A mudança de vida: o ex-ministro da Saúde José Serra dizia que os maiores críticos do SUS são os brasileiros que não usam o sistema. Quem usa sabe a diferença real que pode fazer CRÉDITO: VANIA MIGNONE_2024
O complexo: parte I_antes e depois
Da caridade alheia ao maior serviço público de saúde do mundo
Rodrigo de Oliveira Andrade | Edição 217, Outubro 2024
Esta é a primeira reportagem de uma série que a piauí publicará nas próximas edições. Resultado do trabalho de uma equipe formada por doze profissionais, que traça um amplo panorama sobre uma das maiores conquistas da democracia brasileira: o Sistema Único de Saúde.
Em 1938, a cidade de Belterra, no Pará, inaugurou seu primeiro hospital. Tinha uma estrutura moderna com esquadrias, quarenta leitos, farmácia, aparelhos de raio X e sala de cirurgia. A 300 km dali, havia um hospital ainda maior, na cidade de Fordlândia, com 125 leitos, duas alas de dormitórios, sala de cirurgia, radiologia e laboratórios farmacêutico e bacteriológico. Belterra e Fordlândia eram um caso raro. No fim dos anos 1930, além dessas duas cidades, apenas Santarém e Belém, capital de um estado do tamanho de duas Franças, dispunham de instituições com serviços de saúde.
Belterra e Fordlândia foram criadas para abrigar os trabalhadores no projeto do industrial americano Henry Ford (1863-1947) para produzir borracha natural em larga escala na Amazônia e quebrar o monopólio da Grã-Bretanha e seus seringais no Sudeste da Ásia. Além dos hospitais, as cidades ganharam casas, lojas, escolas, cinema, campo de golfe. Em Fordlândia, fundada quase dez anos antes de Belterra, o fracasso foi rápido, com os fungos atacando as seringueiras e devorando a plantação. Em Belterra, o plano deu certo, até que, no fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu a borracha sintética, mais barata que a natural, e a cidade perdeu sua fonte de prosperidade.
Em 1945, Henry Ford desistiu do empreendimento e devolveu as concessões de terras ao governo brasileiro. Belterra, então com 7 mil habitantes, virou distrito de Santarém. Cinco anos mais tarde, os últimos funcionários americanos da companhia de Ford deixaram a cidade. Ficaram apenas os trabalhadores brasileiros, a maioria remanescentes de quilombos e nordestinos que haviam fugido da seca. O Hospital Henry Ford, que nos bons tempos chegara a ter até cem leitos, continuou funcionando a duras penas, sob a administração do Ministério da Agricultura. Até que, em 1992, sucateado pela falta de recursos, foi desativado. Era a única instituição de saúde que atendia o distrito.
Os brasileiros de Belterra ficaram alguns anos sem qualquer tipo de atendimento médico. Quando precisavam de algum cuidado, tinham de se deslocar até Santarém. O servidor público José Cleo Moreira dos Santos, de 60 anos, recorda-se bem das dificuldades da época. “A gente não ia no médico porque não tinha médico aqui, só alguns funcionários do antigo hospital que ficaram na cidade depois que ele fechou”, conta. “Alguns até nos atendiam em suas casas, mas se fosse algo mais grave ou urgente, tinha que dar um jeito de ir até Santarém. O problema é que a estrada era muito ruim.” Naquele tempo, o percurso pela rodovia BR-163 podia durar até duas horas.
Em 1995, Belterra emancipou-se de Santarém. Dois anos depois, conseguiu construir seu primeiro posto de saúde com recursos de uma iniciativa relativamente recente: a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS. O posto funcionava em uma casinha ao lado da Igreja Matriz Santo Antônio de Pádua. Dois técnicos de enfermagem faziam procedimentos simples, como medir pressão arterial, fazer curativo, cuidar de resfriados e pequenas lesões. Belterra tinha 10 mil habitantes.
