Cristina era muito mais conhecida do que Néstor Kirchner quando ele chegou ao poder, mas teve que rebaixar seu perfil político para não ofuscar o marido; com seus apliques, seus cinturões largos e suas bolsas de grife, acabou subestimada, considerada frívola e distante FOTO: PRESIDENCIA DE LA NACIÓN_TÉLAM_ICP
Cristina em metamorfose
As encarnações da presidente argentina e as dúvidas sobre o futuro do kirchnerismo
Graciela Mochkofsky e Gabriel Pasquini | Edição 75, Dezembro 2012
Quando eu (Gabriel) estive com ela pela primeira vez, em 1997, Cristina Fernández de Kirchner parecia ser do tipo Hillary Clinton – atenta, profissional, talvez um pouco tensa demais, falando de política e vestindo um terninho cinza. Já era possível dizer, a essa altura, que havia ainda uma outra coisa em cena: ela usava maquiagem pesada e um penteado glamouroso, e seu terninho talvez estivesse um pouco apertado demais – mas estávamos na Argentina, onde essa mistura de formalidade e sex appeal não é assim tão incomum.
Nessa época, ela era conhecida principalmente por seu sobrenome de solteira, Fernández. Um dia, eu (Gabriel) lhe fiz uma pergunta sobre o papel das mulheres na política argentina. Ela não gostou da premissa da pergunta: disse que não era uma mulher na política, era só uma pessoa ativa na política; seu gênero não tinha importância. Mais ou menos na mesma ocasião, um colega seu do Senado atreveu-se a chamá-la de “meu bem” durante uma reunião. Ela respondeu com um olhar fulminante: “Não sou seu bem. Sou a senadora Fernández.”
Peronista de tendência progressista, criou fama como voz crítica no interior do Partido Justicialista, então comandado pelo presidente neoconservador Carlos Menem. E acabou se afastando da bancada peronista no Senado com as palavras: “Isto aqui não é um quartel, e não sou a soldado Fernández.”
Os jornalistas gostavam dela; era uma fonte amistosa, embora com tendência a dar respostas que eram antes discursos do que informações concretas. Se por alguma razão não gostava da pergunta que lhe faziam, revelava um lado inusitado ao entrevistador. Foi o que aconteceu uma vez comigo (Graciela); ela me deu uma resposta áspera e acrescentou, com um olhar frio: “Como vai Gabriel (Pasquini, meu marido e parceiro de trabalho)? Estamos sempre conversando. Diga a ele para me procurar.”
No geral, porém, a imprensa adorava Cristina. Ela dava a impressão de estar isolada e não dispor de poder algum. Mas era uma avaliação enganosa: ao longo da década de 90, seu marido, Néstor, governou a província de Santa Cruz, bem ao sul no mapa, abaixo da Patagônia onde venta e faz frio. Néstor também não poupava Menem de críticas, mas sua atitude era muito mais orientada pelo pragmatismo – conseguiu fazer ótimos acordos com o governo federal, obtendo para sua província, em troca de apoio, uma parte substancial dos rendimentos dos impostos sobre o petróleo. Imensamente popular em Santa Cruz, a segunda província menos populosa da Argentina – com menos de 1% dos seus habitantes –, Néstor era praticamente desconhecido no resto do país.
Cristina vinha de uma família de classe média de La Plata, cidade universitária a cerca de uma hora de Buenos Aires. Néstor morou lá em seus tempos de estudante. Quando se conheceram, ambos eram militantes da ala esquerda da juventude peronista, grupo que mantinha ligações com o movimento guerrilheiro então ativo na Argentina. Com o começo da última ditadura (1976–83), estabeleceram-se em Santa Cruz, onde ganharam bastante dinheiro em operações imobiliárias.
Entre muitas propriedades, Néstor e Cristina eram donos de um elegante apartamento na Recoleta, bairro exclusivo de classe alta em Buenos Aires. Ela mantinha o apartamento sempre decorado com flores, servia café e chocolates de boa qualidade. Em 1999 e 2000, nós quatro frequentávamos o mesmo café, o Opera, na plaza Vicente López, que tinha uma parede inteira dedicada a Jorge Luis Borges, símbolo da literatura (e do antiperonismo) nacional. Naqueles tempos, Cristina e Néstor nos pareciam idênticos a tantos outros casais daquelas redondezas.
