Vencedor de provas como a maratona de Nova York, Igor dá suas medalhas para o filho brincar FOTO: TUCA VIEIRA_2006
A vida fora d’água é bem difícil
Os objetivos e as histórias de Igor de Souza, que cruzou e recruzou em seguida o Canal da Mancha, e gastou mais tempo na ida do que na volta
Sylvia Colombo | Edição 4, Janeiro 2007
Igor de Souza é um paulista de 42 anos, gordinho, baixo e com cara de sério, muito sério. Quem convive com ele sabe quão raros são seus sorrisos. Quem não o conhece costuma demorar para perceber quando ele está sendo irônico. Hoje à frente do maior torneio de águas abertas do Brasil, o campeonato da Federação Aquática Paulista, Souza foi estrela do circuito mundial da Federação Internacional de Natação, a Fina: ele já nadou em mais de quarenta países. Como a maioria das provas do circuito mundial tem mais de 25 quilômetros, e são nadadas em fins de semana seguidos, as travessias da federação congregam a crème de la crème das maratonas aquáticas. Pois Souza já venceu duas vezes o torneio da Fina. Quando pergunto do Canal da Mancha, é como se ele desse um tapa na testa: “Ah, também teve o Canal da Mancha!” Ou seja, não foi nem de longe a prova mais difícil ou a mais longa que já fez. Apesar de um filme sobre a Mancha ter povoado a sua imaginação infantil, por muito tempo ele não se interessou pelo Canal – era uma prova fora do circuito, não contava pontos, não era competitiva. Só atravessou a Mancha por um motivo sentimental.
Souza estreou como maratonista aquático nos anos 80, quando eu devia estar na varanda do prédio dos meus avós, em São Vicente, no litoral paulista. A hora da qual eu mais gostava era o entardecer. Sair do banho quente, com a roupa limpinha, e ir para a varanda esperar o jantar. Ficávamos num nono andar. A noite mudava tudo. Não só porque trazia o vento ou fazia a temperatura baixar. O mundo ficava silencioso, as pessoas me deixavam em paz. Eu podia encostar o queixo no parapeito e olhar a praia lá embaixo. Forçava a vista para ver se distinguia a linha que dividia as duas imensas escuridões à minha frente, a do céu e a do oceano. Imaginava que tudo à minha volta poderia sumir e eu, de repente, seria transportada para um ponto do outro lado da linha do horizonte. Muito tempo se passou, incontáveis ladrilhos de fundo de piscina desfilaram ante meus olhos, até descobrir que havia gente que, de verdade, enfrentava aquilo que eu tanto desejava (e temia) quando menina: nadar em algum lugar daquela imensidão de água. O que eu fantasiava, Igor de Souza fazia.
Essas lembranças voltam ao espírito numa abafada tarde de dezembro, na sala em que Igor de Souza trabalha, ao lado da piscina do conjunto Constâncio Vaz Guimarães, no Ibirapuera. Ele é mais do que um atleta de renome, um modelo ou ídolo. É alguém que sabe que nadar a sério tem a ver com a imaginação infantil: é algo solitário, plástico, fluido.
Em 1988, uma grande amiga de Igor de Souza morreu nas águas frias do Canal da Mancha. A nadadora santista Renata Agondi morreu devido a complicações decorrentes de uma hipotermia, aos 25 anos, tentando chegar a Calais, na França. Foi aí então que ele começou a pensar no Canal da Mancha, a se preparar mental e fisicamente para vencê-lo. “Só depois que Renata morreu, me deu vontade de tentar a travessia”, diz. “Eu queria entender o que tinha acontecido.” Souza demoraria mais oito anos para cair nas águas do Canal.
Em agosto de 1996, o Mar do Norte estava mais agitado do que o habitual. Ainda se sentiam os efeitos do El Niño. Assim como os outros atletas, Souza não nadou bem naquele verão. Cruzou o Canal com um tempo que considerou ruim: 11h06min. Voltou para casa com o relógio com que a Rolex premia os nadadores. Mas não ficou satisfeito.
