Renato Poriciwi Wai Wai com sua mulher, Lea: fazia muito tempo que ele não voltava à região onde tinha vivido na infância. “Quero ser enterrado aqui, na minha terra”, disse o indígena CREDITO: RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ_2020
Biblioteca da selva
Poriciwi Wai Wai, a memória de um povo e o enterro na aldeia
Ruben Caixeta de Queiroz | Edição 168, Setembro 2020
A pandemia forçou muitos a ficarem em casa, mas outros, para trabalhar, precisaram sair às ruas – ou voltar à roça. Foi o caso da diarista Edilene Penha de Almeida da Silva, que após perder o emprego na cidade teve que buscar trabalho numa lavoura de café. A crise fez evaporar num relance as suas conquistas, exigindo que ela retornasse a um mundo do qual tinha bravamente escapado.
Para o indígena Renato Poriciwi Wai Wai, as coisas aconteceram de forma contrária. Graças ao seu filho arqueólogo, ele conseguiu rever depois de décadas a terra onde nasceu e da qual foi forçado a sair com seu povo. Havia poucos sinais da aldeia antiga no local, mas a visita foi um grande momento de felicidade para Poriciwi, antes de ele ser levado pela Covid-19.
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Conheci Jaime Xamen Wai Wai quando visitei sua aldeia na Terra Indígena Nhamundá-Mapuera, no Noroeste do Pará, para uma pesquisa do meu doutorado em antropologia e cinema, em 1994. Era um garoto de 8 anos, baixinho para sua idade, risonho e curioso. Logo que me viu, ele perguntou na sua língua: “Ahtono ewto pono amoro?” (Em qual aldeia você mora?). A minha aldeia era Belo Horizonte.
Xamen me procurou 24 anos depois para que eu o orientasse numa dissertação de mestrado em arqueologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde dou aulas. Ele já estava casado, era pai de uma menina de 5 anos, mas preservava o olhar cheio de curiosidade da infância.
Fiz duas perguntas a ele antes de aceitar o encargo de orientador: “Por que você veio para uma cidade tão distante da sua aldeia? E por que procurou a mim, que não sou arqueólogo, e sim etnólogo?” Xamen me respondeu que queria um orientador que conhecesse o seu povo, sua história e a paisagem onde ele vive, porque, assim, “ficaria mais fácil conversar e explicar sobre os lugares de que gostaria de falar”. E, respondendo à segunda pergunta, disse que optara pelo meu nome porque seu trabalho não seria de arqueologia tradicional. “Não quero escavar a terra para ver os restos do meu povo, quero só ver onde estavam as aldeias antigas do meu pai, contar sua história e sobre o tempo presente ao lado dele”, explicou.
Xamen havia feito o curso de graduação em arqueologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, e ali já intuíra que tipo de trabalho “arqueológico” gostaria de realizar. Estava relacionado com o que lhe dissera certa vez seu pai, Renato Poriciwi Wai Wai, quando Xamen lhe perguntou onde estava enterrada sua avó. “Eu levo você até lá e mostro o lugar da aldeia dela, mas não quero que desenterre a minha mãe. Ela não deve ser perturbada. O espírito dela já deve estar tranquilo, vivendo num lugar encantado.” Com o termo “espírito” (ekatï), Poriciwi se referia à parte que abandona o corpo quando a pessoa morre.
Foi assim que Xamen começou a pensar em outro tipo de “escavação”, em outra forma de falar da história de seu povo, sem desenterrar corpos, buscando nos relatos de seu pai os fundamentos para a dissertação de mestrado iniciada em 2019, que ele intitulou provisoriamente de “Lugares dos Waiwai antes do contato: reconstruindo a história através da arqueologia, da etnografia e da memória”.[1]
Depois de Xamen, que hoje tem 34 anos, foi a vez de seu sobrinho Roque Yaxikma Wai Wai, seis anos mais novo, me procurar, em 2019, para também fazer mestrado em antropologia na UFMG. Quando estão em Belo Horizonte, eles se hospedam em casas de amigos, inclusive na minha e na do arqueólogo Igor Morais Mariano Rodrigues. Como esperado na relação tio-sobrinho entre os índios waiwais, os dois passam o tempo todo em pequenas rusgas, quase sempre bem-humoradas, um tentando desbotar o brilho do outro ou menosprezar sua opinião. Mas estão ambos empenhados nesse objetivo comum que é estudar a história do povo Waiwai e contá-la “para o branco”, como dizem. E pretendem um e outro se estabelecer em sua aldeia, para proteger o território e manter vivas as tradições.
