ILUSTRAÇÃO: REINALDO_2007
A perua com luzes [e não são as do cabelo]
Lillydebsy Palhares, 39 anos declarados, três pensões e mais de sete livros lidos de cabo a rabo, acredita que a classe jamais foi tão jeopardizada
Marcos Caetano | Edição 10, Julho 2007
Meu nome é Maria Deodorina Palhares da Silva, mas só os que me odeiam muito me chamam assim. Para os que me toleram, sou Lillydebsy Palhares, com ênfase no primeiro ípsilon. Gostar de mim mesmo, para valer, acho que ninguém gosta. Minha ocupação: perua. Nenhum constrangimento em admitir a classificação, e quem continuar lendo este relato entenderá os porquês.
Para começo de conversa, informo que ser perua dá muito trabalho, e que perua e madame não são a mesma coisa. Quase todas as madames são peruas, mas nem toda perua é madame. Madame é a perua endinheirada, mas o grosso das peruas pertence mesmo à classe média. Eu, por exemplo, estou longe de ser madame. Tenho de dar duro para receber em dia e administrar direitinho as três pensões dos meus ex-maridos, já que nenhum deles é milionário. Ou melhor, um até foi, mas o imbecil engravidou uma vendedora da Daslu antes de capotar com o Lincoln Navigator, e eu dancei na hora da partilha.
Sou uma perua engajada e com consciência de classe. Abomino a noção de que a perua é uma criatura alienada, preguiçosa e sem luzes – exceto pelas que faz no cabelo. Acredito que uma boa perua precisa ler. Eu mesma li bastante, principalmente na juventude. Começando com O Pequeno Príncipe, encarei mais de sete livros nesta vida, se não exagero um pouco. Li, por exemplo, João Cabral, escritor que tinha uma beleza de sobrenome: Melo Neto. Pena que seu nome mesmo fosse de pobre. Mas imagine se ele se chamasse Plínio Melo Neto, Afrânio Melo Neto, ou adotasse um apelido chique, como Bubsy Melo Neto. Aí sim, seria perfeito.
Foi baseada num livro do Melo Neto (acho que chama Os Grandes Sertões) que criei uma frase que hoje toda perua repete por aí, sem saber que é minha: “A perua é antes de tudo uma forte”. Por quê? Ora, porque faz plástica no nariz antes dos quinze, apela para as próteses de silicone antes dos vinte, aplica botox antes dos 25, e entra na lipo antes dos trinta. Tudo isso para aparentar 39 anos, idade espiritual perfeita, o preciso tempo-espaço de uma perua de truz. Não importa se ela tiver 18 ou 68 anos, a perua terá sempre 39.
Sou, como disse, uma perua com tanto orgulho que, quando o flanelinha grita “deixa solto, madame”, corrijo: “Madame não, perua”. Além de sincera, a correção economiza uns trocados. Isso porque os flanelinhas têm uma espécie de tabela de preços embutida na saudação. Deixem-me explicar. É assim: o flanelinha chamou de “chefia”, são 5 reais. Se chamar de “major”, são 10 reais. Chamando de “bacana”, não sai por menos de 15 dólares. Com mulher é a mesma coisa. “Minha tia” é o mais barato, e “madame”, o mais caro. A categoria perua ainda não adquiriu, digamos, consentimento social para ser abertamente utilizada. Espero que a publicação desta modesta contribuição possa colaborar para a compreensão da peruíce.
Por falar em expressões, sinto vergonha pelas peruas que entopem seu falar com palavras estrangeiras. É coisa brega, de perua anos oitenta. Gosto mesmo é de usar bem o português, de aprender palavras novas. Meu atual namorado, um cara que trabalha com corporate banking, me ensinou uma ótima, que eu usei outro dia numa discussão com a minha filha de 27 anos: “Você não deveria jeopardizar a nossa relação com críticas infundadas”. Ela ficou passada, menina, precisava ver. Adorei esse verbo. Vou até repeti-lo: jeopardizar. Isto sim é falar bem.
