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A peste
Um célebre experimento científico de 35 anos atrás mostra sua face atual na América em guerra: a tortura está de volta
Dorrit Harazim | Edição 8, Maio 2007
Enfurnado numa prisão de laboratório, construída no subsolo de uma das universidades mais prestigiosas dos Estados Unidos, o decano da cadeira de Psicologia de Stanford, professor Philip Zimbardo, observa alunos colocarem sacos nas cabeças de prisioneiros, submetê-los a humilhações sexuais, acorrentá-los e lançá-los num abismo emocional. Em poucos dias, a curiosidade científica de Zimbardo se transformou em espanto. Depois em alarme. Por fim, em horror. O que fora minuciosamente concebido como uma experiência para aprofundar o conhecimento da dinâmica que rege a psicologia prisional teve de ser abortado às pressas. O experimento construído para durar duas semanas não pôde prosseguir além do sexto dia – as cobaias humanas tinham atropelado a teoria e instituído o reino do terror, do medo, da tortura real.
Eram os idos do verão de 1971. Dois jornais da cidade californiana de Palo Alto (até hoje um pedaço do sonho americano, com seus 60 mil moradores e 11 mil universitários) tinham publicado um anúncio, convocando voluntários para desempenhar o papel de guardas e presos numa experiência organizada pelo Departamento de Psicologia de Stanford. Como era a época das férias escolares, a oportunidade de embolsar um per diem de 15 dólares, mais três refeições diárias, cama e chuveiro atraiu quase 100 candidatos. Desses, 24 se enquadraram na criteriosa seleção: universitários, saudáveis, de classe média, sem qualquer problema emocional ou pendência judicial. Ficha limpa, em suma. Para evitar eventuais distorções, eram semelhantes até na estatura e na capacidade intelectual.
Os voluntários podiam escolher entre participar do teste na condição de agentes penitenciários ou prisioneiros. Como boa parte da juventude, à época, se opunha à guerra contra o Vietnam, todos optaram pelo papel de presos. A unanimidade obrigou Zimbardo a sortear quais seriam os doze jovens a assumirem o papel de guardas. Esses foram divididos em três turnos de oito horas de trabalho, ao passo que o grupo de presos ficaria encarcerado o tempo todo, até o final da experiência.
Além do uniforme, os guardas receberam óculos escuros espelhados, algemas, cassetete e uma orientação genérica: evitar fugas a qualquer custo e manter a lei e a ordem, sem recorrer à violência. “A prisão é de vocês”, eles ouviram. Os presos, por sua vez, foram conduzidos de olhos vendados até a pequena prisão de três celas, sem janelas, e iluminação indireta. O regulamento, de dezessete itens, era severo. Aos indisciplinados estava reservada uma tranca solitária – na verdade, um armário da faculdade, adaptado para a ocasião, sem qualquer luz, e no qual o preso só poderia ficar de pé, de cócoras ou agachado.
Os presos receberam um guarda-pó sem cinto, que despersonalizava suas características físicas individuais, e um pedaço de meia de seda feminina, para domesticar as rebeldes cabeleiras da época. Pelo regulamento, todo participante poderia abandonar a experiência quando quisesse.
A equipe de Zimbardo a tudo acompanhava, por meio de câmeras e microfones ocultos. As risadinhas iniciais dos presos, diante da pose dos guardas de mentirinha, sumiram rápido. O cenário deixou de ser ficcional. Em menos de 36 horas, o primeiro estudante-prisioneiro saudável teve de ser libertado, devido a um colapso emocional. No quinto dia, a investigação tinha adquirido grau tão intenso de autocombustão que uma das pesquisadoras irrompeu numa saleta, aos prantos, e pediu para se dissociar da insânia. Já tinha ocorrido uma rebelião de verdade, as humilhações aos presos haviam entrado na esfera do sadismo, e a disputa pelo poder e controle do cárcere, por parte dos guardas, mostrara todo o seu potencial. “No sexto dia, o experimento tinha escapado ao nosso controle e o interrompemos. Não havia mais como controlar os guardas”, contou Zimbardo.
A prisão construída em laboratório, e sobretudo a volumosa análise comportamental que dela resultou, tornou-se um marco da psicologia social. Ela passou a ser mundialmente conhecida por suas iniciais, SPE – Stanford Prison Experiment. Philip Zimbardo, o idealizador da pesquisa, é, desde então, referência maior para quem quer entender a metamorfose de cidadãos tido como bons e “normais” em carrascos sem amarras.
Passam-se 35 anos. O professor estava num quarto de hotel, em Washington, no intervalo de uma reunião do Conselho de Presidentes de Sociedades Científicas. Ligou a televisão e deparou com as imagens saídas dos porões iraquianos de Abu Ghraib. Ficou chocado com o “homem-espantalho”, a “pirâmide humana” de corpos nus, o rastejar do preso puxado por uma coleira, o escárnio da soldado que o atormenta. Mas não ficou surpreso – as semelhanças com o seu experimento eram inequívocas, gritantes. Convidado a servir de testemunha especializada no processo de um dos acusados – o sargento Chip Frederick, chefe do turno da noite em Abu Ghraib –, Philip Zimbardo mergulhou pela segunda vez nas profundezas do comportamento humano. Dedicou os anos seguintes a escrever um estudo comparativo das duas situações.