Os Waiwai fazem parte de um conjunto de povos (entre os quais, Tunayana, Xereu, Hixkaryana, Katuwena e Wayana) que vivem na fronteira entre Brasil, Guiana e Suriname. Entre o final do século XIX e o início do século XX, foram quase exterminados por epidemias levadas pelos colonizadores. Mas conseguiram sobreviver, formando comunidades multiétnicas e multilinguísticas. Hoje somam cerca de 6 mil pessoas e habitam 54 aldeias numa grande área na Floresta Amazônica, dividida em três terras indígenas chamadas oficialmente de Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera e Kaxuyana-Tunayana. Em 2019, esses povos resolveram criar por conta própria um conselho e deram ao conjunto das três áreas o nome de Território Wayamu, ou Jabuti, réptil que consegue sobreviver durante meses no interior da mata, sem comida e sem água – um bicho obstinado e resistente.
Em janeiro último, Xamen concebeu e liderou uma expedição até o local onde seu pai nasceu e sua avó foi sepultada, na divisa de Roraima e Pará, quase na fronteira com a Guiana. Participei dessa expedição com mais vinte pessoas: Xamen, seu sobrinho Yaxikma, seu pai, Poriciwi, com cerca de 80 anos, a mulher dele, Lea Wahciki Wai Wai, em torno de 70 anos, e uma grande parte da família (genros, noras, filhas e netos), além da antropóloga Leonor Valentino de Oliveira e do arqueólogo Igor Morais.
Partimos da aldeia Mapuera, localizada no coração do Território Wayamu. Coubemos todos em três canoas, duas movidas a motor de popa e uma a motor de rabeta, que seguiram rumo ao Norte, subindo para as cabeceiras do Rio Mapuera, na direção da Guiana. De tempos em tempos, parávamos em algum ponto marcante da paisagem para observá-lo: uma ilha, um lago, uma boca de rio, uma pedra, uma serra. A cada parada, Poriciwi nos contava algo sobre a história dos waiwais e as entidades cosmológicas que habitam os lugares. Fazia muito tempo que ele não voltava à região onde haviam se estabelecido seus ascendentes, numa aldeia chamada You (buriti).
Poriciwi, um homem muito alegre e generoso, exímio artesão, tinha sido um grande namorador na juventude e gostava de se lembrar dos vários casos amorosos do passado. Ele conhecia cada detalhe do que nós chamamos de “paisagem”, mas que para os indígenas significa mais que isso: é o espaço onde habita uma multiplicidade de viventes, seja pessoas-animais, seja pessoas-plantas.
Certo dia, nós nos deparamos com uma ilha rochosa onde havia uma única e pequena árvore. Poriciwi a reconheceu: a pessoa-árvore estava lá desde que ele era criança, havia mais de setenta anos. Debaixo da ilha, ele nos disse, moravam seres mágicos. Era ali que o xamã de sua aldeia mergulhava para obter as pedras para os rituais de cura e outras práticas. Pirimaw Wai Wai, um dos dois genros de Poriciwi na expedição, então mergulhou nas proximidades da ilha e apanhou algumas daquelas pedras para nos mostrar. Depois as devolveu ao fundo do rio – para os seus donos.
No quinto dia de viagem, Poriciwi reconheceu o lugar onde as pessoas de sua aldeia tomavam banho e pescavam. Desembarcamos, mas ele não conseguia identificar o lugar exato da aldeia, apesar de sua boa memória. A vegetação nativa crescera sobre os locais onde os indígenas haviam feito, no passado, o terreiro e seus roçados. Sabíamos, porém, que estávamos bem perto do local. Pirimaw, que nunca tinha estado lá, mas era exímio conhecedor da floresta, comentou: “Aqui é o caminho para a roça… Essa espécie só nasce em capoeira… Essa outra só cresce perto daquela, em local onde tiver tido roça… Aqui está o carvão, que acompanha o tronco caído no chão…” Por fim, encontramos o local exato da aldeia You, depois de investigarmos uma dezena de lugares onde houvera outras no passado, todas elas abandonadas.
