Alvorada das aflições
O vencedor e os finalistas do mês
| Edição 158, Novembro 2019
ALVORADA DAS AFLIÇÕES
Renato Toledo
Certa madrugada eu, Johnny Bravo, acordei de sonhos intranquilos. Percebi que quase dez meses de governo se passaram e eu não havia tomado qualquer nota dos acontecimentos diários.
Se até o Lula já foi indicado para um prêmio cágado, jabuti, sei lá, por que eu não posso ter minhas pretensões literárias e escrever memórias?
Tentei trocar de pensamento e busquei relaxar me inteirando no Face. Duas, três, quatro horas da manhã de um domingo seco. A aflição só aumentava. Resolvi tomar uma medida drástica: mandei um zap à Joice, minha então líder no Congresso, pedindo meia dúzia de conselhos para construir essas memórias.
Apesar das nossas mútuas caneladas, depois que o Frota saiu, era ela quem tinha o melhor texto do grupo de zap do partido – que àquela altura já havia se tornado um grupo partido de zap.
Como já era esperado, Joice veio com uma estocada e sugeriu que meu livro se chamasse: Memórias de um Sargento de Milícias. Foi a quinquagésima vez que ouvi aquele arremedo de anedota, como se me chamar de sargento me ofendesse.
Ao menos ela me deu algumas orientações de português escrito. Inclusive, ela que criou, de próprio punho, a frase inicial deste texto.
Jurei a mim mesmo que não revelaria aquela conversa a ninguém, sobretudo ao Carlos, com quem estava rompido desde o dia em que pedi que ele jogasse na latrina a ideia de treinar tiro nas emas aqui do Alvorada. Tanta placa em estrada vicinal para mirar, ele vem querer abater as emas aqui nas barbas da extrema imprensa? Se a dona Folha de S.Paulo nota a falta de uma ema dessas, eles entram, imediatamente, com pedido de Lei de Acesso à Informação para saber quantos animais desses têm no Alvorada e qual é a despesa mensal da Presidência com alpiste. Ema come alpiste? Sei lá.
Naquele mesmo dia, horas mais tarde, eu havia marcado um churrasco para melhorar a articulação política. Para dar um caráter amplo a essa confraternização, chamei um representante de cada poder: o deputado Eduardo, o senador Flavio e o General Heleno. Mas quem veio mesmo foi só o Eduardo, pois o Flavio estava com uma questão no tocante ao fluxo de caixa da loja de chocolate e o Heleno já estava aqui no Alvorada desde a live da quinta anterior.
Eduardo chegou e falou que ia comandar o “BBQ”. Fui tomado por uma nova aflição, pois essa era a sigla do grupo de zap que nós tínhamos com as famílias Bolsonaro, Bebianno e Queiroz, que usávamos para organizar viagens para Angra. Depois ele me esclareceu que BBQ era uma espécie de abreviação de churrasco em inglês. Ele estava fazendo ali um mix de termos em inglês e português, com a cabeça já em Washington. Eduardo serviu um hambúrguer mais fétido que manchete de jornal de domingo.
– Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico?
– Não, capitão. É um jerkyburger. O pessoal da América que veio pro CPAC ficou receoso com o sarampo e trouxe sua própria comida. Eles deixaram alguns comigo. Socute.
Por um segundo, cogitei que o Duda estivesse envolvido com coisa vegana, carne sem glúten e produto de reforma agrária. Mas era apenas um troço ressecado, com aspecto de que o boi fora abatido na época em que o Heleno fazia CPOR.
Eduardo e Heleno mal se falavam. Tentei promover diversos assuntos: pesca com rede, pesca com vara, pesca esportiva… Não colou. Mas, eu mesmo, não estava no clima. Só pensava em como estruturar minhas memórias. Como transformar um monte de pensamento em letras, meu Deus do céu?
O Eduardo havia ligado um som alto na sua caixa da JBS, JBL, sei lá. Um bate-estaca terrível que me impedia até mesmo de pensar.
