ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO
Juízes expulsos receberam R$ 137 milhões em aposentadorias
Valor pago a 58 magistrados punidos com aposentadoria compulsória desde 2009 pelo CNJ daria para sustentar 1.562 aposentados do INSS
Expulsos da magistratura pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e punidos, alguns desde 2009, com aposentadoria compulsória, 58 juízes receberam vencimentos totais de R$ 137,4 milhões, em valores corrigidos pela inflação. Eles foram investigados pelo CNJ por denúncias de irregularidades graves, como venda de sentenças para bicheiros e narcotraficantes, desvio de recursos públicos e estelionato. Com o que foi pago a esses magistrados seria possível pagar, no mesmo período, 1.562 aposentados pelo Instituto Nacional de Seguridade Social. O valor médio do benefício pago pelo INSS é R$ 1.415,00, segundo o Ministério da Economia, enquanto a média mensal paga aos juízes punidos foi de R$ 38 mil. Em regra, um excluído da magistratura recebeu tanto quanto 27 aposentados do INSS.
O levantamento da piauí, inédito, foi feito a partir da folha mensal de pagamentos dos magistrados que consta nos tribunais. Nos meses em que os vencimentos não estavam discriminados nominalmente – em geral antes da vigência da Lei de Acesso à Informação, em 2012 –, o cálculo foi feito a partir da base salarial da categoria. Os valores foram atualizados por um escritório de contabilidade contratado para este fim. Os 58 juízes afastados foram aposentados em períodos diferentes, mas, na média, recebem o benefício há cinco anos e dois meses. A partir do valor total pago, do número de juízes punidos e desse tempo de aposentadoria chegou-se ao valor médio mensal de R$ 38 mil.
O CNJ instaura processo administrativo disciplinar contra juízes a partir de denúncias das corregedorias dos tribunais ou de qualquer cidadão. O trâmite do processo é semelhante ao de uma ação judicial: são ouvidos representantes do Ministério Público, o juiz investigado e testemunhas de defesa e de acusação. O julgamento é feito pelo plenário do CNJ, composto por quinze membros. A punição varia de advertência, censura ou remoção do magistrado da vara em que atuava, e a punição mais grave é a aposentadoria compulsória. O processo administrativo no CNJ independe de eventual ação judicial, cível ou penal, contra os magistrados investigados. Em geral, as sindicâncias tramitam sigilosamente e não se tornam públicas mesmo depois de encerradas.
O relatório do deputado federal Samuel Moreira (PSDB-SP), aprovado nesta quinta-feira na comissão especial da reforma da Previdência, prevê o fim da aposentadoria compulsória como punição disciplinar. “Foi suprimida do texto constitucional a possibilidade da aplicação da esdrúxula pena disciplinar de aposentadoria compulsória”, afirma o texto do relator. Porém, a mudança ainda será votada em dois turnos no plenário da Câmara e do Senado. Mesmo que seja aprovada, a mudança não acabará com o benefício pago a ex-juízes já aposentados pelo CNJ, que continuarão recebendo integralmente. Se esses magistrados viverem por mais cinco anos e dois meses, que é a média do tempo de recebimento dos proventos já pagos, ainda irão receber mais R$ 137,4 milhões dos cofres públicos nesse período. “Esse é um tipo de privilégio que a sociedade brasileira não tolera mais, por ser um prêmio a quem comprovadamente cometeu um ato reprovável”, diz Manoel Galdino, diretor executivo da ONG Transparência Brasil.
Dos 58 magistrados punidos com aposentadoria compulsória a partir de 2009, 35 foram juízes de primeira instância, 22, desembargadores e um, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Tribunal de Justiça de Mato Grosso tem o maior número de magistrados expulsos, 11 no total, seguido pelo Tribunal de Justiça do Maranhão (6) e pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (4).