Em 2000, a cidade voltou a ter uma unidade hospitalar, o Hospital Municipal Dr. Ivaldo Moraes, com 24 leitos. É um edifício de alvenaria, pintado de verde e branco – como quase tudo na cidade –, com portas e janelas de madeira, uma ala de ambulatório e outra de emergência. Passou anos funcionando como unidade de saúde mista, oferecendo serviços de atenção básica e de média complexidade, conta a enfermeira Edjane Medeiros Alves, de 51 anos, atual secretária de Saúde do município. Sem médicos plantonistas, o atendimento no hospital muitas vezes era feito por telefone, com os enfermeiros seguindo as orientações que recebiam dos médicos do outro lado da linha.
Hoje, com seus 22 mil habitantes, Belterra tem nove postos de saúde – as chamadas Unidades Básicas de Saúde (UBS), que contam com dez enfermeiros e nove médicos generalistas, seis deles vinculados ao Programa Mais Médicos. Eles integram as chamadas equipes de saúde da família, compostas ainda por técnicos de enfermagem e saúde bucal, e agentes comunitários de saúde. Somente em fevereiro deste ano, o Hospital Dr. Ivaldo Moraes passou a contar com cinco médicos plantonistas – até então, a cidade dispunha de quatro médicos nas áreas de cardiologia, ginecologia, obstetrícia e ortopedia, mas que iam ao hospital apenas uma vez por semana.
A diferença entre o abandono do início da década de 1990 e a situação de hoje é o SUS.
O Brasil adotou diferentes modelos de sistemas de saúde ao longo do século XX. Na década de 1920, havia as caixas de aposentadorias e pensões, as chamadas CAPS, que reuniam trabalhadores por empresas e eram financiadas por patrões e empregados. Havia uma CAP para os empregados de um banco, outra CAP para os de outro banco, e assim por diante. Na década seguinte, surgiram os Institutos de Aposentadorias e Pensões, os IAPS, que passaram a reunir trabalhadores por categoria profissional. Havia o IAP dos bancários, o IAP dos comerciários, e sucessivamente. Com uma novidade: além de patrões e empregados, o governo também passou a financiar o sistema, encarregando-se de sua administração.
Essa estrutura voltou a ser alterada na ditadura militar (1964-85), que unificou todos os IAPS em um único órgão: o Instituto Nacional de Previdência Social, o antigo INPS. Com isso, todos os trabalhadores – professores, bancários, operários – passaram a ter o mesmo sistema de previdência e saúde. Nos anos 1970, o governo acabou com o INPS e criou o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência (Inamps), introduzindo uma mudança inédita: pela primeira vez, separou as ações de previdência e as ações de saúde.
Todos esses modelos, porém, tinham uma característica comum: atendiam só os trabalhadores formais e seus dependentes, o que à época correspondia a menos de 30% da população brasileira. Quem não tivesse carteira assinada, ou não fosse dependente de um trabalhador formal, tinha apenas duas opções: pagava pelos serviços de saúde ou recorria às instituições de caridade, como as Santas Casas.
A Constituição de 1988, já encerrado o ciclo de governos militares, mudou tudo isso ao criar o Sistema Único de Saúde, uma das maiores conquistas da democracia brasileira. Com o SUS, o atendimento de saúde no Brasil passou a ser um dever do Estado, gratuito e aberto a todos, empregados ou desempregados, sem distinção de qualquer natureza. É financiado pelo governo, pelas empresas e pelos cidadãos que pagam seus impostos. Para os brasileiros mais abastados, o SUS não fez diferença alguma. Para os assalariados com carteira assinada, fez alguma diferença, na medida em que lhes oferece serviços que seus planos de saúde não cobrem. Para os pobres e desempregados, fez toda a diferença.
Foram anos até chegar lá. As coisas começaram a ganhar impulso nos anos 1960, com a criação dos Departamentos de Medicina Preventiva (DMP) nas faculdades de medicina. A ideia era articular e incorporar as relações entre medicina, saúde e sociedade na formação dos médicos, ampliando sua perspectiva da saúde pública. Na época, já se entendia que diferenças de renda, infraestrutura urbana, gênero e raça, além da própria forma como a saúde pública se organizava, eram fatores decisivos para determinar quem ficaria doente, quem morreria, onde as doenças apareceriam e quem arcaria com as consequências econômicas.