Embora cansado, Poriciwi reanimou-se durante a estadia na antiga aldeia: andava para lá e para cá, ria, brincava, lembrava histórias de sua infância e acontecimentos míticos. Disse que ele e seu povo haviam sido felizes naquele lugar, onde não existia não indígenas e nada se sabia sobre o mundo dos brancos. Havia, sim, doenças, mas contou que se conheciam todos os remédios para curá-las.
Cerca de setenta anos atrás, Poriciwi e sua família saíram daquela aldeia e foram para a Guiana, dando ouvidos a missionários evangélicos norte-americanos que lhes disseram haver por lá uma vida boa e edênica. Todos os membros da aldeia partiram, mas com o propósito de voltar – o que nunca fizeram. Primeiro, se instalaram na Guiana, no entorno da aldeia Kanashen, que era a base de uma missão evangélica. Depois, dispersaram-se e fundaram novas aldeias no Pará, em Roraima e no Suriname. Nunca abandonaram, porém, o sonho de um dia retornar à aldeia de seus antepassados, situada num lugar muito remoto e de difícil acesso.
Xamen ouvia tudo que contava seu pai, anotava, gravava, pois queria recontar essa história a partir dos relatos dele, feitos “ao vivo” e naquela paisagem. O estudante estava pondo em prática a sua arqueologia sem escavação: era preciso apenas ouvir o antepassado, ver a floresta, distinguir suas diferentes composições, reconhecer os vestígios antigos e retraçar as linhas que os ligam ao presente. Era uma arqueologia indígena. Uma arqueologia viva.
“Por que voltar tão depressa?”, perguntou Poriciwi quando chegou o momento da partida. “Por que vocês estão me levando embora? Eu quero ser enterrado aqui, na minha terra.” Depois de vinte dias de expedição, chegamos de volta à aldeia de Poriciwi na Terra Indígena Nhamundá-Mapuera, situada a cerca de 600 km de barco de Manaus e a mesma distância da capital de Roraima, Boa Vista.
Pouco tempo depois, a Covid-19 começou a se espalhar pelo Brasil, atingindo fortemente a região Norte do país. No fim de março, Roraima confirmou os primeiros casos. Em abril, o sistema de saúde de Manaus entrou em colapso.
Em 15 de maio, Poriciwi apresentou sintomas da doença: tosse e dificuldade para respirar. No dia 22, foi levado para o posto de saúde da cidade de Oriximiná, no Pará. De imediato, os médicos recomendaram que fosse transferido para um hospital em Santarém. Contudo, havia dois outros pacientes graves à espera da mesma transferência, e Poriciwi só pôde ser levado em 26 de maio. No Hospital Regional de Santarém, foi internado numa UTI. Seu estado de saúde, no entanto, piorou dia após dia. Na noite de 5 de junho ele morreu.
Durante todo o tempo em que seu pai esteve no hospital, Xamen o acompanhou, mas sem poder vê-lo ou tocá-lo. Em Belo Horizonte, eu ficava a imaginar essa situação tão dolorosa. Na mesma noite da morte de seu pai, Xamen me ligou, por volta das 22 horas. “Ruben, me ajuda a levar o meu pai para ser enterrado na aldeia”, ele pediu, aos prantos. Queria seguir a tradição do seu povo e enterrar o corpo do pai em sua aldeia – não a da infância de Poriciwi, mas aquela onde ele passou seus últimos anos.
Para os waiwais, assim como para outros povos indígenas, é muito importante que o ritual funerário seja executado com o devido cuidado, pois é o momento em que o espírito se tranquiliza e se apronta para seguir rumo a outro patamar cósmico – deixando em paz e sem sofrimento os parentes e outros viventes da Terra.
Comecei a fazer ligações e disparar apelos. Liguei para um funcionário da Casa de Saúde Indígena (Casai) da cidade de Oriximiná, no Pará. “Desculpe-me, mas não posso fazer nada”, me disse o homem. “É norma da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] e do Ministério da Saúde: o corpo deve ser enterrado na cidade de Santarém, conforme o protocolo da Covid-19.”
Telefonei, então, para o coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Guamá-Tocantins (Dsei), responsável pela saúde indígena na região entre Leste do Pará e Maranhão, e tentei convencê-lo a transladar o corpo para a aldeia. Sabia que devia agir rápido, pois tinha ouvido falar que a situação sanitária estava um caos e que nos hospitais do Pará corpos estavam sendo enterrados sem que as famílias soubessem onde.