No ano seguinte, voltou a Dover, na costa britânica. Sua ambição era desmedida. Queria ir e voltar. Assim fez. Saiu da Inglaterra, nadou até a França, chegou em Calais, deu uns poucos passos em terra firme, virou, voltou para a água e nadou de volta para Dover. Voltou mais rápido do que foi. O tempo da ida foi de 9h32min e o da volta, de 9h02min. Ninguém, até hoje, fez a mesma coisa. “Os deuses deviam estar me iluminando, a Renata deve ter me dado uma mãozinha”, conta, rindo. A temperatura da água era, na época, em média, 11 graus. Hoje, com o planeta todo mais quente, o máximo de frio que um nadador enfrenta no trajeto é de 14 graus.
Ele voltou ao Canal da Mancha várias vezes, como treinador de outros onze nadadores, entre eles dois brasileiros, Marcelo Lopes e Marta Izo, que fizeram a travessia em 2004 e em 2006, respectivamente. Até hoje, só onze brasileiros completaram o percurso de 32 quilômetros em linha reta, que é o de mais prestígio no mundo das águas abertas, apesar de não ser o mais difícil.
Igor de Souza fez a sua primeira travessia aos sete anos. Foram três quilômetros na Billings, a represa que banha (está certo) Santo André, a cidade onde nasceu e morava. A prova se chamava São Paulo a Nado e era transmitida ao vivo pela televisão. Pouco depois, ele assistiu com o pai ao filme Salve a campeã, com a atriz-nadadora Esther Williams. “Era um musical romântico, que hoje acho ridículo. Mas, como o filme era baseado na vida da primeira mulher a atravessar o Canal da Mancha, fiquei com aquele exemplo de superação na cabeça, foi um troço que me motivou a vida inteira.”
Com vinte anos, Igor de Souza começou a competir em provas do circuito internacional. O maior estímulo para que disputasse provas internacionais veio de outra lenda da natação nacional, Abílio Couto. Paulista de Ribeirão Preto, Couto bateu o recorde mundial do Canal da Mancha nos anos 50, atravessando-o três vezes (1958 e 1959), e disputou todos os torneios importantes de águas abertas durante mais de vinte anos. Um cálculo, feito pela Federação Espanhola de Natação, atesta que, somadas todas as suas travessias, Couto teria nadado mais de 41 mil quilômetros – a medida da linha do Equador.
Souza estreou, em 1985, na Capri-Nápoles. Ele gostou da prova, mais por causa do visual do que pela temperatura da água (27 graus), muito quente. No ano seguinte, juntou dinheiro, tirou férias do trabalho, voltou para a Europa e conseguiu vencer algumas provas desimportantes. No terceiro ano, tomou a decisão radical. Vendeu o carro, largou o emprego, disse “Seja o que Deus quiser” e partiu, na confiança de que o dinheiro que ganharia com as premiações o sustentaria longe de casa. Percebeu que gostava mais – e se dava muito melhor – em lugares em que a água era fria e as condições de nado, adversas. “Sou parrudo, se o mar está uma piscina, se a água está calma, perco para os mais magros e atléticos”, diz, “e, se a água estiver quente, então, aí eu passo mal mesmo.”
Uma das provas de que mais gostava era a do lago Saint-Jean, no Canadá. A largada é feita num rio em degelo, com a água a 5 graus. O percurso, de 40 quilômetros, levava desse rio até o lago, onde a temperatura subia, e chegava ao máximo de 12 graus. “Antes da saída, os organizadores mandavam todo mundo entrar na água, e ficar parado na frente do píer, enquanto se tocava o hino canadense”, conta. “Para não congelar, todos bebiam um monte de líquido um pouco antes, e mijavam para esquentar a água em volta enquanto esperávamos a partida.”