Néstor era um homem com ar desleixado, fisicamente pouco atraente, que aparentava usar sempre paletós dois números acima do seu tamanho. Um livro simpático a Cristina publicado em 2011 (La Presidenta, de Sandra Russo) a retrata implorando a Néstor, sem sucesso, que comprasse um sapato diferente dos mocassins démodés que ele sempre usava. Se alguém dissesse nessa época que eles iriam se transformar no casal mais poderoso da história argentina desde Perón e Evita, ouviriam-se risadas como resposta. Cristina? Talvez. Mas Néstor?
Veio a crise de dezembro de 2001. Até então, o governo da Argentina fazia o possível para procrastinar seus problemas, obtendo empréstimos gigantescos junto aos bancos internacionais e mantendo a moeda local – o peso – conversível em dólar a uma taxa de um por um. Mas o sistema foi à bancarrota, toda a poupança pessoal dos argentinos foi congelada nos bancos, e uma megadesvalorização da moeda pôs fim à fantasia da paridade entre peso e dólar. Da noite para o dia, milhões de argentinos despencaram da classe média para a pobreza.
Houve revoltas, 39 mortes e cinco presidentes se sucederam em dez dias. Multidões marchavam pelas ruas exigindo a renúncia de todos os políticos. Os protestos deram cabo de toda uma geração de lideranças políticas, mas não produziram nenhum líder alternativo. O último partido a se manter de pé, o peronista, passou em revista o que restava de seu terceiro escalão e propôs aos eleitores o nome de Néstor Kirchner. Esperavam que ele pudesse frustrar os planos de retorno de Menem, que seriam ruinosos para o partido, pois uma considerável maioria social considerava o ex-presidente culpado pela crise. Em janeiro de 2003, três meses antes das eleições presidenciais, só 8% dos eleitores tinham uma imagem positiva do candidato.
Kirchner precisava tornar-se conhecido. Quando finalmente ocupou a ribalta, um outro lado acabou emergindo. Eu (Graciela) fui a Santa Cruz para fazer um perfil do casal Kirchner. Cristina me recebeu na residência do governador, em Río Gallegos, um chalé em que viviam desde 1991. Tomamos um café na ampla sala de visitas. Ela usava a grossa camada habitual de maquiagem e vestia uma elegante jaqueta de couro vinho com calças pretas. Dessa vez, estava na defensiva, até hostil. Sabia que eu tinha conversado com os líderes oposicionistas locais e com vários críticos do marido, e ficara contrariada com isso. Referiu-se ironicamente a um certo político como “seu amigo” (o que ele não era). Defendeu vigorosamente a administração de Néstor de todas as críticas. Eu disse que havia muitas acusações, e indícios substanciais de um governo autoritário, semelhante ao exercido em outras províncias mais conservadoras da Argentina: o sistema judiciário, a imprensa e a oposição eram manipulados e controlados. Não, aquilo era um absurdo que ela não podia aceitar: uma “sociedade cosmopolita” como a de Santa Cruz, afirmou ela, “não é fácil de manipular”.
Kirchner perdeu o primeiro turno para Menem em 27 de abril de 2003 por dois pontos percentuais (24 a 22%). No entanto, sem meios de vencer o segundo turno, quando a maioria dos outros eleitores haveria de se reunir contra ele, Menem retirou sua candidatura. E assim Néstor, o candidato improvável, tornou-se presidente, e Cristina, a primeira-dama.
CARLA BRUNI
Cristina desincumbiu-se do papel – embora de maneira um tanto inesperada. Estendeu o comprimento dos cabelos com apliques, usava casacos apertados e cinturões largos para acentuar a cintura delicada, exibia bolsas Louis Vuitton e só aparecia calçando sapatos de salto agulha muito alto. Aos 50 anos, ainda era atraente. E isso se transformou num tema de discussão nacional. “Os segredos da elegância de Cristina Kirchner”, apregoava La Nación em setembro de 2007. “Os 100 vestidos de Cristina Kirchner” foi a manchete do jornal Perfil em abril de 2008. Se, como legisladora, ela lembrava Hillary, como primeira-dama estava mais para Carla Bruni. O que teria provocado essa extraordinária transformação? Era uma pergunta que desafiava os políticos, os jornalistas e o público. Mas a resposta não era fácil de se obter. Não mais.