Deus nos livre das peruas iletradas. Pior que perua que fala errado, só mesmo a que compra bolsa pequena da Gucci ou usa um sobretudo de qualquer marca que não seja Burberry. (Em tempo: vejam vocês como o Bill Gates não entende nada de língua portuguesa. O programa do Word pintou de verdinho a palavra “sobretudo”, por achar errado ela não vir entre vírgulas. Ora, dá para confiar num programa que, sobretudo, não sabe distinguir um sobretudo do outro?)
Perdoem se me detenho mais nos temas culturais que em aspectos fúteis do consumismo. Cultura é bom, mas não enche barriga. Por exemplo: salgadinhos em vernissage não dispensam, na seqüência, um bom lounge (outra palavra cujo significado – “longe” – aprendi com o Rasheed, meu namorado). Ocorre que fui informada de que esta é uma revista cabeçona, tipo assim, de cultura mesmo. E é só por isso que estou me esforçando para mostrar o meu lado mais “conteúdo”. (Cá entre nós, esse nome é pobrinho, pobrinho. Por que não chamar a revista de Paris, Petersburgo, ou mesmo Praga? Ou Prada? Ai, Prada seria ma-ra-vi-lho-so!) Outrossim (mais uma do Rash), se a cultura nos aborrece, mudemos de assunto. Falemos de qualidade de vida.
Por incrível que pareça, as peruas agora deram para fazer esporte. Equipadas com tênis de 1 900 reais, que tocam MP3, e meias cor-de-rosa, fazendo ton sur ton com as faixinhas lilases de prender os cabelos de aplique, começamos nas aulas de aerolambada, passamos para os salões de musculação e agora resolvemos até correr. Preciso dizer que temos mostrado muita perseverança. Afinal de contas, não é nada fácil trotar com aquelas imensas bolas de silicone pulando para cima e para baixo, esbofeteando os rostos de suas próprias donas a cada pisada na esteira. Existem ainda outras dificuldades, como a maquiagem pesada, que derrete com o suor e arde um bocado nos olhos. Ou a trabalheira que dá – quando a atividade é ao ar livre ou se a academia permite – correr com um poodle enroscado nas pernas. Isso sem falar no calor gerado pelo inevitável casaquinho amarrado na cintura, aquele que usamos para esconder o bumbum, uma das únicas partes do corpo humano para a qual a cirurgia plástica ainda não apresentou respostas minimamente satisfatórias.
Apesar de tantos esforços em tão diferentes campos, as peruas estão longe de obter o respeito da sociedade. Infelizmente, para cada perua no estilo Marta Suplicy existe uma dúzia no modelo Paris Hilton. Não há termo de comparação entre as duas. Marta Suplicy é perua com conteúdo e firmeza de propósitos, que até trabalha – e que fez muito bem em roubar o sobrenome do ex. Eu fiz a mesma coisa com o Palhares. Silva, de novo, nem morta. Já Paris Hilton, que é menina e já aparenta ter 39 anos, é o exemplo do que a classe não precisa, apesar do lindo nome de cidade e do belíssimo sobrenome de hotel. A garota é uma viagem desde a pia batismal! Fico pensando que seu nome do meio talvez seja United ou Delta. Divagações à parte, o fato é que, se eu pudesse resumir tudo o que contei em uma única frase, diria que só no dia em que tivermos mais martas do que parises é que as peruas serão, enfim, respeitadas como merecem.
Antes de encerrar, gostaria de aproveitar o espaço que me foi franqueado (fico impressionada com a sofisticação da minha escrita) para convidar os leitores para o meu brunch de aniversário, que será realizado na praça de alimentação do Shopping Iguatemi. No Rio, amigas cariocas, o encontro será no Fashion Mall. O dinheiro anda curto, isso é fato – mas o importante é que os festejos serão em lugares chiquérrimos. Vale lembrar que, na ocasião, comemorarei meus 39 aninhos.
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