Vem dessa última corte o maior valor total pago até agora a um juiz aposentado compulsoriamente pelo CNJ: R$ 5,27 milhões ao ex-desembargador Jovaldo dos Santos Aguiar, aposentado em 2010. Corregedor do tribunal, Aguiar foi acusado de paralisar 31 sindicâncias contra juízes amazonenses; como desembargador, a investigação do CNJ mostrou que ele exigiu propina para beneficiar empresa em ação judicial – apesar do pagamento, a decisão foi desfavorável à empresa, o que motivou o advogado da mesma a denunciar o magistrado ao CNJ. “O comportamento do acusado nos processos envolvendo os interesses [das empresas] […] denota, claramente, que havia corrupção”, afirmou o conselheiro Walter Nunes, relator do caso no CNJ. Aguiar, que também é réu em ação por improbidade administrativa no TJ do Amazonas, não retornou recado deixado pela reportagem com uma neta dele. Seu advogado tornou-se desembargador do TJ amazonense, e por isso não pode se pronunciar sobre o caso.
Na segunda e terceira posições do ranking aparecem o ex-ministro do STJ Paulo Medina e o ex-desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio, José Eduardo Carreira Alvim. Ambos foram flagrados pela Polícia Federal na Operação Hurricane, em 2006 e 2007, negociando liminares para que fossem liberadas 900 máquinas caça-níqueis apreendidas pela PF em Niterói (RJ). De acordo com a investigação, Carreira Alvim teria recebido R$ 1 milhão, em valores da época, de casas de bingo donas dos equipamentos, conforme conversa captada pela PF entre um dos advogados das casas e sua mulher. Na época, Alvim encontrou-se duas vezes com o proprietário das máquinas, em um restaurante do Leblon e em Brasília.
Posteriormente, a decisão do desembargador favorável às empresas de bingo foi reformada pelo TRF, o que motivou recurso ao STJ. As casas de bingo teriam pago propina de R$ 600 mil ao então ministro Paulo Medina, por intermédio de um irmão dele, advogado, para obterem nova decisão favorável. Medina e Alvim foram aposentados compulsoriamente pelo CNJ em agosto de 2010. Desde então, Medina recebeu R$ 4,89 milhões e Alvim, R$ 4,83 milhões em aposentadorias. Alguns pagamentos aos dois, em valores corrigidos, chamam a atenção: o ex-ministro recebeu R$ 153 mil de uma vez em setembro de 2012; Alvim, R$ 210 mil em fevereiro de 2016. A ação penal contra o ex-desembargador tramitou na Justiça por onze anos – em novembro do ano passado, a juíza substituta da 6ª Vara Federal Criminal do Rio, Kátia Maria Maia de Oliveira, condenou Alvim a sete anos e nove meses de prisão por corrupção passiva. Mas, com a demora no julgamento, a pena prescreveu. Medina teve a ação penal contra si suspensa devido a uma doença degenerativa, segundo seu advogado, Antônio Carlos de Almeida Castro, o “Kakay”. “A defesa sempre acreditou na inocência do ex-ministro. Devido à doença, no entanto, Paulo Medina não terá a oportunidade de resgatar sua honra e respeitabilidade pública”, afirmou à piauí. Alvim disse à reportagem que ingressou com ação judicial para anular a aposentadoria pelo CNJ. “Eu fui vítima de um embuste, como tantos patrocinados pela Justiça.”