Numa das vezes que fez a prova, Igor conta que “apagou” nos últimos 30 minutos. Teve hipotermia, cujo efeito mais imediato é perder a memória. “Sei que cheguei porque assisti ao teipe, mas até hoje não lembro de nada”, diz. Para enfrentar essas temperaturas, ele conta que o segredo, além de engordar um pouco, é treinar o máximo de horas possíveis na água fria, para o corpo se acostumar. “O resto é psicológico. Eu sempre li e pratiquei o taoísmo, e entrava nas provas sem pensar no final. A preocupação era com os próximos quinze minutos. De quinze em quinze, de tanto em tanto, até terminar.”
Houve um dia em que a prova quase não terminou. Foi em Atlantic City, nos Estados Unidos, em 1989. O percurso era de 46 quilômetros, e, naquele ano, as condições estavam terríveis. A prova começava num canal e dava a volta na ilha. No canal, a temperatura era de 15 graus; no mar, baixava para 11. Os nadadores saíram às 8h da manhã. A chegada, prevista para o meio da tarde, só aconteceu depois de anoitecer. Muitos desmaiaram ou abandonaram a corrida. “Acho que eu nunca perguntei tantas vezes quanto tempo faltava para terminar”, lembra. Num trecho, a corrente contra era tão forte que ele teve de nadar por uma hora e meia tentando avançar, mas acabou indo para trás. Só depois que a maré baixou é que conseguiu prosseguir.
Souza prefere passar seus dias dentro d’água a ter de usar terno e gravata e ficar num escritório. Acha que as histórias que tem para contar, mais do que os troféus e medalhas, que nem sabe direito onde estão guardados (“alguns meu filho pequeno transformou em brinquedo”), são as coisas mais importantes que ele conquistou. Uma vez, na Austrália, quando treinava perto de Sydney, percebeu que a polícia tinha esticado redes limitando a área dos nadadores. Evitar que os tubarões atravessassem foi a resposta. O detalhe é que a prova, que ocorreria no dia seguinte, seria, justamente, do lado de lá da rede. Não foi no outro lado do planeta, e sim nas águas tranqüilas da Capri-Nápoles, que Souza viu um tubarão a seu lado. O animal foi abatido a tiros pelos organizadores da travessia e não feriu ninguém.
Cruzando o Canal de Suez, Souza viu uma forma negra que ia subindo e crescendo, subindo e crescendo. O que era? Uma orca, que ignorou os nadadores e seguiu seu caminho. “Mas ela não me assustou nada perto da foca com quem eu topei em Mar del Plata”, lembra. Foi durante um treinamento, antes da prova. Ele parou, esticou a cabeça para fora, e o bicho estava lá, encarando- o: “Não sei quem se assustou mais, eu ou ela”. No rio Nilo, no Egito, ele deu de cara com um camelo morto, boiando logo na largada. Em vez de remover o animal, os organizadores o afundaram a pedradas mesmo. O bicho arrebentou e os nadadores tiveram de atravessar o trecho no meio da carcaça e do sangue espalhados na água.
“Nunca soube de ninguém que tenha sido atacado por um bicho”, ele diz. Há uma exceção: as “caravelas”, águas-vivas que queimam e são venenosas. Se não foram os animais, qual foi o pior problema que enfrentou? “Uma vez estourei fisicamente, fiquei cheio de lesões e nadei muito tempo com dores intensas.” Isso foi, ele conta, no ano em que tentou juntar o máximo de dinheiro possível com prêmios. Nadou tudo quanto era prova, por nove meses. Não só as da Fina, mas as de campeonatos nacionais, o inglês, o italiano. “Achei que assim ia poder parar de trabalhar de vez.” E deu? “Oh, se deu..”, diz, rindo, apontando para a sua modesta sala.
A maior alegria da carreira de Igor de Souza foi a dupla vitória na Maratona de Nova York. É uma prova tradicional, de 42 quilômetros, que dá a volta na ilha de Manhattan. A primeira vez em que venceu, em 1991, ele foi o primeiro não-americano a chegar na frente. Dez anos depois, foi lá que encerrou a carreira como nadador de maratona. Convidado pelo comitê organizador, como celebridade que era, resolveu aceitar, mesmo já tendo parado de fazer o circuito completo três anos antes. Era um pouco mais velho do que a média dos nadadores e estava inseguro. Mas ganhou. “Foi uma vitória especial, porque eu já estava parando e me superei”, conta.