The Lucifer effect – Understanding how good people turn evil (em tradução literal, “O efeito Lúcifer – Compreendendo como pessoas boas se tornam más”) acaba de chegar às livrarias dos Estados Unidos. Nele, o autor demole cada pedaço de argumento que leva à teoria das maçãs podres, segundo a qual os soldados flagrados teriam agido devido a um desvio individual. Eles não eram, também, aberrações num cenário da guerra. “Os militares implicados com Abu Ghraib não desembarcaram no Iraque trazendo na bagagem tendências sádicas. Não eram torturadores natos nem assassinos experimentados. Transformaram-se em perpetradores do mal pelas condições que ali encontraram”, sustenta Zimbardo. Segundo a sua análise, os acusados são culpados do crime de tortura. Mas a responsabilidade ulterior se estende ao comando militar e ao governo Bush, aos arquitetos do sistema que permitiu a corrupção da condução da guerra.
De fato, como se sabe hoje, a comporta foi aberta enquanto ainda ardiam os destroços das Torres Gêmeas, em Wall Street. De acordo com relato feito por Richard Clarke, ex-conselheiro em contraterrorismo do Conselho de Segurança Nacional de Bush, o tom foi dado na própria noite do 11 de setembro de 2001. Imediatamente após sua fala televisionada à nação em choque, o presidente se trancou com Clarke e o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, no bunker situado abaixo da ala leste da Casa Branca. Clarke conta em seu livro de memórias que Bush se mostrou confiante, determinado e duro. O presidente avisou: “Quero que fique claro que estamos em guerra. Vocês podem derrubar qualquer obstáculo que encontrarem pela frente. Não me importo com o que os advogados internacionais venham a dizer, nós vamos acabar com esses caras”.
A partir daí, criou-se uma linguagem oficial cada vez mais oblíqua, orwelliana, para elidir a palavra tortura e embaralhar parâmetros e condutas na chamada guerra contra o terror. Cofer Black, à época chefe de contraterrorismo da CIA, estreou com “flexibilidade operacional”. Novos manuais passaram a ensinar “Técnicas de Interrogatório Reforçadas”. A própria CIA passou a freqüentar memorandos sob outra sigla, OGA (“other government agency”, ou outra agência do governo). E Rumsfeld não admitia o uso do termo “insurgente” para designar os iraquianos em armas contra a ocupação americana – tentou emplacar o barroco “Enemies of the Legally Elected Iraqi Government”, ou EOLEIGs (Inimigos do Governo Iraquiano Legalmente Eleito). Em épocas de pouca matança, chegou a designá-los como um punhado de “Dead-Enders” (DEs), algo como uns “sem-chance”, posteriormente rebatizados de “Combatentes Terroristas Estrangeiros”.
Tudo isso, e mais, derivava do parágrafo 3 do célebre memorando de 7 de fevereiro de 2002, elaborado pela assessoria jurídica da Casa Branca, que passou a reger a condução da guerra: “Como norma política, as Forças Armadas dos Estados Unidos continuarão a tratar os detentos humanamente e, na medida em que for apropriado e consistente com a necessidade militar, de acordo com os princípios da Convenção de Genebra” (grifo da piauí). Tradução feita pelo vice-presidente Dick Cheney, numa entrevista à televisão: “Muito precisará ser feito em surdina, sem debates. Será vital para nós recorrer a todos os meios ao nosso alcance”.
Com a anuência do Congresso dos Estados Unidos, o assentimento da maioria da opinião pública e a cobertura (ao menos inicialmente) favorável da imprensa, estava lançada a guerra nas sombras. Quando o país foi despertado pelas grotescas imagens de Abu Ghraib, o dano já era irreparável. Hoje, passados três anos, mais de 450 investigações militares apuram denúncias de torturas, abusos e homicídios por parte de forças americanas no Iraque e Afeganistão. Segundo um levantamento da Associated Press, foram feitos mais de 83 mil prisioneiros desde o início da guerra contra o terror. Somente em Abu Ghraib, a população carcerária chegou ao patamar de 11 mil almas, equivalente a um Carandiru dos tempos da chacina de 1992.
O relato publicado à página 23 traz o retrato do dia-a-dia naquele pântano. Um dos protagonistas da história, Ali Al-Shalal, pretendeu ser o homem-ícone das fotos, por ter sido encapuzado, amarrado a fios elétricos e colocado em posição de Cristo, em cima de um caixote. A revista Vanity Fair, os jornais The New York Times e The Guardian, a emissora de TV pública PBS, o semanário Der Spiegel, todos o entrevistaram como sendo o homem-espantalho. Até que a revista eletrônica Salon desfez o equívoco. Ali Al-Shalal não é a figura que entrará para a História. Ele é apenas um torturado a mais, numa guerra em tudo regressiva: deflagrada com base em mentiras, em desrespeito à legislação internacional, de objetivo colonial. A foto dele pode estar entre as mais de 1 325 imagens e 93 videoteipes de Abu Ghraib ainda não liberados pelas autoridades americanas.
