Léros Léros em Itaipu
Brasil se recusa a pagar prejuízo de US$ 54 milhões; presença de suplente do PSL em reuniões binacionais aumenta crise e atrapalha renegociação para 2023
A confusão causada pelo envolvimento de uma comercializadora paulista de energia, a Léros, ameaça a renegociação do Tratado de Itaipu, que os governos de Brasil e Paraguai deveriam firmar em 2023. Na avaliação de diplomatas brasileiros envolvidos nas conversas, o que seria uma questão “lateral” causou um escândalo político no país vizinho e quase provocou o impeachment do presidente paraguaio depois das revelações, pelo jornal ABC Color, das pressões exercidas pelo vice-presidente do Paraguai sobre Ande (a equivalente paraguaia da Eletrobras) para fechar rapidamente o acordo com o Brasil. A crise política contaminou o ambiente bilateral e agora põe em risco a saúde financeira da usina.
O impasse ficou claro nesta segunda-feira (9), quando o novo ministro de Relações Exteriores paraguaio, Antonio Rivas Palacios, visitou o par brasileiro, Ernesto Araújo, no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Depois um encontro durante a manhã, ambos ignoraram a questão de Itaipu em suas declarações à imprensa e não aceitaram o convite feito por repórteres para que respondessem a perguntas sobre o tema. Um diplomata brasileiro afirmou, reservadamente, que as negociações foram abordadas de maneira genérica e superficial na reunião, dentro de uma pauta mais abrangente envolvendo obras de infraestrutura e acordo no setor automotivo. Dado o trauma que o assunto causou no Paraguai nos últimos meses, ainda há dúvidas do lado brasileiro se e como será possível voltar ao tema.
Para além da crise política, a questão econômica impôs mais obstáculos a um acordo. O governo de Jair Bolsonaro (PSL) se recusa a pagar à usina binacional 54 milhões de dólares (220 milhões de reais, na cotação desta segunda) na fatura referente ao ano passado entregue por Itaipu à Eletrobras. O valor corresponde, segundo o governo brasileiro, ao montante de energia contratada à usina de Itaipu pela Eletrobras, mas usada inadvertidamente pela Ande, a estatal de energia do Paraguai, com uma tarifa mais barata. A prática foi constatada em três meses do ano passado e teria voltado a ocorrer em 2019, afirmaram diplomatas.
A insatisfação brasileira é causada pela atitude paraguaia de, ano após ano, contratar de Itaipu menos energia do que precisa e compensar a diferença com a chamada energia excedente, mais barata – o que vem sendo visto pelos brasileiros como uma manobra do país para pagar menos pela energia que o Brasil. Com esse valor em aberto, a dívida para a construção da usina pode não ser quitada até 2023, como inicialmente previsto, o que impediria a renegociação do tratado.
Pelas regras vigentes, Brasil e Paraguai têm direito, cada um, a metade da potência gerada em Itaipu – é essa potência que Eletrobras e Ande transformam em energia efetivamente consumida. Segundo a empresa binacional, a usina produziu 96,5 milhões de megawatts-hora (MWh) em 2018. Desse total, 15,6% bastaram para abastecer 90% da demanda do Paraguai. Os outros 84% foram dirigidos ao Brasil, respondendo por 15% do consumo nacional (a diferença de 0,4% abasteceu a própria usina). Isso significa que o Brasil comprou 34% da energia do Paraguai por 327 milhões de dólares pelo direito de cessão.
Além dessa potência contratada, como é chamada, a hidrelétrica também gera a potência excedente – gerada por condições climáticas favoráveis, como chuvas não previstas e condições hidrológicas boas. Seu custo é menor porque, como não está na previsão orçamentária da usina, não recai sobre ele o pagamento da dívida da construção da usina. Enquanto a potência contratada sai por 43,80 dólares o megawatt-hora, a excedente sai por 6 dólares.
Por um acordo firmado em 2007, o Paraguai tem prioridade na utilização dessa potência excedente. A linha final do documento determinava que o acordo fosse regulamentado, mas isso nunca aconteceu. E o Paraguai tornou hábito uma prática que o Brasil agora vê como abusiva: para pagar o mínimo possível pela energia de Itaipu, o país vizinho contrata, ano após ano, de 30 a 40% da potência que efetivamente usa, deixando os outros dois terços serem abastecidos pela energia excedente. Com a industrialização avançando, a demanda por energia no Paraguai cresceu na ordem de 40%, mas a potência contratada só foi reajustada em 8%, segundo negociadores brasileiros.
A situação se tornou intolerável para o governo brasileiro quando se constatou que, além de tudo, o Paraguai usou a energia contratada do Brasil e pagou por ela a tarifa da energia excedente, o que não foi previsto em acordo, causando o prejuízo de 54 milhões de dólares que a Eletrobras se recusa a pagar. A contestação brasileira motivou reuniões das chancelarias de ambos os países para renegociar o acordo de curto prazo para uso da energia de Itaipu. Com algumas concessões, o Brasil vinha conseguindo resultados favoráveis, até que explodiu o escândalo da Léros.