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso tem o maior número de juízes exonerados pelo CNJ: onze. Juntos, já receberam R$ 35 milhões. Dez deles foram punidos em conjunto, em fevereiro de 2010, porque o CNJ considerou que eles participaram de uma “operação de socorro” destinada a utilizar verbas do tribunal (R$ 1,5 milhão, em valores da época) para cobrir um rombo nos cofres da entidade maçônica Grande Oriente de Mato Grosso, dirigida pelo então presidente do tribunal. Os juízes foram absolvidos nas ações penais e por improbidade administrativa decorrentes do caso. Agora, aguardam o julgamento de recurso no Supremo Tribunal Federal solicitando o reingresso na magistratura. Entre os dez magistrados está José Tadeu Cury. Até morrer, em julho de 2016, vítima de infecção generalizada, o ex-juiz embolsou R$ 2,7 milhões de aposentadoria. Após essa data, a mulher dele, a advogada Célia Maria Aburad Cury, herdou a pensão – já recebeu cerca de R$ 649,8 mil, corrigidos. Célia Cury responde a ação penal por corrupção ativa, exploração de prestígio e formação de quadrilha. Segundo o Ministério Público Federal, ela chefiava um esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça de Mato Grosso. O processo ainda não foi julgado. Procurada, a defesa de Célia Cury informou que confia na absolvição, porque a denúncia oferecida pelo Ministério Público foi “baseada em ilações e conjecturas extraídas de interceptação telefônica manifestamente ilegal”.
Em termos financeiros, nenhuma fraude se compara ao que ocorreu no Tribunal de Justiça do Pará, em 2010. Naquele ano, um advogado protocolou uma ação de usucapião inusitada na 5ª Vara Cível de Belém. O pedido não era para garantir a posse de um imóvel, como é comum nesses casos, mas de R$ 2,3 bilhões depositados havia três anos, não se sabe por quem, em conta do Banco do Brasil cujo titular seria um empresário. Para isso, o advogado pedia que a juíza Vera Araújo de Souza, titular da vara, bloqueasse o valor na conta – o objetivo seria oferecer a certidão judicial do processo como garantia em empréstimos ou aluguel de imóveis. Sem perceber que o extrato bancário havia sido falsificado, Souza deferiu a liminar, sob pena de multa diária de R$ 2 mil para o banco. Os advogados do Banco do Brasil recorreram ao TJ, mas a desembargadora Marneide Trindade Pereira Merabet manteve a liminar. A medida só foi suspensa depois que o banco recorreu ao CNJ. Uma sindicância do conselho encontrou o nome da desembargadora na agenda do advogado que pediu o bloqueio do extrato. Além disso, a Receita Federal constatou indícios de movimentações financeiras suspeitas na conta de Merabet. A juíza e a desembargadora foram punidas pelo CNJ com aposentadoria compulsória. O inquérito contra as duas magistradas no STJ acabou arquivado por prescrição.
De acordo com o advogado de Souza, Emiliano Alves Aguiar, a juíza teve uma decisão juridicamente correta no caso. “Ela deu a decisão de apenas não movimentar o dinheiro, caso existisse. Só dias depois que apareceu a informação de que o extrato [utilizado para pedir o bloqueio da conta] era fraudulento”, afirma Aguiar. O advogado também diz que o CNJ se equivocou ao decidir pela aposentadoria compulsória. “Tenho confiança de que a decisão [do CNJ] não teve a melhor leitura do caso. Vamos pedir a anulação da decisão na Justiça Federal”, complementa Aguiar.
Em janeiro deste ano, a ex-desembargadora Merabet foi condenada a três anos e meio de prisão por corrupção passiva em outro episódio. No fim de 2011, ela orientou a advogada de um réu a procurar o filho dela, também advogado. Na conversa, o filho da desembargadora disse, segundo a acusação, que “a gente resolve isso com isso aqui”, e rabiscou um valor em um papel – a cifra não é revelada na sentença. Dias depois, o filho abordou novamente a advogada e disse: “A gente resolve isso por trezentinhos.” Por orientação do Ministério Público, as conversas foram gravadas pela advogada – os diálogos constam no processo judicial. Merabet, que recorreu da condenação ao TJ paraense, passou a receber aposentadoria em dezembro de 2017. Desde então, já ganhou R$ 453 mil, corrigidos. O advogado de Merabet, Diogo Conduru, negou ilegalidades na conduta da ex-desembargadora. Segundo ele, Merabet aguarda julgamento de recurso no STF solicitando o retorno à magistratura.
