schelb, por exemplo, é um ativista das mesmas causas de seu colega de Goiás, em especial da “escola sem partido” e contra a “ideologia de gênero”. Schelb, porém, não se identifica como procurador da República em seus perfis. “Bandidolatria” e “democídio” (cujo significado mais aceito é o de “assassinato cujo culpado é o governo”) são termos que têm sido muito repetidos por operadores do direito como Schelb e Benedito. Os promotores de Justiça gaúchos Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza notabilizaram as expressões no livro Bandidolatria e Democídio – Ensaios sobre Garantismo Penal e a Criminalidade no Brasil, lançado em maio.
Os autores consideram haver um “ciclo democida” promovido pelo Estado brasileiro sustentado em quatro pilares: sucateamento das forças policiais; desmantelamento doloso do sistema penitenciário; legislação leniente e desencarceramento de criminosos perigosos. As ideias mobilizaram um grupo de cerca de 150 procuradores da República, promotores de Justiça, professores e alguns juízes a assinarem dois manifestos – com assinaturas de promotores e procuradores de dezoito estados, é uma espécie de catálogo do conservadorismo no direito brasileiro atual.
Os documentos – “Você tem sido enganado” e “Quem poupa o lobo sacrifica as ovelhas”, ambos divulgados em agosto – provocaram um debate intenso nos sites jurídicos entre os chamados “garantistas”, acusados de “apologistas da impunidade” e de “apóstolos da bandidolatria”, e os “punitivistas”, como Benedito e Schelb. Com linguagem simples, os textos apresentam discurso de senso comum, no qual as entidades dos direitos humanos “defendem os bandidos”, e a solução para a criminalidade estaria em mais encarceramento e no “fim da impunidade”, na defesa das forças policiais, entre outras. Abusam de aproximações lógicas para forçar verossimilhança (como quando afirmam que todas as audiências de custódia, instrumento pelo direito de defesa reconhecido internacionalmente, resultam “no aumento daqueles casos em que o marginal perigoso é imediatamente solto e faz outras vítimas no dia seguinte”), e sustentam esses argumentos nos números irrefutáveis da violência no Brasil.
Benedito defende com ardor os manifestos das críticas dos “juristas da orcrim”. São textos simples, diz ele, porque falam para “o povo” e pretendem “mudar a visão de mundo” no Brasil. “De um lado você tem essa hiperpreocupação nos direitos humanos com a situação dos bandidos, tendo o criminoso como vítima da sociedade. Bandido é algoz da sociedade. Do outro lado está a vítima, que é quem deveria ter seus direitos respeitados, sendo esquecida. Isso é ‘ideologia de esquerda’.”
Ideias como essa expõe a permanente tensão dentro da instituição Ministério Público, causada pelo embate entre o direito à independência de seus membros e a necessária unidade da entidade – que são, aliás, dois princípios previstos pelo artigo 127 da Constituição, que define as atribuições do MP no Brasil. Protagonismo em redes sociais e ativismo para modificar visões ideológicas são novidades nesta tensão, que colocam figuras como Benedito em rota de colisão com integrantes de destaque do MPF, e mesmo seus superiores – como a subprocuradora-geral Deborah Duprat, chefe da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, sua chefe até pouco tempo atrás, e notória defensora de minorias, uma “garantista”. Ao final da conversa, Benedito fez uma provocação: “Você achava que encontraria aqui uma besta-fera?” .
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