A pupila fica minúscula, a pressão sobe, a transpiração é copiosa. O doente tenta dormir, mas só chega a um leve estupor. Depois de meses, uma exaustão semelhante ao coma e a morte FOTO: ALEC SOTH_MAGNUM PHOTOS_2002
Dormir, nunca mais
A misteriosa moléstia que há séculos mata de insônia membros de uma família veneziana, quando eles chegam aos 50 anos
D.T. Max | Edição 6, Março 2007
Em 1791, numa pequena cidade perto de Veneza, nasceu um homem chamado Giacomo. Seus familiares tinham, em geral, um porte físico impressionante. Eram fortes, de ombros largos (e ainda hoje são assim). Um dia, no outono de 1836, aos 45 anos de idade, Giacomo adoeceu misteriosamente: parou de dormir, começou a sofrer de demência. Terminou confinado à cama, sem dormir nunca, em meio a tormentos. Depois, morreu.
Giacomo teve três filhos que sobreviveram à infância. Um deles, por sua vez, teve seis filhos. Ao longo do século e meio seguinte, seus descendentes prosperaram. Alguns se tornaram médicos eminentes e homens de negócios. Um deles possuía 130 apartamentos em Veneza, inclusive um palazzo no Grande Canal. Enquanto a família enriquecia, aumentava o índice macabro de mortes prematuras de seus integrantes. Os livros de registro paroquiais trazem, ao longo das décadas, anotações curiosas a respeito da causa mortis deles, tais como “epilepsia e febre” e “febre gástrica nervosa”. Mais tarde, os atestados de óbito indicavam meningite, doença de Economo, demência pré-senil, leucoencefalite, encefalopatia alcoólica e icto. A causa da morte era, na verdade, sempre a mesma: insônia familiar fatal, IFF, uma doença genética, formalmente identificada apenas em 1986. Ela é rara e, durante algum tempo, os únicos portadores conhecidos da doença, em todo o planeta, eram os descendentes de Giacomo. (Desde então, foram descobertas mais trinta famílias.)
A marcha dos sintomas da insônia familiar fatal é implacável. No caso típico, quando a pessoa está na casa dos 50 anos, de repente passa uma noite inteira sem conseguir dormir. Tenta compensar com um cochilo à tarde, mas não consegue. As pupilas ficam minúsculas. Os homens se tornam impotentes. A pressão sangüínea e o pulso se elevam, a transpiração é copiosa, o corpo todo se acelera. Nos meses seguintes, de modo incessante e desesperador, a pessoa tenta dormir. Às vezes, fecha os olhos, mas só consegue cair num leve estupor, que não proporciona nenhum repouso efetivo. Dentro do cérebro, o sinal de trânsito que controla a vigília está sempre com a luz verde acesa.
Segue-se então um declínio progressivo. A capacidade de se equilibrar, de andar e de falar desaparece gradualmente. O mais trágico, talvez, é que o raciocínio permanece intacto. A vítima costuma saber com precisão o que lhe está acontecendo. Consegue falar sobre o seu martírio e, no início da doença, até escreve seus pensamentos. No fim, perde a coordenação. Quando o corpo pára de trabalhar, só a expressão desesperada nos olhos mostra que a pessoa sabe o que está acontecendo. Na fase final, depois de vários meses, o doente cai num estado de exaustão semelhante ao coma e, misericordiosamente, morre.
Ao menos trinta descendentes de Giacomo morreram dessa maneira no último século – treze depois de 1973, sete na década passada. Entre os vivos, mais 25, pelo menos, são portadores do gene causador da doença. Na região do Vêneto, na Itália, onde ainda reside a maior parte da família, difundiu-se há tempos a história de uma família amaldiçoada por uma enfermidade estranha. Os aldeões falam do assunto pelas costas da família. Embora as mulheres em geral sejam lindas, e a família seja culta e próspera, é difícil casar. Os membros da família não conseguem fazer seguro de vida. “Tentei fazer um seguro, outro dia”, disse Elisabetta Roiter, tataraneta de Giacomo, “e depois que preenchi a ficha, a funcionária perguntou: ‘E em qual estágio da doença da família a senhora se encontra?'”