“É dentro dos DMP que se delimitará teoricamente o campo da saúde coletiva e onde começará a se estruturar o pensamento reformista que dará origem a uma nova agenda da saúde no Brasil”, diz o médico sanitarista Paulo Buss, ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “O ativismo político dos agentes envolvidos, de oposição ao regime militar, também foi fundamental para a compreensão de uma visão de ‘saúde como dever do Estado’, conceito que mais tarde seria incorporado à estrutura legal do SUS.”
Paulo Buss conheceu de perto a saúde no Brasil antes do SUS, trabalhando em dois hospitais, ambos no Rio Grande do Sul, quando era estudante na década de 1970. Naquele tempo, quem não tinha dinheiro para pagar por atendimento era chamado de “indigente”. Buss conta: “Os indigentes ficavam nas enfermarias, separados da ala dos que podiam pagar, onde eram atendidos por um médico e mais quatro ou cinco estudantes, que faziam, um por um, os mesmos exames”, conta. Os indigentes eram usados no treinamento de jovens médicos. “Havia essa noção de que eles tinham que retribuir o atendimento gratuito que estavam recebendo e que seus corpos valiam menos do que os de quem podia pagar.”
Na década de 1970, durante o chamado “milagre econômico” da ditadura, o país era um grande celeiro de doenças. As péssimas condições de vida nas áreas rurais e nas regiões metropolitanas resultavam em altas taxas de mortalidade.
Entre 1972 e 1976, mais de 1,4 milhão de crianças morreram no Brasil – o equivalente à população de Belo Horizonte à época – por causas evitáveis, associadas à desnutrição e à falta de saneamento, como difteria, coqueluche, tétano, poliomielite e diarreia. Com uma população de 90 milhões de pessoas, 10 milhões padeciam da doença de Chagas, presente em 1 238 dos 3 951 municípios brasileiros em 1977. A esquistossomose infectava 12 milhões, do Pará ao Paraná. Em 47 cidades alagoanas, até 90% da população convivia com a doença. De cinco em cinco minutos, surgia um caso novo. De meia em meia hora, um brasileiro morria de tuberculose. “Muitos chegavam na emergência das Santas Casas ou hospitais universitários com a doença em estágio muito avançado”, lembra o médico Luiz Antonio Santini, que atendia indigentes no Hospital Antônio Pedro, ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, no início dos anos 1970.
As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas, organizadas sobretudo em períodos eleitorais. “Lembro de ver crianças com pneumonia decorrente de infecção pelo vírus do sarampo e de ter operado jovens com obstrução intestinal causada por lombriga, problemas que poderiam ter sido evitados, ou controlados na atenção básica, se ela existisse”, diz Santini. “Trabalhávamos no limite, com leitos extras instalados nos corredores para atender pessoas que não tinham para onde ir, o que dificultava as atividades de ensino e pesquisa, vocações dos hospitais universitários.”
Essa era a realidade da maioria, mas não a de todos. Também na década de 1970, a assistência médica financiada pelo governo militar teve sua maior expansão de leitos, cobertura e volume de recursos. Mas a prioridade era investir em uma estrutura privada de assistência à saúde, com a previdência financiando a construção, ampliação e reforma de hospitais privados, e mantendo convênios para atender os trabalhadores formais – um quadro que virou fonte incontrolável de corrupção. Entre 1964 e 1974, o número de hospitais particulares saltou de 944 para 2 121 e houve forte expansão de faculdades privadas de medicina, cujos cursos desconheciam a realidade sanitária dos mais pobres.
No final do governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-74), a ditadura apresentou suas primeiras fissuras e a realidade começou a aparecer. “Com a rearticulação dos movimentos sociais, tornaram-se cada vez mais frequentes denúncias sobre a situação caótica da saúde pública e dos serviços previdenciários de atenção médica”, lembra o médico Jairnilson Silva Paim, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que participou do movimento sanitarista. Formado sobretudo por médicos e intelectuais de formação comunista, socialista e liberal, e originado nos DMP das faculdades de medicina, o movimento sanitário influenciou o mundo acadêmico e liderou a reformulação da saúde no Brasil.