O casal Kirchner decidiu governar no isolamento. Como era o caso de outros governantes latino-americanos, como Hugo Chávez na Venezuela, Rafael Correa no Equador ou Evo Morales na Bolívia, estavam convencidos de que os líderes democráticos precisavam recuperar seu peso na negociação com as forças econômicas que atuaram com tamanha liberdade na década de 90. Como eles, o casal Kirchner percebia a mídia como a voz de interesses econômicos poderosos, ou como empresas dotadas de uma agenda própria, e não como sentinelas da democracia. De maneira que decidiram confrontá-la abertamente – ou simplesmente evitá-la. “Que a ditadura da mídia chegue ao fim, de modo que a primavera democrática possa florescer”, disse Néstor numa reunião de cientistas políticos em agosto de 2010.
Ainda hoje, quase uma década depois de sua chegada ao poder, um porta-voz dos Kirchner que pediu anonimato explicou que ninguém iria responder nossas perguntas para este texto. “O kirchnerismo não conversa com a imprensa estrangeira”, afirmou a fonte. Mas os jornalistas locais tampouco tiveram muito sucesso. Durante seu governo, de 2003 a 2007, Néstor Kirchner não deu uma única entrevista coletiva; depois que assumiu a presidência, em 2007, Cristina só concedeu cinco, segundo Andrés D’Alessandro, diretor do Foro de Periodismo Argentino.
O casal Kirchner também desdenhava de outros políticos, mesmo os do seu próprio partido, o que nem sequer tentava disfarçar. Era, em boa medida, sua maneira de fazer as coisas, mas também um modo de cortejar a vontade popular – afinal, multidões enfurecidas tinham tentado linchar qualquer político em que conseguissem pôr as mãos durante a crise de 2001 a 2002. E assim os Kirchner se distanciaram de sua própria equipe: deixaram de realizar reuniões de gabinete, desestimulavam sempre o trabalho conjunto. Todos os assessores (e assessoras) do presidente deviam reportar-se, em primeiro lugar e principalmente, ao presidente – ou à primeira-dama. O debate e a deliberação ficaram assim reduzidos a discussões entre marido e mulher.
Uma única pessoa era autorizada a testemunhar esses debates – e ocasionalmente a participar deles. Alberto Fernández, principal organizador da campanha de Kirchner, tornou-se, depois da vitória sobre Menem, chefe de seu gabinete. “Eles eram casados, e conversavam sobre tudo”, disse-nos Fernández faz pouco tempo (ultimamente, ele se transformou em crítico atuante da condução política de Cristina). “Às vezes era a opinião dela que prevalecia, às vezes era a dele.”
Segundo Fernández, a transformação de Cristina foi resultado da divisão de papéis entre o casal: ela rebaixou seu perfil de líder política para não ofuscar o marido. “Cristina era muito mais conhecida que Néstor quando ele chegou ao poder”, disse Fernández. “E ela recuou. Mas não perdeu seu poder de tomar decisões.”
No entanto, pagou o preço. Enquanto Néstor conservava sua aparência desleixada, calçando seus indefectíveis mocassins, um homem que nunca havia viajado ao exterior, nem tinha a intenção de fazê-lo, um presidente que se descrevia como “um homem comum em circunstâncias extraordinárias”, Cristina era subestimada, considerada frívola e distante.
Por outro lado, o governo de Néstor foi muito bem-sucedido. O PIB argentino cresceu a uma taxa em torno de 9% ao ano, a pobreza caiu de 57,5% para 20% e a taxa de desemprego diminuiu 54%. Mais de mil oficiais da época da ditadura, muitos dos quais envolvidos em horrendos atos de tortura durante a chamada guerra suja, foram levados a julgamento.
Em 2007, ao final de seu primeiro mandato, Néstor era extremamente popular. Tornara-se o chefe inconteste do movimento peronista, sem rival dentro ou fora de seu partido. Todos esperavam que se candidatasse à reeleição.
Mas, em vez disso, o partido decidiu lançar a candidatura de… Cristina.
LA PASIONARIA
“Sua campanha presidencial foi atípica. A situação era atípica. Cristina fez várias viagens internacionais – Berlim, Paris, Brasília… Reuniu-se com importantes líderes mundiais. Mas quase nunca falava sobre a política local”, diz Fabián Perechodnik, presidente da Poliarquía Consultores, importante empresa de consultoria de comunicação e instituto de pesquisa argentino.