Quanto à garota na varanda, há cinco meses ela fez a travessia no rio Hudson, em Manhattan. Não chegou perto de nada do que Souza fez nesses anos todos. Quando comentei em nosso encontro que eu havia nadado os 9,4km da Little Red Lighthouse Swimm, ele disse: “Ah, é a Maratona de Nova York light“, e riu.
Sim, light para ele. Não para mim, que, apesar de ter alguma experiência de maratonas curtas, não estava nem um pouco segura na noite do dia 25 de agosto, um dia antes de cair naquelas águas cheirando a petróleo e não-sei-o-que-mais. Tinha treinado pouco nas semanas anteriores, por conta de outras viagens, de trabalho e da resistência a seguir em frente na véspera de um desafio tão grande.
No jantar, tinha tomado uma taça de vinho (desculpa: para dormir melhor), fui para a cama cedo e logo a garganta começou a arranhar. Achei que ia ficar com febre. Achei, não: tive toda a certeza do mundo. Levantei e fui até a janela. O lugar onde estava dava de cara para ele, o rio Hudson. Fazia calor, mas as dobrinhas na água deixadas pelo vento davam um frio na espinha. Tomei uma Amoxilcilina. Depois, um Naldecon e em seguida um Cataflan. Agora me acalmo, pensei. Terminei tomando um Lorax, para garantir algumas horas de sono. Quando acordei, num susto, às 5h30min da manhã, sentia um gosto ruim na boca que anunciava a pergunta de sempre: “Que merda eu vim fazer aqui?”
No píer de largada, encontro os colegas de equipe, todos vestidos de amarelo, chamando loucamente a atenção. Outros nadadores tiram onda dos laughing brazilians. As largadas, organizadíssimas, se davam em pequenos grupos. Fui num dos primeiros e, dentro dele, arranquei na frente. A sensação inicial era de que a água pesada pressionava os ouvidos, e já me arrependia da quantidade de remédios tomadas na noite anterior, enquanto uma dor de cabeça e um calafrio me incomodavam por dentro.
Aí veio a parte do otimismo irracional, e pensei: estou aqui em Nova York, nadando ao lado de uma das mais belas paisagens urbanas do mundo, vou curtir a vista. Qual o quê. Não dava para ver muita coisa além das margens barrentas, das estalagens de barco e dos fundos das construções dos cais.
Foram 1h57min de tremeliques imaginários e de uma sensação de febre iminente. O que me fazia procurar isso? Certamente não era a busca de resultados. Não sou competitiva como Igor de Souza. A resposta eu sabia faz tempo, mesmo com os desconfortos ocasionais: nadar é um refúgio, um território conhecido no qual sempre pude me haver comigo, profundamente. Um refúgio para repetir, de modo bastante egoísta, que ninguém me conhece de verdade. Ninguém nunca está comigo ao nadar. Nem jamais estará. Nadar é estar só e se perder em si mesmo.
O cansaço aumentava e, com isso, o frio ia tomando cada poro da pele e penetrava meus ossos. Depois de algum tempo de oscilação entre o torpor e uma obsessão do tipo “vai acabar logo, vai acabar logo”, vi, enfim, a imensa ponte descrita como o fim da prova. Algumas pessoas já saíam da água. Levantei-me, escorregando no barro. Gente sorrindo, me ajudando. Acabou. Uma exaustão prazerosa toma conta do corpo. A sensação não é erótica nem de autoflagelação, mas talvez tenha um pouco de ambos. De novo, tinha conseguido ir até lá, até o lugar soturno onde moram meus medos interiores – e saíra de lá, voltara com um novo corpo para enfrentar o tédio e as dores do cotidiano. A vida fora d’água é bem difícil.
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