Ivete e José Garcia Franco diante do fogão: “Se não for lenha não tem como fazer comida todo dia”, diz o aposentado - Fotos: Felippe Aníbal
A lenha ou a fome
Sem dinheiro para comprar gás, moradores da periferia de Curitiba gastam horas catando madeira e voltam à era do fogão a lenha para poder cozinhar alimentos
Na casa do pedreiro Orlandir Ribeiro, um casebre de madeira na periferia de Curitiba, todos os sete moradores estão avisados: quem vir qualquer pedaço de madeira na rua tem que recolher e levar para casa, para transformar em lenha. Nas andanças pelo bairro, o filho mais velho, de 13 anos, é quem mais tem contribuído com a tarefa. Os pedaços de madeira são cortados, estocados e usados para alimentar o fogão a lenha instalado à esquerda da porta de entrada do domicílio. Ribeiro levou o utensílio para casa há três meses, recebido como pagamento por um serviço. Quando, na semana retrasada, o barraco onde a irmã dele vivia foi desmontado, a família se apressou para recolher as ripas e tábuas. E são elas que, desde então, mantêm em funcionamento o fogãozinho branco de duas bocas, solução encontrada pela família para fugir do peso do gás de cozinha no orçamento doméstico. Antes da lenha, a família dormiu algumas noites sem jantar, não por faltar comida, mas por não ter como cozinhar. Em outras ocasiões, recorreu ao fogão do vizinho para, em uma espécie de mutirão, preparar o arroz e feijão que tinha no armário.
Desde janeiro do ano passado, a família de Ribeiro mora no Complexo 29 de Outubro, uma área de ocupação irregular no bairro Caximba. A mulher dele, Marili Fátima dos Santos, aprendeu com a mãe a controlar o fogo de lenha. Adulta, precisou relembrar como administrar o tempo e a quantidade de madeira necessários para manter o calor da chama. A despeito de qualquer ideia romântica ou bucólica, cozinhar à lenha é tarefa exaustiva, que exige tempo e paciência. Sentada em uma cadeira, alimenta o fogo aos poucos, tentando controlar a temperatura. O feijão fica mais de duas horas no fogão, mas sem engrossar muito. Sem trabalho nem perspectiva, a dona de casa sabe que está distante o dia em que voltará a usar o gás liquefeito de petróleo (GLP). E já vai ensinando o filho mais velho, de 13 anos, a lidar com a lenha.
Na casa de madeira de cinco cômodos, além do casal, moram seus três filhos, uma irmã e uma sobrinha de Marili. O imóvel, coberto com telhas de cimento-amianto, foi comprado a prestação – sem documentos de escritura. Como eles têm que pagar as parcelas mensais de 500 reais da casa, pouco sobra para todo o resto. Nenhum dos adultos tem emprego fixo. Todos vivem dos “bicos” que Ribeiro faz como pedreiro e da assistência da sociedade civil ou do município. Mas com o dinheiro cada vez mais curto na pandemia, não havia como comprar gás para cozinhar o alimento recebido em doações. “Bem ou mal, comida sempre teve. A gente recebe bastante ajuda. Almoço, a gente pega na associação [de moradores]. Para a janta, tem a cesta [básica] que a gente sempre ganha e uma ou outra coisa que a gente compra. Mas, para o gás, não estava dando. Quase 100 reais um botijão… Comprar de que jeito?”, disse Marili. “Não dá pra comer arroz e feijão cru. É duro você ver a comida ali e não ter como cozinhar para os filhos, ter que ir dormir sem a janta… A lenha tem salvado a gente.”
No Caximba, cozinhar a lenha é a forma que muitos moradores encontraram para não passar fome depois que o preço do gás de cozinha chegou às alturas. O bairro fica a 11 km da Refinaria Getúlio Vargas (Repar), da Petrobras, no município vizinho de Araucária, responsável por 12% da produção nacional de derivados de petróleo e de onde sai todo dia GLP para os mercados do Sul e de Mato Grosso do Sul.
A vida real passa longe das promessas consecutivas do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que no primeiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro o preço do botijão cairia pela metade. O botijão de 13 kg, que custava 69 reais, subiu para 85 reais. Só em 2021, a alta foi de 20,34%, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV). Na segunda semana de junho, a Petrobras fez o 15º reajuste consecutivo no preço do GLP vendido às refinarias. No Paraná, o preço do botijão disparou de 71,57 reais, em agosto do ano passado, para 88,17 reais, agora, segundo a Agência Nacional de Petróleo (ANP). Em Curitiba, o produto chega a ser vendido a 92 reais. A capital que tem o preço médio mais elevado é Macapá, no Amapá: 103,78 reais.