No início do século, o colombiano Gustavo Durán Bautista, um próspero narcotraficante travestido de empresário, comprou a fazenda Mariad, em Juazeiro (BA), e montou na propriedade uma megaestrutura para produzir uva, manga e melão. Eram 200 hectares de plantio irrigado, mais de 2 mil empregados e uma produção anual de 1,2 mil toneladas de fruta, exportada para a Holanda. Nas caixas, entre duas camadas de papelão, finas embalagens recheadas com cocaína adquirida das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a guerrilha colombiana. A Polícia Federal calcula que Bautista tenha enviado à Europa pelo menos cinco toneladas da droga.
A Polícia Federal descobriu o esquema por acaso. Em outubro de 2001, fiscais do Ministério do Trabalho escoltados por agentes da PF foram à fazenda investigar possíveis irregularidades trabalhistas. Em vez de trabalhadores sem registro em carteira ou com jornada excessiva, encontraram 225 caixas para embalar mangas com fundo falso, duas prensas e outros petrechos para embalar cocaína. Havia 108 gramas da droga, em três embalagens que se encaixavam perfeitamente nas depressões do papelão das caixas de frutas. Bautista, a mulher e três funcionários foram presos em flagrante. Meses depois, no entanto, todos seriam absolvidos pela juíza Olga Regina Santiago Guimarães, exceto um dos funcionários, condenado por porte de entorpecente, um crime leve. Os motivos da absolvição só ficariam claros em 2006, quando conversas telefônicas do colombiano interceptadas pela PF demonstraram o que foi considerada pelo CNJ uma relação suspeita entre ele e a juíza. Em uma ligação, Guimarães disse ter estado na delegacia da Polícia Federal para verificar se os nomes dos absolvidos haviam sido retirados das fichas criminais: “Eu estive lá e tudo, outros antecedentes, tudo ok, entendeu?”, diz a magistrada. “Tá bom, doutora, amanhã eu vou colocar aquele negócio que o Baldoíno me falou” – para a PF, Bautista se referia a um depósito na conta bancária do então marido da juíza. Guimarães e o colombiano chegaram a frequentar a casa um do outro. Bautista seria preso em flagrante no Uruguai, em 2007, com 495 quilos de cocaína.
A Corregedoria do TJ baiano instaurou processo disciplinar contra Guimarães, mas a investigação pouco avançou até 2013, quando o caso foi transferido para o CNJ. Três anos depois, ela foi aposentada compulsoriamente pelo conselho. Desde então, a magistrada já ganhou R$ 863 mil de aposentadoria, em valores reajustados. Guimarães, que no início da década publicou o livro O Preço Amargo da Calúnia, responde a ação penal por corrupção passiva no TJ da Bahia, ainda não julgada. Em nota, o advogado Maurício Vasconcelos afirma que a ex-juíza é inocente e que ela “preferia estar a serviço da sociedade em vez de aposentada compulsoriamente como lhe impôs injustamente o CNJ”.
Entidades ligadas à magistratura reagiram à proposta do deputado Samuel Moreira de acabar com a aposentadoria compulsória de juízes.
Em nota, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) classificou a medida de “flagrantemente inconstitucional”. “Embora a matéria tenha real necessidade de discussão, […] é importante explicar que a aposentadoria compulsória, apesar da denominação, não é matéria afeita ao regime previdenciário, mas sim disciplinar, cuja iniciativa legislativa privativa compete ao STF.” O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Jayme de Oliveira, também criticou o parecer do parlamentar. “A matéria é de competência reservada do STF, o que não pode ser usurpado.” Perguntadas se eram contra ou a favor da aposentadoria compulsória, nem a Ajufe nem a AMB se pronunciaram. “O corporativismo do Judiciário é enorme. Não será um debate fácil”, prevê o diretor executivo da Transparência Brasil.
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
Repórter freelancer, trabalhou na Agência Lupa e é especializado em jornalismo de dados e fact-checking
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