Em meados dos anos 80, os jornais italianos descobriram a história da família de Elisabetta. Afiaram suas garras. Ali estava uma família riquíssima com um problema – a insônia – tão exótico para os italianos que não existe em sua língua uma palavra fácil para denominá-lo. A imprensa se interessou pelo assunto quase ao mesmo tempo em que surgiram as primeiras notícias a respeito de um novo flagelo europeu – o mal da vaca louca. As crianças da vizinhança passeavam diante da casa de Elisabetta e soltavam mugidos. A família passou por vários transtornos. A própria Elisabetta sofreu um ataque psicossomático de insônia. À sua maneira cruel, no entanto, as crianças intuíram algo importante. O palpite de que o mal da vaca louca e a insônia familiar fatal estavam de algum modo ligados se mostrou correto. A descoberta ampliou de forma significativa a compreensão da doença.
Cento e sessenta anos depois da morte de Giacomo, o rei da Suécia apertou a mão de Stanley B. Prusiner, professor da Universidade da Califórnia em San Francisco, e lhe entregou o Prêmio Nobel de Medicina de 1997. É raro que um pesquisador ganhe o prêmio sozinho, mas o trabalho de Prusiner era excepcional. Ele conseguiu provar que, em certas condições, as proteínas do corpo podem se deformar e se voltar contra ele. Elas podem levar o corpo a devorar a si mesmo. Prusiner deu a essas proteínas anômalas um nome exótico, príons, e demonstrou que elas causam uma classe rara de enfermidades cerebrais degenerativas: a doença de Creutzfeldt-Jakob, por exemplo, e, mais importante, a encefalopatia espongiforme bovina, a EEB. Conhecida como a doença da vaca louca, quando ataca os seres humanos a EEB se transforma numa variante da doença de Creutzfeldt-Jakob. Na época do prêmio, a doença havia matado duas dúzias de pessoas na Inglaterra, e uma na França. Depois, matou outras oitenta pessoas e se espalhou pelos rebanhos da Europa. Pode vir a matar mais centenas de pessoas, possivelmente milhares. Ninguém sabe ao certo, já que a doença tem um período de incubação bastante longo. A doença da vaca louca fez o que uma família veneziana jamais conseguiria: botou Prusiner e seus príons nas manchetes.
Como ele demonstrou que proteínas deformadas podiam causar doenças? A experiência de Prusiner foi simples. Ele coletou amostras do cérebro de familiares de Elisabetta mortos de insônia familiar fatal. Em seguida, inoculou o material em camundongos geneticamente modificados, a fim de produzir príons humanos. Os camundongos tiveram IFF. Realizou a mesma experiência com matéria cerebral de vítimas da doença de Creutzfeldt-Jakob – e obteve resultados paralelos. Depois, matou os camundongos e inoculou os príons deles em outros camundongos e, de novo, obteve as duas doenças. A conclusão era clara: príons malignos podem causar a doença, assim como os vírus, os parasitas ou as bactérias.
A partir da experiência de Prusiner, a insônia familiar fatal não foi mais encarada como uma doença esdrúxula. Ela está no cruzamento de duas áreas novas e empolgantes da investigação científica: a privação do sono e a pesquisa dos príons. Em duas décadas, os descendentes de Giacomo deixaram de ser vistos como párias e se tornaram uma família cujo material genético é procurado por cientistas do mundo inteiro. Todos dentre eles que adoeceram foram estudados, minuciosamente, por pesquisadores que investigavam os fundamentos do sono.