A parte mais pobre do Caximba é a ocupação irregular do Complexo 29 de Outubro, uma área que começou a ser habitada desordenadamente em 2009, depois da desativação de um aterro sanitário que funcionou nos arredores por 21 anos. São sete vilas, todas num fundo de vale em que deságuam os rios Iguaçu e Barigui, ao longo do qual se estendem mais de 2 mil barracos de madeira ou residências de alvenaria. A maioria das ruas e vielas é de terra. Segundo um cadastramento da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab), a renda familiar média é de 1,8 mil reais mensais. Ao longo do complexo, veem-se pontos com esgoto a céu aberto, valetas com despejo de lixo e muitas casas de palafita, o que fez com que, em 2018, em visita à comunidade, o apresentador Luciano Huck comparasse a ocupação à favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, no Haiti. A comunidade vive certa tensão desde o último abril, quando uma líder comunitária foi assassinada.
Durante a pandemia, o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) do Caximba ampliou os atendimentos. Em maio, foram concedidos 893 auxílios de 70 reais em créditos para compras em armazéns mantidos pela prefeitura, com preços subsidiados. Antes da Covid-19, a média de concessões ficava entre 30 e 50 benefícios por mês. Até pelo Disk Solidariedade – um canal para efetivar e solicitar doações de roupas e móveis –, o Cras do Caximba já recebeu pedidos de moradores por fogões à lenha. Segundo a Cohab, de 1.178 famílias cadastradas na Vila 29 de Outubro – uma das comunidades do complexo –, 656 são consideradas de “alta vulnerabilidade social” e recebem o Bolsa Família. A prefeitura tem em execução um projeto-modelo para realocar 1,7 mil famílias do complexo no chamado Bairro Novo do Caximba. “São famílias em extrema vulnerabilidade social. O aumento do gás atinge essas pessoas de forma muito considerável, porque são famílias inteiras que vivem com pouquíssima renda”, observou a pedagoga e coordenadora do Cras do Caximba, Rosilda Aparecida Fernandes de Araújo. “Alguns nem têm o fogão a lenha, mas quando falta gás, improvisam um fogãozinho com tijolo”, acrescentou.
As pequenas chaminés dos fogões a lenha se multiplicam em todo o Caximba. Funcionário de uma loja de material de construção, José Graci dos Santos recolhe toda a madeira que encontra em canteiros de obras que visita a trabalho. Quando sobra tempo, aproveita o caminhão da empresa e leva o carregamento ao pai, o oleiro aposentado Pedro Francisco dos Santos, que mora a 11 km da loja, em um casebre de madeira. Com um machado ou um serrote, o velho Santos, de 69 anos, racha a madeira em ripas de 40 cm, que armazena em um caixote grande, na cozinha. Tem sido assim desde o fim de março do ano passado, quando foi obrigado a parar de fazer “bicos” como pedreiro ao sofrer um acidente de trabalho, deixando de ganhar um dinheirinho extra. Na última sexta-feira (18), no entanto, Santos estava havia mais de uma semana sem receber lenha. Coçava a cabeça, preocupado, ao olhar para a madeira que ainda restava. “Isso aqui só vai durar mais dois dias.” O fogão a gás continua instalado, mas com o botijão perto do fim. Não há dinheiro para comprar lenha, muito menos gás.
“Quando tive que parar com os bicos, cortei o gás. Se meu filho não vier [nos próximos dias], é torcer para o restinho de gás que ainda tem aí aguentar até ter mais lenha. Estamos desse jeito”, lamenta Santos. Sua única fonte de renda, a aposentadoria de um salário mínimo, está comprometida por empréstimos consignados. Os 680 reais que ele recebe por mês têm de manter a mulher, a neta, o marido dela e uma bisneta ainda crianças, que também moram sob seu teto. Dos adultos, ninguém tem renda fixa. Para alimentar a família no fogão a lenha, a mulher de Santos, Vera Lúcia, de 63 anos, se viu obrigada a mudar a rotina. Com a bisneta de um ano no colo, começa a preparar o almoço às 10 horas, com uma certa sensação de estar presa ao passado. Nunca consegue servir a mesa antes do meio-dia. A família mora em uma casa pertencente a uma olaria onde Santos trabalhou a vida inteira e que decretou falência no ano passado. No mesmo terreno amplo da empresa, há outras três residências, cujos moradores também abandonaram o GLP.
“Aqui é só lenha. Parece os tempos em que eu era moça. Quando eu cheguei aqui, quarenta anos atrás, era na lenha. Agora, de novo. Naquela outra casa, tem sete pessoas. Também tiveram que parar com o gás”, disse Vera Lúcia, apontando para uma residência vizinha. “Virou normal. Tem que ter paciência, mas a gente vai vivendo como Deus manda”, resigna-se.