Banalizada, a tortura passou a ocupar cada vez mais espaço no imaginário da indústria cultural. Somente agora, em sua sexta temporada, os produtores do seriado 24 Horas prometem conter os ímpetos mais aberrantes do implacável e invencível agente-torturador Jack Bauer, o Capitão Marvel da América de George Bush, interpretado pelo ator Kiefer Sutherland. Mais por motivo de eficácia criativa: “Começou a ficar repetitivo”, explicou o produtor-executivo Howard Gordon, numa recente visita ao Brasil. De fato, a trivialidade da questão na vida americana pós-11 de Setembro pode ser ilustrada pela escolha da fantasia de um nova-iorquino para uma festa do Dia das Bruxas: vestiu-se de Charles Graner, o saliente e truculento líder do turno da noite do Pavilhão 1A/B, de Abu Ghraib.
“Poucas coisas injetam tanta adrenalina em nossas vísceras quanto o exercício do poder ilimitado sobre outro ser humano”, sustenta Darius Rejali, professor de Ciência Política no Reed College, de Portland, Oregon, e autor do esperado Torture and Democracy (no prelo, pela Princeton University Press). Pelo depoimento de um soldado francês envolvido com tortura nos tempos da Guerra da Argélia, o primeiro sinal dessa erupção física é sentido na boca – a saliva se torna pastosa e um gosto estranho começa a se esparramar pela língua do torturador. Rejali estuda a questão e seus desdobramentos burocráticos há vinte anos. Ele tem poucas dúvidas quanto à ineficácia da tortura como ferramenta de interrogatório para obter informações confiáveis. Acredita que ela funciona para intimidar prisioneiros e para produzir confissões – ora falsas, ora verdadeiras. Mas, se a questão é saber se a tortura pode ser exercida de forma profissional e científica, a resposta é não. Primeiro, porque qualquer pessoa que tortura é forçosamente corrompida pela experiência. Segundo, porque pesquisas médicas já demonstraram que a aplicação de dor física para estimular a obediência produz resultados tão erráticos quanto a diversidade humana. Sabidamente, cada pessoa sente dor de forma e intensidade variadas.
Especialistas em tortura da época colonial concordam que alguns insurgentes são capazes de suportar dores inimagináveis. O que coloca em marcha um ciclo vicioso: à medida que a vítima for menos vulnerável à dor, mais o interrogador se sentirá compelido a atropelar o manual e ultrapassar esse nível de tolerância. Em março passado, quando o terrorista Khalid Mohammed confessou um amplo leque de crimes e envolvimento nos atentados mais notórios da Al Qaeda, logo surgiram dúvidas quanto à confiabilidade do seu depoimento. Teria confessado por vaidade, despiste, ou para fazer parar a tortura? Os agentes encarregados de obter sua confissão haviam se submetido a simulações de afogamento que duraram até 115 segundos, em média. Mohammed obteve a admiração da equipe por agüentar dois minutos e meio debaixo d’água. Ademais, corpos exauridos e massacrados são mais propensos a fornecer dados falhos, mesmo quando se dispõem a confessar. Ou, inversamente, interrogadores que não confiam nas informações ouvidas aumentam o sofrimento infligido a suas vítimas, em busca de confirmações impossíveis.
Quanto à clássica justificativa da tortura através do cenário da “bomba-relógio ativada” – arrancar a informação para impedir a explosão de uma bomba num avião lotado de crianças – o cientista político Rejali demonstra ser falaciosa. “Ao contrário dos seriados de televisão, a tortura, para ser eficaz, demora dias, semanas, e não minutos. Pressionado pelo tempo, o interrogador tenderá a intensificar a tortura. E, como se sabe, homens mortos, ou inconscientes, não falam.”
A História registra uma exceção à regra. Na Batalha de Argel, torturadores profissionais obtiveram informações confiáveis e consistentes num espaço exíguo de tempo. Foi uma fulminante vitória militar contra o terrorismo, por parte de um Estado democrático, a França, com recurso à tortura. A eficácia francesa na Argélia pode ser explicada pelo mapeamento prévio feito pelos seus serviços de inteligência: cada morador da casbah argelina, onde se concentravam os terroristas, havia sido identificado pelos órgãos de segurança do general Jacques Massu. Mesmo assim, a tortura teve um custo alto, e eficácia momentânea. Custo alto porque a ilegalidade da tortura contaminou a estrutura do exército francês, a ponto de militares que serviram na Argélia terem aderido ao terrorismo para derrubar o governo de De Gaulle. E eficácia momentânea porque, cinco anos depois de vencer a Batalha de Argel, a França perdia a Guerra da Argélia, que conquistou sua independência em 1962.
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