Cristina quase nunca recebia a imprensa. Não precisava fazer campanha.
Em 28 de outubro de 2007, venceu as eleições no primeiro turno, com 45% dos votos; nenhum outro candidato passou de 23%. (Na Argentina, não há segundo turno se o primeiro colocado no pleito conquista pelo menos 40% dos votos e fica no mínimo 10 pontos percentuais à frente dos demais.) Mas uma fratura social tornou-se aparente: a classe média urbana decidiu lhe virar as costas.
Durante os 100 primeiros dias de seu governo, Cristina manteve o mesmo ministério do marido e praticamente não alterou nenhuma das suas diretrizes políticas. Ainda era vista como a primeira-dama, mais preocupada com sua imagem do que com o destino do país, enquanto Néstor era quem efetivamente governava, a partir de um escritório particular. A imprensa falava de sua rotina diária leve, e acentuava o contraste entre ela e a hiperatividade política do marido.
Quando Cristina anunciou sua primeira medida importante, a criação de uma tarifa flutuante para o imposto sobre as exportações de soja, houve uma revolta. Em pouco tempo, dezenas de milhares de pessoas protestavam nas ruas, caminhões bloqueavam estradas federais e piquetes de trabalhadores se formaram em toda parte, gritando palavras de ordem que mandavam Cristina “ir trabalhar”. Como nos tempos de Evita e de Perón, havia duas facções irreconciliáveis: a favor ou contra o casal Kirchner. Num país em que ninguém se furta de falar a respeito de nada, era impossível conversar sobre política entre amigos ou em família sem dar início a uma verdadeira guerra.
As mulheres, em particular, e especialmente as mulheres de classe média e classe média alta, rejeitavam tudo que tinha a ver com Cristina: a maneira como ela falava e se vestia, até mesmo sua forma de gesticular. “Não aguento o jeito de ela pegar nos microfones”, disse-nos certa vez uma das muitas mulheres que detestavam Cristina.
“Era nesse período que ela sempre falava do Salón Blanco (do palácio presidencial), usando um tom de professora primária, reclamando de todos, deslocando constantemente os microfones com as duas mãos”, conta Perechodnik. “Ela perdeu vinte pontos de popularidade em seis meses: caiu de 56% para 36%. As pessoas estavam percebendo que era uma pessoa diferente do que parecia na campanha.”
O próprio governo corria perigo, mas o casal Kirchner se recusava a ceder. Sua única concessão foi remeter a decisão sobre o aumento das taxas de exportação – inicialmente um decreto presidencial – ao Congresso, para que fosse transformado em lei. A votação decisiva foi apertada. O vice-presidente Julio Cobos foi acionado para superar qualquer impasse no Senado. (Segundo a Constituição argentina, o vice-presidente do país também preside o Senado, mas só pode participar das votações em caso de empate.) E, no meio da noite, desenrolou-se uma das cenas mais dramáticas da história moderna da Argentina: Cobos deu seu voto de Minerva… contra seu próprio governo.
Néstor fumegava de ódio e decidiu que seria o fim. Imaginava que, se Cristina deixasse o governo, desencadearia uma crise, e dali a um ano, dois no máximo, o país inteiro viria pedir-lhes que voltassem ao poder. Segundo uma testemunha direta que nos pediu anonimato, Cristina mostrou-se inflexível: “Não.” Eles precisavam ficar, ela nunca renunciaria. Os dois se desentenderam e, pela primeira vez, o casal – ou seja, o governo – ficou dividido: havia duas estratégias, dois campos, dois esquemas e dois combates opostos. Nesse momento crucial, os presidentes Lula, do Brasil, e Hugo Chávez, da Venezuela, além de líderes locais, intercederam em favor de Cristina. Ela saiu vencedora.
Mas o governo sofreu danos consideráveis. Cristina tinha caído a uma taxa de aprovação de apenas 20%, contra 53% de reprovação (segundo as pesquisas da Poliarquía). O partido perdeu as eleições do meio do mandato, em 2009, nas quais o próprio Néstor concorreu a uma cadeira no Congresso e perdeu, em pleno baluarte peronista da província de Buenos Aires. O jogo da sucessão começava, com os líderes da oposição tentando se superar uns aos outros ao proclamar sua divergência integral e irreconciliável com o casal Kirchner e seu governo.