O coordenador do Dsei, porém, não quis atender de imediato o meu pedido. “Não vamos levar o corpo para a aldeia, é muito arriscado, podemos espalhar o vírus.” E me relatou casos de indígenas que teriam tirado o corpo do parente de dentro do caixão para enfeitá-lo, conforme o seu rito funerário, desrespeitando assim os protocolos sanitários. Retruquei: “Não sei nada sobre esses casos, mas sei que os waiwais não vão proceder dessa forma, pois as suas lideranças me asseguraram que irão modificar o rito para cumprir o protocolo da Covid-19.” O coordenador não cedeu. “Não, não posso permitir”, ele concluiu.
Não consegui dormir. De madrugada, tomei coragem e liguei para o procurador do Ministério Público Federal, em Santarém, Gustavo Kenner Alcântara. Ele me atendeu de forma solícita e disse que, embora fosse um pedido difícil, tentaria ajuizar uma ação para que o corpo fosse levado para a aldeia.
Passei toda a manhã do dia 6 de junho ligando para lideranças indígenas, perguntando se todos estavam de acordo com a ida do corpo e cientes dos riscos que isso representava para a população indígena. Todos os líderes me confirmaram estar sabendo dos perigos e que tomariam as providências para enterrar seu parente com cuidado. Eu lhes sugeri: “Então vocês precisam se mobilizar, porque os responsáveis pela saúde indígena dizem que o corpo vai ficar em Santarém.”
Por volta de meio-dia, recebi a notícia de que o Ministério Público Federal tinha, finalmente, elaborado um protocolo para o translado, depois de entrar em acordo com o coordenador do Dsei. O protocolo proibia a abertura do caixão, que pessoas tocassem no corpo de Poriciwi e que houvesse aglomeração durante o rito funerário. Os encarregados do sepultamento deveriam estar munidos obrigatoriamente de máscara e luvas.
Na tarde do mesmo dia 6, o corpo foi levado numa aeronave até a aldeia Mapuera. Lá, apenas dois genros de Poriciwi (na cultura waiwai, esses familiares são as pessoas designadas para preparar o ritual funerário), protegidos por máscaras, capas de plástico e luvas, receberam o caixão. Sem abri-lo, levaram-no para o sepultamento, que não foi feito dentro da casa de um parente, como seria o costume, nem teve a presença e o pranto da família, mas pôde ocorrer, enfim, na aldeia. Um filho de Poriciwi, Fernando Makari Wai Wai, de 57 anos, não teve o mesmo destino: apesar dos protestos de seu povo, ele foi enterrado num cemitério de Boa Vista, após morrer de Covid-19, em 4 de julho.
A subnotificação de casos de Covid-19 é mais um dos indicadores da péssima gestão da pandemia pelo governo e está ocorrendo também em relação aos indígenas. Por isso a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem feito um imenso esforço para levantar o número de vítimas. Segundo essa importante organização, entre 155 povos afetados havia 28 mil casos positivos e 731 mortos até 26 de agosto. Entre as vítimas, estão professores, lideranças, rezadores e idosos conhecedores da história dos povos.
Quando morre um ancião, parte significativa do conhecimento de uma aldeia também morre, o que coloca em risco a continuidade de todo um modo de vida. No caso de Poriciwi, contudo, uma coisa é certa: parte da tradição de seu povo e de sua sabedoria foi transmitida a seus descendentes, em particular na expedição à aldeia original.
Mesmo assim, ainda não sei como Xamen dará prosseguimento à sua pesquisa de mestrado nem se conseguirá levar a cabo uma arqueologia indígena sem a ajuda da biblioteca que era seu pai. Espero que consiga e que a vida de Poriciwi possa servir de exemplo às gerações futuras sobre a importância de preservar o seu passado e manter em pé sua floresta, onde ainda vivem imantadas as pessoas, as pessoas-animais e as pessoas-plantas, apesar da voracidade dos predadores, que hoje são legião no Brasil.
[1] Para a nomenclatura dos povos indígenas e sobrenomes, foi adotado neste texto o padrão do Quadro Geral dos Povos do Instituto Socioambiental (ISA). “Waiwai” quando se trata de povo ou aldeia (como “Brasil”); os waiwais quando se refere à população em geral (como “os brasileiros”); “Wai Wai” quando diz respeito ao sobrenome.
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