Na década de 1980, cresceu a contestação ao sistema de saúde governamental, com propostas para universalizar a saúde pública. “Em meio ao processo de redemocratização do país, lideranças do movimento sanitário passam a assumir postos-chave nas instituições responsáveis pela política de saúde”, conta Buss. Como expressão dessa nova realidade, convocou-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde.
Realizada em março de 1986, em Brasília, a conferência foi um sucesso. Reuniu mais de 4 mil pessoas e lançou os princípios da reforma sanitária, subsidiando as discussões sobre um novo sistema de saúde. “A conferência permitiu que a saúde chegasse à Assembleia Nacional Constituinte com uma proposta legitimada e completa do ponto de vista do ideário do movimento sanitário”, diz Jairnilson Paim. Em 1988, o SUS nasceu ambicioso. Nenhum congênere do mundo se propõe a atender uma população tão grande sem impor qualquer restrição ou exigir qualquer coparticipação nas despesas. Foi o começo da mudança radical.
Hoje, quase quatro décadas depois, o SUS é o sistema de saúde com o maior público potencial do planeta – a totalidade da população brasileira, ou 212 milhões de pessoas. Supera o National Health Service (NHS), criado em 1946, que atende o total da população do Reino Unido, 67 milhões de pessoas – e serviu de inspiração para a criação do SUS. Embora 51 milhões de brasileiros tenham planos de saúde pagos por eles mesmos ou principalmente por seus empregadores, muitos recorrem ao SUS para determinados procedimentos, principalmente quando são muito caros ou não têm cobertura dos convênios – como os transplantes.
Com o tempo, o SUS tornou-se uma estrutura gigantesca, que inclui a maior parte dos partos, das consultas e dos serviços de emergência realizados no país. Só no ano passado o sistema fez 400 milhões de consultas médicas, 27,1 milhões de consultas odontológicas e 12,4 milhões de internações, segundo números do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O SUS cuida das pessoas antes do nascimento e depois da morte, com suas ações de vigilância sanitária no manejo dos corpos.
Um dos primeiros sucessos do SUS aconteceu na vacinação pública. Criado ainda no início dos anos 1970 depois de uma campanha que erradicou a varíola, o Programa Nacional de Imunizações teve um começo tímido, mas, em meados da década, já passou a administrar rotineiramente um conjunto de vacinas contra a tuberculose, o sarampo, a pólio, a difteria, o tétano e a coqueluche. Com a implantação do SUS, porém, o programa ganhou um enorme impulso, com campanhas de imunização em massa que transformaram o Brasil em exemplo internacional. No curso dos anos, o país erradicou o vírus selvagem da rubéola e da pólio, que provocava cerca de 10 mil casos por ano na década de 1980. Apesar do descrédito irresponsável promovido pelo governo de Jair Bolsonaro contra as vacinas, o programa conseguiu manter sua credibilidade. Hoje, fornece 20 imunizantes, todos de graça, para crianças, jovens, adultos e idosos.
Outro exemplo de sucesso se deu nos anos 1990. O SUS tornou-se pioneiro no mundo em garantir tratamento gratuito e acessível aos infectados pelo vírus HIV, fazendo com que a Aids, até então considerada uma “sentença de morte”, passasse a ser uma doença controlável no Brasil. Aprovada em 1999, a Lei dos Genéricos incentivou a produção de fármacos no país, ampliou o acesso a tratamentos e reduziu o custo dos medicamentos. O SUS também se tornou referência em transplantes de órgãos. O sistema responde atualmente por 88% das cirurgias. Entre janeiro e setembro do ano passado, foram 6,7 mil – o melhor resultado em dez anos.
Os especialistas são unânimes em considerar que a pandemia de Covid teria sido uma tragédia ainda maior – foram 700 mil mortos – sem o SUS. Durante a emergência sanitária, o então presidente Jair Bolsonaro fez sua campanha contra a vacina e o Ministério da Saúde teve quatro ministros. Um deles, o general Eduardo Pazuello, em fins de 2020 deu uma declaração inesquecível: “Eu nem sabia o que era o SUS.” Mesmo assim, o sistema conseguiu exercer um papel fundamental. Ergueu dezenas de hospitais de campanha, abriu 3,2 mil vagas em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) em hospitais públicos e coordenou 3,6 mil equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Emergência (Samu) para socorrer e transportar doentes.