Longe de se intimidar, o casal Kirchner dobrou a aposta. “Depois da eleição, Néstor disse: ‘Estávamos errados, as pessoas querem mais; fomos moderados demais até agora’”, lembra um assessor próximo da Presidência. “Olhamos para ele como se estivesse louco.” Mas não estava. O casal Kirchner se lançou no encalço de quem percebia como inimigos e os combateu um a um. Promoveu mudanças radicais na lei de propriedade dos meios de comunicação, que tinha como alvo o maior conglomerado de mídia do país (o Grupo Clarín, ativo na oposição), e fez aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo (que teve o efeito suplementar não incidental de minar o poder de influência da Igreja Católica, inimiga encarniçada do casal Kirchner).
Cristina passou por mais uma transformação. Agora era uma líder radicalizada, sempre cercada pelas Abuelas e Madres de Plaza de Mayo – as avós e mães dos desaparecidos da ditadura –, sempre na ofensiva contra inimigos políticos. Ela tem um talento natural para a oratória e adotava um tom quase professoral. “O imenso poder desse grupo de comunicação”, disse, no auge da guerra contra o Grupo Clarín, “que chantageia políticos, juízes e empresários. Trata-se de um poder quase mafioso.” O confronto com o Clarín se tornou a principal de suas batalhas. O Clarín havia sido durante quatro anos um dos principais aliados do casal Kirchner, mas diferenças políticas levaram à ruptura entre eles. O governo reagiu cancelando negócios milionários do grupo, entre eles a exclusividade da transmissão de jogos de futebol e o controle da produção de papel para os jornais, e ainda conseguiu no Congresso a aprovação de uma lei obrigando o Clarín a se desfazer de mais de duzentas concessões de tevê aberta e a cabo, de onde vêm suas maiores receitas. E essa é uma disputa ainda em andamento.
Num certo sentido, a estratégia dos Kirchner deu certo. “Depois da derrota nas eleições de 2009, o governo tomou a iniciativa e as pessoas perceberam que tinha o que declarar, mantendo-se sempre no ataque”, diz Analía del Franco, consultora política próxima ao governo. Sua vitória conseguiu efetivamente dividir a oposição, que terminou fragmentada em pequenos grupos sem liderança aparente.
Mesmo assim, o casal Kirchner ainda precisava conquistar seus desafetos, os insatisfeitos e até mesmo uma parte dos mais irredutíveis opositores de Cristina – noutras palavras, a maioria. Malgrado todos os esforços, e apesar da superação dos problemas econômicos de 2009 (a economia mal cresceu nesse ano, mas tornou a se recuperar em 2010), a taxa de aprovação de Cristina só aumentou um pouco – e ainda era inferior a 40%, segundo a Poliarquía. Logo começaram as especulações de que Néstor planejava tornar-se sucessor da esposa. O próprio casal Kirchner zombava do suspense. “Será”, perguntava Néstor, “um pinguim macho ou um pinguim fêmea?” (Tanto ele como Cristina, tendo vindo de uma região gelada do sul da Patagônia, referiam-se a si próprios como “pinguins”.)
Para além dos gestos mais teatrais, Néstor tinha uma tarefa imensa pela frente. Desdobrou-se em atividades, participando até mesmo de reuniões simultâneas, muitas vezes deslocando-se de uma sala a outra – numa ocasião, segundo testemunhas, foram oito ao mesmo tempo.
Era demais para um homem só. Ele conseguiu manter a pressão sobre os rivais, mas não pôde preservar sua saúde já precária. Em 27 de outubro de 2010, Néstor Kirchner morreu de um ataque cardíaco repentino, em sua casa de El Calafate, na província de Santa Cruz.
A presidente estava com ele.
CRISTINA
Uma Cristina devastada fez transportar o caixão do marido para o palácio presidencial, onde um velório aberto ao público foi organizado. Por 22 horas, uma multidão de enlutados (entre 100 e 400 mil, de acordo com diferentes estimativas) esteve na sede do governo para se despedir de Néstor e manifestar solidariedade a Cristina. Por doze horas a fio ela ficou em pé ao lado do caixão, de vestido preto e com grandes óculos escuros no rosto, chorando ocasionalmente, mas quase sempre composta, recebendo as condolências tanto de chefes de Estado quanto de cidadãos comuns.