A comercializadora, com sede em São Paulo, estava em conversa com a Ande para a compra de energia paraguaia procedente de Itaipu, o que é vetado pelo tratado que rege o uso da usina: ele prevê a compra exclusivamente pela Eletrobras e pela Ande, metade, metade. As sobras, se houver, cada estatal pode revender a empresas de seus respectivos países. Para tornar as águas mais turvas, apresentava-se como representante da Léros o empresário Alexandre Giordano, suplente do senador paulista Major Olimpio, aliado de Bolsonaro e do mesmo partido do presidente, o PSL. O advogado José Rodríguez González disse à jornalista Mabel Rehnfeldt, do jornal paraguaio ABC Color, que, em uma reunião com dirigentes da Ande, Giordano se apresentou como representante do governo brasileiro. “Não somente a mim, mas a todos que estavam na reunião”, afirmou. Nas reuniões com paraguaios, Giordano era considerado um “representante da família do alto governo do Brasil”, segundo o ABC Color.
Essas tratativas vieram à tona quase ao mesmo tempo que o presidente da Ande, Pedro Ferreira, pediu demissão, desencadeando quedas em série de autoridades paraguaias, inclusive o ministro de Relações Exteriores anterior. O ato amplificou os protestos da oposição, que acusa o presidente Mario Abdo Benítez de estar abdicando da soberania energética paraguaia. A indignação popular culminou com a abertura de um processo de impeachment de Abdo, o que forçou a anulação das negociações com o Brasil para que a temperatura esfriasse.
Em meio a tudo isso, o envolvimento da Léros permaneceu sem explicação. A revista Carta Capital revelou há duas semanas que Giordano esteve no Palácio do Planalto em 27 de fevereiro de 2019, informação obtida e repassada pelo gabinete do deputado federal Ivan Valente (Psol-SP). Ao jornal O Estado de S. Paulo, o suplente de senador afirmou ter ido se encontrar com o então titular da Secretaria de Comunicação da Presidência, Floriano Amorim. “Fui lá para conhecer o chefe da Secom, sempre na minha carreira solo como empresário. Não tem nada, absolutamente nada, a ver com Itaipu”, disse Giordano ao Estadão. A visita ocorreu um dia depois de o presidente Bolsonaro ter estado com seu par paraguaio, Abdo, em Foz de Iguaçu (PR), na sede de Itaipu, para dar posse ao diretor do lado brasileiro da empresa binacional, general Joaquim Silva e Luna.
A piauí perguntou ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional) com quem Giordano se encontrou, de qual assunto tratou e a que horas foi embora. “Consta do banco de dados do sistema de controle de acesso do Palácio do Planalto a entrada do Sr. Alexandre Luiz Giordano, no dia 27 de fevereiro de 2019, às 8h59, tendo como destino a Secom/PR [Presidência da República]”, respondeu a assessoria.
As mesmas indagações foram dirigidas pela piauí à Secom. Esta, por sua vez, afirmou que “não houve agenda ou outro compromisso do cidadão citado com representantes da Secom”.
Procurado, Floriano Amorim disse desconhecer Giordano. “Nunca o recebi nem sei de quem se trata”, respondeu. “Creio que o referido senhor possa estar fazendo uma pequena confusão com outro Floriano. Ou seja, o ex-ministro da Secretaria-Geral Floriano Peixoto. Não posso afirmar que se trata desse engano.” Peixoto, contudo, estava em uma agenda no Rio de Janeiro naquele mesmo dia e horário.
A piauí telefonou, então, para Giordano. “Pode copiar a entrevista com a Folha que é a mesma coisa”, desconversou e então se corrigiu, “que eu dei para o Estadão“. Eu observei que Amorim negava o encontro e afirmou não o conhecer. “Eu não posso fazer nada, senhora, não posso fazer nada se ele nega, senhora”, reagiu. Insisti em saber sobre qual assunto tratou. “Estadão, tá bom? Eu estou em uma reunião, tem quinze pessoas escutando sua conversa no viva-voz”, encerrou. Telefonei novamente dois dias depois, sem sucesso.
Em agosto, procurado pela piauí, o empresário Kleber Ferreira, sócio-fundador e diretor-executivo da Léros, disse que a empresa de fato mandou um representante à reunião, graças a um chamamento público da Ande. Negou, porém, que ele ou Giordano tenham se apresentado em nome do governo brasileiro.
Na mudança de rumos que o governo Bolsonaro trouxe ao debate sobre Itaipu, em abril deste ano foi convocada uma reunião entre os corpos diplomáticos para renegociar os termos de uso da energia da usina. O pleito brasileiro inicial era que o Paraguai recalculasse, de uma só vez, o quanto de energia contratada (aquela mais cara) utilizaria – o que foi imediatamente rechaçado pelos paraguaios. A diplomacia brasileira propôs, então, que, até 2023, o Paraguai fosse aumentando gradualmente a compra de energia contratada. Documentos obtidos pelo ABC Color mostram que, ao longo das negociações, o Paraguai conseguiu anuência do Brasil para que os valores se elevassem ano após ano até 2023, mas de forma mais suave do que o inicialmente proposto pelo Itamaraty.