– Eduardo, meu filho, desliga esse negócio ou coloca uma lenta. Por falar em pesca, põe aquela do Fagner. “Eu amava como amava um pescador/Que se encanta mais com a rede que com o mar.”
Heleno, como é de seu feitio, fez uma intervenção:
– Isso é do Oswaldo Montenegro, presidente. Eu gosto. De Oswaldo eu gosto.
Ficamos em silêncio, contemplando a voz e o violão do Oswaldo. Tocado, resolvi abrir o jogo para tentar aplacar minha aflição: relatei a conversa que tivera com a Joice mais cedo. O 03 agiu como o 02: saiu rasgando com sua camionete. Não sei se mais furioso com o fato de eu ter conversado com sua inimiga ou com a ideia de ter um pai escritor. Heleno, experiente, disse para eu me acalmar e desconsiderar a fúria do garoto. Retornamos ao silêncio absoluto. Sentei-me. Respirei. Heleno, com um olhar distante, começou a balbuciar:
Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás?
Quantos você ainda vê todo dia?
Quantos você já não encontra mais?
Quanta sabedoria! Aquilo era a estrutura que eu precisava para dar início à primeira edição das minhas memórias. Desde então, tenho jogado pesado nisso daí. Só falta finalizar o capítulo sobre os amigos que eu já não encontro mais. Vai chamar “A lista do Bivar”.
P.S.: Depois do meu rompimento com a Joice, chamei o Wajngarten para adequar este texto à porra da norma culta.
*
GLORIOSO CONCURSO LITERÁRIO
Faça-nos rir e torne-se um imortal.
Se você acha que leva jeito para a coisa, participe do retumbante concurso Encaixe a frase.
Todo mês, proporemos uma frase obrigatória e um ingrediente improvável, que deve ser incorporado à história. Envie um texto de no máximo 5 mil toques ou uma HQ de 1 página, até o dia 20 de novembro para concurso@revistapiaui.com.br, e a escolhida será publicada na próxima edição da piauí.
FRASE DO MÊS:
“Construirei meu império especulando com o preço da rúcula.”
Elemento estranho: “Vou de táxi” (canção da década de 1980).
O VENCEDOR DE NOVEMBRO: A frase a ser encaixada era: “Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico?”, e o elemento estranho era Oswaldo Montenegro.
O vencedor é Renato Toledo. Os outros quatro finalistas estão abaixo.
Confira aqui as regras do nosso paleolítico certame literário.
Textos finalistas:
POPEYES, ONDE TUDO COMEÇOU
Carlos Castelo
– Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico?
– Não, pai. Aqui no Popeyes só tem frango frito. Descolei esse pro senhor no Burger King.
– Só pra saber, se fosse orgânico eu não comeria. Odeio essas frescuras.
– Eu sei.
– E como tá o intercâmbio?
– Daquele jeito.
– Que jeito, menino?
– Ah, eu troco uma Glock por uma Colt, uma Colt por uma submetralhadora…
– Só não vai mexer com AK 47. É arma de comunista ou terrorista do Oriente Médio.
– Não, pai, só mexo com berro usado aqui nos Estados Unidos.
– Boa, 03. Mas tô te achando meio de asa baixa, o que tá pegando?
– Bom, eu queria mesmo era fazer política, como o senhor.
– Hummm…
– Intercâmbio é legal, mas já fazia isso em Rio das Pedras.
– Tenha um pouco de paciência, Dudu. Tô bolando um plano, vai ficar bonita a coisa pra gente.
– Ah, joga na mesa!
– É o seguinte: daqui uns anos vou me candidatar a presidente
– Ah, para de brincar, pai. Você só sai daquela Câmara no caixão.
– É sério, porra!
– Eu sei, mas tu vai derrotar a esquerda toda do país, vai?
– Escuta a ideia.