Para além das vacinas, dos remédios, dos transplantes e da pandemia, o exemplo mais notável do SUS talvez seja uma iniciativa pouco conhecida pelos brasileiros que têm planos de saúde: a Estratégia Saúde da Família, considerada a porta de entrada do SUS. Criada em 1994 como Programa Saúde da Família, e reformulada em 2006, a estratégia oferece atenção básica à população mais vulnerável que vive nas periferias dos grandes centros e nas áreas rurais e remotas do Brasil. Conta hoje com pouco mais de 61 mil equipes, compostas por médicos generalistas, enfermeiros, dentistas, auxiliares técnicos e agentes comunitários – estes últimos responsáveis por cadastrar a população, inclusive aquelas em situação de rua, e lhes dar orientações básicas de saúde, encaminhando quem necessita de algum atendimento médico às UBS. “Eles são os principais responsáveis por fazer com que o SUS chegue tão longe no Brasil”, diz a pesquisadora Patty Fidelis de Almeida, da UFBA, que estuda a organização da atenção básica em municípios rurais e remotos do país.
A Estratégia Saúde da Família, hoje considerada mundialmente um exemplo de política pública em saúde, foi inspirada em uma experiência do Ceará, que, no fim dos anos 1980, no governo de Tasso Jereissati, criou um programa de saúde preventiva para empregar uma população faminta, atingida por uma seca devastadora, e ao mesmo tempo combater os indicadores alarmantes de saúde infantil no estado. A experiência foi um sucesso. O programa contratou moradores de cada cidade e os transformou em agentes de saúde, que viajavam de bicicleta, canoa e até no lombo de burros para atender os mais vulneráveis. Em pouco mais de cinco anos, a mortalidade infantil no Ceará caiu de 102 para 65 por mil habitantes, ao passo que a cobertura vacinal saltou de 25% para 90% da população. Premiada pela Unicef, a iniciativa chamou a atenção do país, sendo mais tarde adotada pelo SUS.
Atualmente, a Estratégia Saúde da Família cobre praticamente todo o território nacional. Estima-se que esteja presente em 79,6% dos municípios brasileiros e alcance até 140 milhões de pessoas. Com essa dimensão formidável, o programa teve uma participação importante na redução da mortalidade de crianças com menos de 1 ano. Entre 1994 e 2018, a taxa de crianças mortas antes de completarem um ano caiu de 43 para 12,4 por grupo de mil nascimentos, segundo um estudo que mapeou o impacto do programa com base em dezenas de artigos científicos. Entre 2001 e 2016, reduziu a taxa de hospitalizações evitáveis de 120 para 66 em cada 10 mil habitantes.
A expansão da Estratégia Saúde da Família contou com a colaboração do Programa Mais Médicos, criado no governo de Dilma Rousseff com o objetivo de levar profissionais para os rincões do país que nunca tiveram um médico. A proposta teve forte oposição de parte da classe médica, mas gerou enormes benefícios à população mais vulnerável. Com o Mais Médicos, a Estratégia Saúde da Família pôde criar quase 9 mil novas equipes entre 2013 e 2018, quando passou de 43 mil. A concentração de médicos nas capitais e zonas urbanas, porém, persiste.
Segundo o estudo Demografia médica no Brasil 2023, o contingente de médicos dobrou nas últimas duas décadas. Passou de 219 896 em 2000 para 562 206 em 2023. Mas não há uma boa distribuição. São Paulo, por exemplo, tem 3,5 médicos para cada grupo de mil habitantes, índice recomendado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No estado do Pará, essa razão é de 1,1, a menor do país. Em Belterra, em que pese a chegada dos seis médicos nas UBS e dos cinco novos plantonistas do hospital, a proporção ainda é baixa: apenas 0,8 para cada mil habitantes.
Apesar dos avanços evidentes, o SUS ainda luta para se consolidar. Com o tempo, o sistema se cristalizou como esteio dos mais pobres, enquanto as classes média e alta recorrem a planos privados para garantir assistência especializada de maior qualidade ou de acesso mais rápido. A principal dificuldade tem sido garantir financiamento regular e em volume suficiente. “O sistema nunca foi visto como prioridade nos gastos públicos”, afirma Fabiola Sulpino Vieira, pesquisadora do Ipea.