Segundo os mesmos documentos, o Brasil designou quatro diplomatas para o encontro de abril. Da parte paraguaia, foram destacados o vice-ministro de Relações Exteriores e seu chefe de gabinete, um engenheiro que assessorava o ministério e mais tarde viria a assumir por poucos dias a Ande, e a diretoria-geral da Unidade Recursos Energéticos.
O Brasil sugeriu uma segunda reunião, em maio, para finalizar a ata bilateral. Em informe oficial à chancelaria paraguaia, o Brasil propôs o mesmo formato, “podendo as delegações serem assessoradas pelas respectivas diretorias e entidades compradoras, que, no entanto, não participarão diretamente dos entendimentos”. À tarde, no mesmo dia, ocorreria encontro das diretorias de Itaipu, Ande e Eletrobras para aprovação dos termos e assinatura da ata, o que foi feito.
Tudo parecia encaminhado, até que Pedro Ferreira pediu demissão da Ande. Alegou que não havia participado dessas reuniões, ao contrário de seus pares brasileiros. Por esse motivo, ele reclamou que não pôde expressar sua discordância dos termos acordados. Ferreira disse que tudo ocorreu de forma sigilosa, sem debate público prévio. Em nota conjunta, os Ministérios de Relações Exteriores e Minas e Energia do Brasil escreveram que “todo o processo de negociação que resultou na assinatura da ata bilateral não foi secreto. Em todas as reuniões houve a participação dos representantes dos Ministérios das Relações Exteriores de ambos os países, da Eletrobras, da Ande e da Itaipu Binacional”.
As pastas afirmaram também que “o Tratado de Itaipu somente permite a venda da energia produzida pela usina para a Eletrobras e para a Ande. Portanto, não tem qualquer fundamento a especulação sobre a possibilidade de comercialização da energia da usina binacional por parte de alguma empresa que não seja a Eletrobras e a Ande”. Não se tratou de especulação, contudo. A estatal paraguaia havia, naquelas semanas, aberto uma espécie de edital para que as empresas consumidoras de grandes quantidades de energia, paraguaias ou não, manifestassem seu interesse na aquisição da energia. A Ande nunca havia feito isso antes. A Léros se colocou na lista.
A imprensa paraguaia publicou que os negociadores oficiais do Brasil e Paraguai chegaram a cogitar incluir na ata bilateral a possibilidade de uma estatal vender energia para uma empresa privada fora de seu país, o que diplomatas brasileiros negam veementemente. Em Itaipu, porém, antes do imbróglio, Ferreira mencionou, mais de uma vez, o interesse da Ande em vender energia diretamente no mercado brasileiro. No entendimento de técnicos do setor, a discussão sobre o fim desse duopólio será inescapável em 2023. Em 2009, um acordo entre os então presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e do Paraguai, Fernando Lugo, já previa a venda no mercado livre a partir de 2023.
Burlar o tratado hoje, porém, não seria vantajoso economicamente para a Ande, segundo um especialista. “Em uma avaliação inicial, a venda de energia para a Léros não parece fazer sentido economicamente. A proposta teria sido de 31 dólares, entregando a energia no centro de gravidade do mercado Sudeste. Tem custos com perdas e de transmissão. Não teria competitividade”, disse Paulo Pedrosa, presidente da Abrace (Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres). “A não ser que alguém tenha pensado na possibilidade absurda de vender energia excedente a preço de energia contratada com base em lastro, conforme o mercado brasileiro, o que seria muito mais do que uma ousadia”, emendou. Os instrumentos de fiscalização brasileiros possivelmente detectariam. “A energia de Itaipu é cara para o consumidor brasileiro. Hoje você já encontra no mercado contratos de energia solar e eólica que seriam mais baratos que a energia de Itaipu”, afirmou Pedrosa, que foi secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia no governo Temer e conselheiro de Itaipu. “Em um cenário limite, se não houvesse acordo com o Paraguai, se poderia fazer um leilão e substituir a energia de Itaipu por outra até mais barata”, concluiu.
Para negociadores brasileiros, o Paraguai obteve benefícios sucessivos em Itaipu e foi favorecido por concessões feitas pelo governo Lula. O governo Bolsonaro entende que há “vitimização” do Paraguai e resolveu mudar isso, mas joga de forma amadora, segundo um conhecedor da causa. O Paraguai, por sua vez, contratou especialistas internacionais para se preparar para a negociação.
As conversações sobre Itaipu voltaram duas casas. Os negociadores estão se reapresentando – do lado paraguaio, mudou boa parte da equipe – e não se sabe quando e como se chegará a um acordo. Técnicos brasileiros dizem reservadamente que a conta de luz nacional absorveu prejuízos na casa de 200 milhões a 250 milhões de reais anuais por meia década em decorrência das manobras paraguaias. Como o Brasil se nega a pagar por uma energia que foi usada pelo Paraguai, o caixa da usina está em aberto e, das duas uma: ou a dívida para a construção de Itaipu não terá sido quitada no prazo previsto, até 2023, ou a conta sobrará para o consumidor brasileiro – mais uma vez.
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