– Sou todo ouvidos…
– A ideia é prender o chefão deles, o Barbudo.
– Ah, vá!
– Tem gente grossa pensando em como fazer tudo: juiz federal, general… Demora, mas um dia, acontece. Aí eu caio pra cima.
– Entendi. E o resto da operação?
– Quero bolar a estratégia toda com o Pitbull. Mas tem um tempo grande pela frente.
– Pai, você acredita que o doido do 02 consegue pilotar a coisa e te fazer presidente?
– Francamente, não sei. Só que tá aparecendo aí uma tal de rede social que ele diz que é o futuro. Vamovê.
– Você é quem manda, capitão, mais alguma ideia?
– Me passa a faca.
– Vai comer hambúrguer de faca, não me mata de vergonha, papai.
– Não! Vou te mostrar um troço. Vê só…
– O senhor vai operar de apendicite?
– Não, vão me dar uma facada!
– Ah, pai, não tomou o remédio hoje, né?
– Tá ok, depois te explico no hotel. Mas quero que você entenda que vai ficar tudo maravilha pra você, logo menos.
– Tipo o quê?
–Tipo tu futuramente embaixador do Brasil nos Estados Unidos, interessa?
– Claro!!
– Então vai fazendo teu intercambiozinho, treinando teu Inglês, que, não demora, a gente chega lá.
– Se isso acontecer, já tem algum nome pro ministério?
– Estou com a cabeça na eleição, mas já tenho alguns.
– Fala um.
– Oswaldo Montenegro.
– Aí sim, hein? Tô começando a botar fé na tua administração. Pra Cultura?
– E lá vai ter ministério da Cultura na minha gestão, rapaz. Me respeita!
– Pra qual pasta então?
– Oswaldo Montenegro é filho de militar, é popular, pode ser qualquer coisa.
– Ah, é verdade. Podia ser até ministro da Mulher, se quisesse…
– Não, pra essa vaga já tenho um nome, a Damares.
– Boa?
– Boa pra confundir. Uma estratégia aí que o Olavo bolou.
– Entendi.
– Bom, acabei o sanduíche, filho. Volta pra tua chapa que o gerente branquelo já tá te olhando feio.
– Vou nessa, pápi.
– E presta atenção: da próxima vez que eu voltar nessa bagaça vai ser pra discursar na ONU!
– Não duvido.
– Vai lá, tchau, senhor embaixador.
– Good bye, Mr. President!
– Nossa, já tá falando coisa difícil em Inglês, hein? Parabéns.
– É nóis.
– Nóis.
– Ah, e o slogan? Bolou?
– Ainda não. Mas, com certeza, vai ter Deus e Brasil na mesma frase.
– Que tal: “Acima do Brasil, só Deus”?
– Hummm, gostei! Acho que pode melhorar. Vou mostrar pro Edir. Fui!
UM INSTANTE É MUITO POUCO PARA SONHAR
Marcelo La Farina
Avenida Lúcio Costa, 3.100. Dia da Consciência Negra. Feriado e churrasco no jardim da casa mais célebre do condomínio Vivendas da Barra.
– Puta que me pariu! Queimei o hambúrguer!
– Quem vê pensa que ele aprendeu a fritar hambúrguer na França!
– Cala a boca, Léo! O Edu sabe pilotar a chapa como ninguém!
– Calma, Carluxo! Foi só uma piada.
– Cala a boca todo mundo, tá ok?
– Isso mesmo!
– Cala a boca você também, Hélio! Nunca fala nada e agora quer se manifestar, porra?
– Perdão. É que quando a gente ama, simplesmente ama.
– A questão aqui é que ele tem cacife pra fritar qualquer coisa que quiser. Continua o trabalho, meu filho, que eu estou com fome e se comer mais um pão com leite condensado não vou ter espaço pro seu hambúrguer estilo americano, tá OK?
– Obrigado, pai! E fala pro teu primo calar a boa mesmo, Carlos, senão vou é dar um tiro no cu desse índio barrigudo.