A certa altura, um homem entrou entoando a Ave Maria com o virtuosismo de um cantor de ópera. Fazia o V da vitória do peronismo. Quando acabou de cantar, gritou: “Hasta la victoria siempre, Néstor”, um lema de esquerda dos anos 70. Genuinamente emocionada, Cristina deu-lhe um abraço demorado.
A presidente recebeu uma torrente instantânea de solidariedade e apoio do público. Sua popularidade teve significativo aumento; suas taxas de reprovação desabaram.
E então ela tornou a mudar. Agora viúva, usava invariavelmente preto e soluçava em público. Falava de seu finado marido como um mártir que dera a vida pelo país. Começou a referir-se a Néstor simplesmente como “ele”, jamais dizendo seu nome (e os jornais, inclusive, assumiram o costume de escrever “Ele”, com maiúscula). Mandou construir um mausoléu para ele em Santa Cruz. Em 10 de dezembro de 2011, quando tomou posse, recitou o juramento de costume, “Eu, Cristina Fernández de Kirchner, juro por Deus, pela Pátria e pelos Santos Evangelhos exercer com lealdade e patriotismo o papel de Presidente da Nação (…) e, se deixar de fazê-lo, que Deus, a Pátria…”, e acrescentou: “… e Ele… venham a me julgar.”
Esse tipo de retórica encaixava-se perfeitamente na tradição peronista. “Gostamos mais de Perón que da nossa própria vida”, disse Evita em maio de 1952 – dois meses antes de morrer. Mas dessa vez quem morreu foi o líder, o que conferiu às invocações de Cristina uma qualidade quase sobrenatural. Ela conjurou seu espírito enquanto falava ao país em rede nacional. Certa vez, uma janela se partiu atrás dela enquanto discursava. “Vento sul…”, disse ela. “Ele deve ter entrado.”
Não era só para consumo do público. Mandou pendurar o retrato de Néstor numa das paredes do palácio. Numa tarde de julho passado, seguindo para uma reunião importante durante uma crise política, caminhava à frente de um grupo de autoridades ansiosas – o ministro da Economia não tirava os olhos do chão, segundo uma das testemunhas – quando parou de repente em frente ao retrato. Tocou-o com uma das mãos e a trouxe aos lábios, beijando três vezes os próprios dedos, como fazem os frequentadores de igrejas católicas com as imagens dos santos. Em seguida, retomou a caminhada.
E embora esse tipo de ligação com a memória do marido tenha levado pelo menos um crítico a questionar publicamente sua saúde mental, ajudou-a a encontrar a persona pública que vem se esforçando para apresentar, em diferentes aspectos, ao seu país.
“De 2007 a 2010, a ligação emocional entre Cristina e o povo era zero”, diz Analía del Franco. “Depois do falecimento de Néstor, ela se transformou numa pessoa intensamente ligada ao povo.”
“Ela nem precisou pedir votos”, completou Perechodnik. E teve uma vitória esmagadora na reeleição: 54% dos votos, 37 pontos percentuais acima do adversário mais próximo. Em novembro de 2011, tinha chegado ao pico de 70% de popularidade, segundo várias pesquisas nacionais.
CRISTINISMO
Em 2012, no auge da popularidade e sem rival substantivo à vista, Cristina ainda assim precisa enfrentar dois desafios incontornáveis. Primeiro, os problemas econômicos que nem ela e nem Néstor enfrentaram na década passada: uma inflação constante – 24% em 2011 e uma taxa anual de 25% até julho de 2012, segundo estimativas do setor privado (as estimativas do próprio governo há muito são consideradas suspeitas) –, aliada a um crescimento econômico insuficiente (3,5% projetados para 2012, contra 9% em 2011). E ainda um problema legal e político: este é o último mandato que ela pode exercer.
Segundo a Constituição da Argentina, um presidente só pode exercer dois mandatos consecutivos. E, segundo os costumes políticos do país, qualquer presidente que inicia seu segundo mandato é considerado, por definição, esvaziado de seus poderes.
“Na Argentina, a impossibilidade de reeleição é vivida como um trauma. Sabem por quê? Porque achamos que cada presidente que assume o poder irá refundar novamente a nação”, diz Alberto Fernández, o ex-chefe de gabinete. “Nosso sistema político baseia-se em mostrar que você está no poder para limpar uma herança maldita (de um governo anterior), o que obriga você a fazer todo o possível para conservar seu poder até o último minuto.”