A escassez de recursos tem um impacto enorme nos serviços oferecidos pelo sistema, sobretudo nos municípios mais pobres. Ainda hoje, Belterra sofre para manter seus estoques de medicamentos nos seus nove postos de saúde. “O Ministério da Saúde nos repassa apenas 8 mil reais por mês para a compra de fármacos. Não é suficiente para atender nossa demanda”, diz Edjane Medeiros Alves, a secretária da Saúde. “Tentamos complementar com recursos próprios, mas, como a arrecadação aqui é baixa, nem sempre conseguimos.”
Outro desafio nacional é garantir que a população tenha acesso a todos os níveis de complexidade no atendimento por meio de redes regionais de saúde. No desenho original, o SUS teria essas ramificações, mas só em 2011, mais de duas décadas depois de sua criação, o território nacional foi dividido. Criaram-se 430 regiões de saúde – em 2019, subiram para 450. Cada região abriga até 600 mil habitantes. O objetivo é coordenar as ações de saúde, de modo a evitar sobreposição e garantir atendimento primário e especializado para todos. “Na prática, o que acontece é que a maioria das regiões de saúde é pouco estruturada e não tem os serviços que deveria ter”, diz Arthur Aguillar, diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). “Isso faz com que muitas pessoas tenham de esperar longos períodos para fazer exames e cirurgias, ou precisem ser transferidas para hospitais nas capitais.”
A médica Ligia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz, avalia que a regionalização está em processo, mas avança lentamente. “A principal dificuldade está no arranjo da governança regional entre municípios.” Segundo ela, secretários municipais de Saúde se reúnem para organizar as ações das redes, mas há muitos impasses. “Não existem governos regionais. As competências para as ações de saúde são municipais”, diz a pesquisadora. “É preciso que o estado tenha a responsabilidade de fazer um SUS estadual, de base regional, em cooperação com os municípios.”
Em que pese as dificuldades, o SUS é uma joia. José Serra, ministro de Saúde durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, costumava dizer que os brasileiros que mais reclamam do SUS são aqueles que nunca o usam. Os pobres, dizia, certamente não estão plenamente satisfeitos, já que lidam com obstáculos notórios, mas são os mais gratos ao sistema. A visão distinta tem uma razão óbvia: quem não usa o SUS só fica sabendo de sua existência nas notícias sobre longas filas, falta de medicamento, esperas intermináveis por cirurgias. Mas quem usa sabe a diferença real que ele pode fazer.
O enfermeiro Raoni Monteiro Licínio, de 36 anos, trabalhou por quatro anos na emergência do Hospital Dr. Ivaldo Moraes, em Belterra, na época em que não havia médico plantonista. Ele lembra com aflição desse período. “Tínhamos que fazer procedimentos sem conhecimento ou experiência. Era muito estressante. Qualquer erro podia piorar a situação de saúde do paciente”, diz. Ele não se esquece do caso de um homem de uns 60 anos que se envolvera em um acidente com uma moto. “Ele chegou andando ao hospital, com escoriações e dor de cabeça. Liguei para o médico, que me orientou a fazer exames básicos e medicá-lo com analgésico e antibiótico para evitar contaminação nas feridas.” Enquanto era medicado, o paciente teve um mal súbito e morreu. A família alegou que ele tinha alergia a um dos remédios. “Mas eu me lembro de ter perguntado se ele tinha alguma alergia e ele disse que não”, conta Licínio. (Mais tarde, uma perícia constatou que a morte decorreu de traumas do acidente.)
Hoje, a situação melhorou, mas ainda é precária. Quando um paciente de Belterra precisa fazer um exame mais complexo, como ressonância magnética ou tomografia, é encaminhado ao Hospital Regional do Baixo Amazonas, em Santarém, mantido pelo sus. Em uma cidade pobre, com renda familiar média de meio salário mínimo, o custo de viajar até a cidade vizinha pode ser proibitivo. A prefeitura não tem transporte. A ambulância – que leva cerca de uma hora até Santarém – presta um bom serviço, mas nem sempre resolve. “Já tive pacientes grávidas que precisaram de uma cesariana de emergência e acabaram perdendo o bebê no caminho”, lamenta a médica Aline Karin Mello, de 44 anos, que trabalha em uma UBS localizada na principal via de Belterra.