Michelle aparece no gramado. Nas mãos, uma grande vasilha de maionese.
– Chegou a estrela da festa!
– Maionese com uva passa?
– E existe maionese sem uva passa, Edu?
– Porra, Michelle! Uva passa é de foder! Coisa de fresco!
– Ô, Eduardo! Respeita sua madrasta, tá ok? Reclamar de comida é coisa de fresco, garoto!
– Porra! Pra que eu tenho tanto trabalho então? Da próxima vez vou preparar hambúrguer de peru.
– Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é de que?
– É um blend de maminha com fraldinha. Só carne de macho!
– Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico?
– Não, porra! É hambúrguer de macho, já falei!
– Então cala a boca você também. De agora em diante só quero ouvir o barulho da carne na chapa e voz máscula do Oswaldo Montenegro na caixinha de som. Alguém liga a JBL, tá ok?
– Tio, me passa o adoçante pra caipirinha de frutas vermelhas?
– Porra, Léo! Cala a boca! Que a vida passa num instante, e um instante é muito pouco pra sonhar!
FÉRIAS PRESIDENCIAIS
Paula Gomes
Olha, pai, essa aqui é ótima! Fica lá dentro da Disney! Mas tem só 3 quartos. Alguém vai ter que dividir. Veja aí se é pet friendly, porque a creche da Pituka vai estar em recesso. Eu, obviamente, não vou dividir. Onde já se viu um Messias dividir quarto! Não tem precedentes na história. Será, vou colocar aqui no Google: “Jesus dividia aposentos com….” Ah, mas com essa pesquisa enviesada aí, vai acabar achando um fato pontual, sem relevância histórica, uma noite aí que ele estava foragido…Mas nos textos mais populares, não tem, disso eu tenho certeza. Então decidam aí entre vocês três.Bom, seguindo o mesmo critério do papai, eu também não posso dividir. Parece que tinha um tal de Flávio Josefo na história, que foi superimportante para o judaísmo. Mais importante que o Woody Allen? Duvido. Onde você tá vendo isso, na Wikipedia? Em vários sites. Entrei aqui pra ver e olhem só, logo na primeira frase tá escrito assim: “Flávio Josefo, ou simplesmente Josefo”. Não está escrito “Flávio Josefo, ou simplesmente Flávio”. Por esse mesmo critério, não é correto eu dividir quarto, já que sou xará do grandessíssimo Carlos Magno.Aqui tá escrito que ele era filho de Pepino, o Breve, então… Então o que? Nada. Olha, pra essa data quase não tem mais casa sendo oferecida aqui no site, vou fechar essa mesmo e a gente tira na sorte depois quem vai dividir quarto. E banheiro, quantos tem? Banheiro é mais importante que quarto. Tem 3 também. Sei não, você procurou direito?Não é possível que não tenha coisa melhor. Procura aí você então, Josefa, porqueeu já cansei. Fechei todas as abas aqui, até o Twitter, só pra ver isso, e vocês ficam aí de sacanagem, pô.Calma gente, vamos prestigiar aqui o churrasco do Eduardo, que ele aprendeu lá com os americanos. Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico? É sim, pai. Criei o boi dentro do meu quarto, inclusive, pra ter a certeza de que ele não ia estar exposto a nenhum agrotóxico.Vocês preferem com piscina ou sem piscina? Com! Tem como ver se é aquecida ou não? O Oswaldo Montenegro não tem casa lá? Vê lá com ele, com o Agnaldo Timóteo, Amado Batista, a nossa base. De repente eles liberam pra gente até de graça. Ó, tô vendo aqui o Google todo mundo que tem casa em Orlando: Larissa Manoela, Silvio Santos, Carla Perez, Luciano Camargo, Deborah Secco, Murilo Rosa, Juliana Paes, Galvão Bueno… Manda o Filipe Martins mandar mensagem para todo mundo!