Moradores do Caximba há 48 anos, o aposentado José Garcia Franco, de 70 anos, e a mulher dele, Ivete Franco, de 69, têm recorrido ao fogão de lenha desde o ano passado. O casal se mantém com a aposentadoria de Franco, também mordida pelos empréstimos consignados: de um salário mínimo, ele põe a mão em 680 por mês. Ou seja, com o preço médio do gás de cozinha, o aposentado comprometeria 13% da renda familiar mensal se precisasse comprar um botijão. “Eu nunca imaginei que no fim da vida a gente fosse voltar a cozinhar a lenha por necessidade. O gás pesava muito para nós, porque tá louco de caro. Nunca pesou tanto. Gás, agora, é para uma coisinha ou outra, num caso de emergência”, disse José Franco. “[Cozinhar] à lenha é mais demorado. Mas a gente vai fazer o quê? Se acostuma. Se não for a lenha, não tem como fazer comida todo dia”, observou Ivete.
Segundo a FGV, o impacto que o gás exerce no orçamento das famílias pobres é mais que o dobro do sentido pelas pessoas que estão no topo da pirâmide de renda. Pelos dados da fundação, a compra do botijão compromete 2,18% do orçamento das famílias que ganham até 2,5 salários mínimos e 1,03% nas famílias que têm rendimento de até 33 salários.
Desde o ano passado, o Sindicato dos Petroleiros do Paraná e Santa Catarina (Sindipetro-PR/SC) tem feito edições pontuais da campanha “Gás a preço justo”, por meio das quais já doou 1,6 mil botijões a famílias carentes de comunidades de Curitiba e região metropolitana e entregou outros 450 botijões a preços subsidiados (a 40 reais). A categoria culpa pela alta do GLP a política de preços dos derivados de petróleo, atrelada ao dólar. “A gente tem visto várias pessoas que migram para lenha, para o álcool, que queimam materiais recicláveis em tijolinhos… A questão para eles é que eles não conseguem juntar o dinheiro para comprar o botijão. São pessoas que juntam 10 a 15 reais por dia, que ganham para comer”, disse o presidente do sindicato, Alexandro Guilherme Jorge.
O economista André Braz, do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, explica que a escalada do preço do gás de cozinha está diretamente relacionada à variação cambial e, assim como outros derivados, à cotação do barril de petróleo no mercado internacional. Com as perspectivas de reaquecimento da economia global e busca internacional por investimentos, o especialista estima que haja aumento da demanda por energia, provocando novos reajustes. Além do gás de cozinha, o especialista alerta que outras fontes de energia – como a elétrica – vão pesar no bolso nos próximos meses, principalmente nas camadas mais pobres da população.
“O gás é só parte da história. A gente ainda não sabe a dimensão da crise hídrica, mas vai esse setor de energia como um todo, seja o botijão, seja a luz, vai ganhar um peso maior nas famílias em 2021 e 2022, trazendo grande desconforto às famílias de baixa renda. São gastos que não escolhem classe social, mas que têm um impacto muito maior para as famílias humildes”, observou Braz. “A saída seria pensar em matrizes energéticas com fontes mais baratas, como a eólica e a solar. Tem que pensar fora da caixa, mas tem que ser uma política de Estado, não de governo A ou B. Se a energia elétrica fosse mais baixa, famílias poderiam usar fornos elétricos e não a gás ou lenha”, exemplificou.
Na ocupação do 29 de outubro, Marili Santos não tem perspectivas de recorrer a outras fontes de energia, como o forno elétrico, embora ela não pague pela eletricidade – que é puxada a partir de um “gato”. A despeito das declarações recentes do ministro da Economia, Paulo Guedes, que sugeriu usar sobras de restaurante para alimentar os famintos, a dona de casa estima que não vá lhe faltar comida, mas que terá que continuar recorrendo à lenha. O fogão a gás mudou de lugar, para o cômodo ao lado, e está praticamente aposentado: só foi usado uma vez, em um dia em que a madeira estava úmida. Agora, com o frio que tem feito em Curitiba, a família tem se sentado à noite em torno do fogão a lenha que não só lhes garante o jantar como ajuda a aquecer a família. Enquanto lida com a lenha, Marili se recorda com saudade dos tempos em que era possível cozinhar com gás. Lembra que conseguia dar ao feijão o ponto que gosta. “O meu feijão fica muito bom, mas na lenha é difícil engrossar o caldo. Para a gente, o gás é uma coisa que ficou pra trás. Quando acabar o restinho do botijão, acho que não vamos poder comprar outro. Para a gente, gás virou um luxo. Engrossar o caldo do feijão virou luxo”, lamentou.
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No Paraná, 822 mil famílias usam lenha ou carvão para cozinhar – 51 mil em Curitiba. Em todo o país, segundo o levantamento mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, são 14 milhões de famílias, um quinto da população brasileira.
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Depois da publicação da reportagem, vários leitores procuraram a piauí para doar gás e cestas básicas às famílias do Caximba. Muitas seguem usando lenha para cozinhar.
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