De tempos em tempos, há um alívio, com a chegada da Zoé, uma ONG de São Paulo que visita Belterra com dezenas de médicos. Eles já chegaram a atender 350 pessoas em uma única expedição e a fazer até quatrocentos exames – entre eles, ultrassonografias, colonoscopias e endoscopias – e realizam algumas cirurgias, como retirada de vesícula e hérnias. Os voluntários começaram a visitar Belterra em 2020, pouco antes da pandemia, e já estiveram na cidade 28 vezes. “A ideia é que os pacientes atendidos em expedições passadas e tiveram diagnóstico confirmado possam ser tratados nas expedições seguintes”, diz o cirurgião paulistano Marcelo Averbach, de 65 anos, um dos fundadores da ONG.
Hoje, Belterra tem 56 agentes de saúde, que batem de porta em porta para coletar informações sobre a saúde das famílias. A técnica de enfermagem Elielza Oliveira, de 50 anos, está no ofício há quase duas décadas. “Visito dez casas por dia, até 175 por mês”, diz, orgulhosa. “Vejo se alguém ficou doente, se estão tomando os remédios corretamente, se precisam passar com o médico.” O contato frequente com alguns moradores a transformou quase que em membro da família – “a Eli”, como a chamam. “Eles têm meu WhatsApp e me ligam sempre que ocorre algum problema de saúde.”
A piauí acompanhou uma de suas visitas no dia 19 de junho. Oliveira chegou às onze da manhã na casa da cozinheira Marlene Souza Costa, de 49 anos. Junto com o marido, a sogra, um filho e um cunhado, ela preparava as marmitas que venderiam naquele dia mais tarde. Oliveira perguntou sobre os exames ginecológicos da cozinheira e informou a seu marido que a cirurgia no ombro ainda não tinha sido marcada – ele a aguarda desde o ano passado, quando sofreu um acidente de moto. Despediu-se e continuou sua ronda, perguntando nas casas se havia algum doente e se alguém precisava de atendimento médico na UBS. E nunca esqueceu de orientar as famílias para reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados.
O maior desafio é garantir acesso à saúde para as populações rurais, que moram em áreas mais remotas, muito distantes dos centros de referência. Na Amazônia, os agentes de saúde e os médicos precisam de uma dose extra de boa vontade para atravessar as estradas de terra, muitas delas intransitáveis na temporada de chuvas, e para se embrenhar em matas. Diz a agente Oliveira: “Tenho colegas que vão tão longe em suas visitas que, quando chegam na última casa do dia, já está tarde para voltar. E acabam dormindo por lá.”
A médica Aline Karin Mello, da UBS da avenida principal de Belterra, também percorre muita estrada no seu trabalho. Formada pela Universidade Cristã da Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra, ela chegou a Belterra em 2018 pelo Mais Médicos e ainda hoje atende uma vez por semana na UBS da comunidade São Jorge, pequeno vilarejo a 64 km do Centro da cidade. Ia uma vez por semana, bem cedo, em uma viagem de carro de uma hora pela BR-163. Atendia uns cinquenta pacientes. “Alguns depois voltavam comigo para Belterra para atendimento no hospital municipal. Já tivemos inclusive um caso em que o paciente faleceu dentro do carro, enquanto estava a caminho”, diz ela. “É uma situação dramática, mas seria muito pior sem o SUS.”
De fato, com o SUS, Belterra reduziu fortemente a taxa de mortalidade infantil – hoje em 11,4 para cada mil nascimentos –, controlou os casos de hanseníase, quase zerou os de dengue e virou exemplo nacional em imunização infantil: vacina mais de 90% de suas crianças. Se tivessem nascido na década de 1970, quando não havia o SUS, algumas dezenas dessas crianças já teriam morrido.
A série O complexo conta com o apoio da Umane, uma associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas sobre saúde pública.