Néstor e Cristina achavam que podiam contornar esse problema revezando-se no poder. “Néstor disse que eles (o sistema) queriam que ele concorresse de novo em 2007 para ser um presidente fraco”, lembra um assessor político kirchnerista. E Cristina hoje enfrenta o que fizeram tanto para evitar naquela ocasião.
Não confiaram em mais ninguém para governar a Argentina, nem mesmo em outros membros de seu próprio partido. Em sua posse mais recente, Cristina pediu à filha que lhe pusesse a faixa presidencial – só para que a tarefa não coubesse a Cobos, o vice-presidente rotulado de “traidor” devido ao voto referente às novas taxas de exportação.
A esta altura, Cristina deveria estar indicando um sucessor, mas não é o que está fazendo.
“A sucessão está totalmente em aberto”, diz a consultora política Analía del Franco. “Nem os partidos de oposição são capazes de apresentar alguma alternativa.”
“Não é verdade que a sucessão esteja em aberto”, diz Perechodnik. “O sucessor natural, tanto para a opinião pública quanto para o sistema político, é Daniel Scioli.”
Governador de Buenos Aires – a província mais populosa da Argentina –, Scioli é um membro-chave do kirchnerismo, mas também um potencial rival dos Kirchner. Era um popular piloto de corridas de lancha, casado com uma modelo, que perdeu o braço direito, amputado por uma hélice, durante uma corrida nos anos 90. Foi introduzido na política por Menem, e indicado para a Vice-Presidência de Néstor Kirchner como uma concessão ao partido. Scioli é visto como um político de inclinações mais à direita, e mais próximo ao sistema que o casal Kirchner tinha o intuito de desafiar. No início do mandato de Néstor, Scioli participou de reuniões não oficiais e prestou declarações que contradiziam as diretrizes do governo. Néstor o admoestou em público e declarou em particular, segundo um de seus assessores políticos: “Vou tirar tudo dele. Até mesmo seu mordomo, nem que seja para o bem do pobre mordomo.”
Scioli cedeu. Em 2005, o casal Kirchner mandou que disputasse o governo da província de Buenos Aires, e ele venceu. Apesar de suas diferenças, precisavam uns dos outros. A partir de 2003, segundo Perechodnik, Scioli e o casal Kirchner eram as únicas figuras com popularidade suficiente para concorrer à Presidência.
Em julho passado, Scioli anunciou finalmente que estava disposto a suceder Cristina. Ela reagiu cortando a ajuda federal à província e deixando Scioli sem condições de pagar seus funcionários. Manteve Scioli sufocado por vários dias, até ele tornar a ceder. E só então liberou os recursos.
Em vez de pensar num sucessor, Cristina está se redefinindo – mais uma vez. Tomou algumas medidas radicais – a nacionalização da YPF, a empresa petrolífera argentina, vendida a uma empresa particular por Menem em 1999, e a restrição do acesso a moedas estrangeiras. Mas, acima de tudo, ela vem falando. E muito.
“Está sempre na tevê falando com eles, dizendo diretamente o que sente e o que está fazendo. E isso funciona”, diz Analía.
Criou o hábito de se dirigir a grandes plateias formadas por autoridades do governo, empresários e partidários. Reúne esses grupos num majestoso salão do palácio do governo e se reporta a eles de um pódio, como se falasse em uma reunião de amigos. “Você me viu de camisola”, disse ela a um jovem líder do partido num desses encontros. “Olhem só esse careca”, riu ela, apontando para uma foto do ministro da Economia da Espanha na primeira página do jornal El País. E tudo isso ocorre em público: na verdade, é ao país que ela se dirige nessas reuniões, sempre transmitidas em rede nacional – por lei, todos os canais de tevê da Argentina são obrigados a transmitir os discursos presidenciais.
“Desde que assumiu em 2011, Cristina desenvolveu um novo estilo pessoal”, diz Perechodnik. “Afirma estar cumprindo o legado d’Ele, mas a verdade é que desfez conexões e desistiu de políticas que tinham grande importância desde 2003. Aquilo era o kirchnerismo. Isto é o cristinismo.”
Além disso, ela criou uma nova organização política, La Cámpora, formalmente liderada por seu filho Máximo, que funciona para manter pressão sobre os homens de seu finado marido que ainda participam do governo, como um deles admitiu. As principais figuras de La Cámpora ocupam algumas posições-chave no governo, e falam publicamente em nome deste.
Mas nenhum deles tem estatura suficiente para concorrer à Presidência. Assim, dentro do cristinismo, dois projetos emergiram para o futuro próximo. Um é promover uma reforma constitucional para permitir que la presidenta concorra a um terceiro mandato.
Vistoso e preservado aos 72 anos, Eugenio Zaffaroni, juiz da Corte Suprema argentina, é um intelectual sofisticado que conta com um amplo respeito. Veste terno preto, camisa preta e uma gravata prateada, à moda de um chefão da máfia. É uma figura-chave na promoção da reforma constitucional, mas quando lhe perguntamos se ela incluirá algum texto autorizando um terceiro mandato, ele nos lançou um olhar penetrante e devolveu a pergunta: “Terceiro mandato? Já temos mártires demais na Argentina. Por que produzir mais um? Querem matar a presidente? Ninguém deveria pedir esse tipo de esforço a um ser humano.”
Afirma que vem defendendo uma reforma a fim de introduzir o parlamentarismo de tipo europeu na Argentina. “O presidencialismo tem uma natureza perversa. O vencedor fica com tudo, e os outros tentam impedi-lo de fazer o que seja. Essa personalização é um traço monárquico. O parlamentarismo não impede as crises, mas impede que a crise se torne sistêmica.”
Na verdade, uma nova reeleição “não é viável”, diz ele. As pesquisas mostram que 60% dos argentinos são contrários a uma reforma constitucional que permita um terceiro mandato, diz Perechodnik. “Reeleição, na Argentina, é um palavrão”, conclui Zaffaroni.
Ainda assim, ele admite: “Todo mundo está perguntando o que irá acontecer em 2015. A decisão cabe à presidente, e não sei o que ela planeja. Ninguém (no governo) deixa escapar nada. E não posso perguntar à presidente o que ela está pensando.”
Para reformar a Constituição, o governo precisa de dois terços dos votos tanto na Câmara como no Senado. Leopoldo Moreau, do partido Radical, foi procurado pelo governo alguns meses atrás.
“Venho promovendo a ideia de um sistema parlamentar, especialmente depois da crise de 2001”, diz Moreau. “Fui procurado e disse o que penso: não acho que uma reforma seja prioritária nos dias de hoje, porque o debate ficou contaminado pela ideia da reeleição.”
Ooutro plano dentro do cristinismo parece ainda menos plausível. Há quem especule que Cristina pretende promover o filho Máximo como sucessor. Segundo um consultor político que pediu o anonimato, Máximo vem sendo preparado por marqueteiros para uma eventual candidatura. Mas as pesquisas mostram que, a esta altura, ele não teria qualquer chance: a maioria dos argentinos ainda não sabe quem é. O mesmo se aplica a Alicia Kirchner, cunhada de Cristina e integrante de seu ministério, cuja possível candidatura também já foi objeto de especulação.
“O governo está usando tanto a carta da reforma quanto a da candidatura de Máximo para tentar se cacifar em relação ao futuro”, diz Perechodnik. Um assessor político da presidente concorda: sua “opinião pessoal” é de que, no frigir dos ovos, nem a reforma nem a candidatura de Máximo irão funcionar. “Tendo em vista 2015, pode-se imaginar uma figura diferente, alguém próximo, com quem possamos negociar alguma continuidade de pessoas e ideias. Alguém como o governador da província do Chaco, Jorge Capitanich.”
Mas Capitanich sempre foi leal ao kirchnerismo, assim como foi leal aos líderes anteriores do partido. Sua candidatura, empurrada goela abaixo do peronismo, pode levar Scioli a romper e concorrer como candidato independente.
Para Cristina, tudo isso pode significar que sua jornada política, compartilhada com Néstor por quase toda a vida dele, talvez chegue ao fim daqui a três anos. De uma vez por todas.
E que no dia em que Ele morreu, entre todas as coisas que ela perdeu e chorou, sua maior perda talvez tenha sido a do futuro.
Graciela Mochkofsky, jornalista argentina, é autora de Pecado Original: Clarín, los Kirchner y la Lucha por el Poder, pela Planeta
Gabriel Pasquini é jornalista e escritor argentino radicado em Nova York.
Leia Mais