Várias perguntas acerca da insônia fatal continuam em aberto. Apesar de a grande maioria das vítimas adoecer na meia-idade, por que alguns poucos são atacados na adolescência? Por que alguns têm resultado positivo no exame do gene e nunca adoecem? O estudo de tais irregularidades poderia sugerir um caminho para bloquear a disseminação generalizada de doenças de príons em seres humanos, ou para tratá-los antes que se tornem sintomáticos? Muitos pesquisadores, inclusive Prusiner, crêem que sim – uma garantia de que a família de Elisabetta receberá cada vez mais atenções nos próximos anos.
Elisabetta e seu marido, Ignazio, têm uma filha de catorze anos. Vivem a poucos quilômetros de onde morava Giacomo, o ancestral de Elisabetta. A filha deles é alta, tem ombros largos e cabelos castanhos. Quando fui visitá-los, ela não sabia por que eu estava ali. A família não queria contar a ela. A jovem ainda não estava “pronta para receber a informação”, como disse a mãe. Concentrada em seu próprio mundo, como qualquer adolescente, ela nem sonhava com a doença. Quando a conversa se desviou para o mal da vaca louca, Elisabetta e Ignazio ficaram tensos, mas a filha, muito à vontade, disse que adorava carne bovina e que não ia parar de comer carne.
A mãe é diferente. Elisabetta é pequena e enérgica. É como se o gene de Giacomo tivesse pulado uma geração. Ela tem 50 anos, cabelos louros acastanhados e bolsas embaixo dos olhos. Treme e chora com freqüência. Não dirige, anda de bicicleta pela pequena vila com seus canais abandonados. É a única italiana que conheci que não gosta de ser abraçada e beijada. Seu marido, Ignazio, que tem o rosto suave e o bigode curvo de personagem de opereta, pegou um livro e me mostrou uma reprodução do famoso desenho de Albrecht Dürer que representa a melancolia. “Esta é Elisabetta”, disse ele.
Elisabetta perdeu o avô, duas tias e um tio, levados pela doença. Embora a probabilidade de ter a insônia fatal seja de um para 33 milhões, na família dela a proporção é de um para dois. “Ela perde um parente a cada três anos”, disse Ignazio. Elisabetta liderou a família no esforço para enfrentar a doença. Não foi nada fácil. Elisabetta foi criada num lar rigidamente religioso, no qual a doença era vista como uma espécie de sina. Ela era uma jovem empolgada e inteligente, e se tornou enfermeira.
Certo dia, em 1971, sua mãe foi submetida a uma cirurgia simples, no mesmo hospital veneziano onde Pietro, o avô de Elisabetta, havia morrido, em 1944. Um médico foi buscar o velho prontuário de Pietro. Dizia que ele tinha morrido de encefalite. “A família se limitava a aceitar aquelas opiniões”, lembrou Elisabetta. “E tínhamos nossos próprios mitos. Minha avó, por exemplo, chamava-a de ‘doença da exaustão’, porque acreditava que a pessoa adoecia depois de um grande estresse.” Para Elisabetta, aquilo tinha jeito de ser uma recusa a encarar os fatos. Assim, resolveu examinar o prontuário do hospital. Seu avô foi uma figura central na família. Sob o regime de Mussolini, foi prefeito da cidade natal da família. Mas, em 1943, o governo fascista caiu, e os guerrilheiros da resistência enviaram a Pietro uma terrível ameaça de morte. Pouco depois, ele teve uma febre de 40 graus. Não conseguia dormir. Em poucos meses, foi sepultado no jazigo da família.
No dia em que Elisabetta leu o prontuário do avô, percebeu logo algo suspeito. Sob a rubrica “fluido espinhal”, vinha anotado: “claro como água numa fonte de pedras”. (A medicina italiana é cheia desses requintes elegantes.) Elisabetta tinha familiaridade com amostras de fluido espinhal e achou improvável o que leu. O fluido das vítimas de encefalite quase sempre apresenta uma contaminação pela doença. Contou o caso para a mãe e para a avó viúva. Disseram-lhe para não perder tempo com o passado. Elisabetta insistiu. Ignazio estudava para ser médico, e concordou em ajudá-la a investigar o mistério.
Anos depois, uma das tias de Elisabetta veio visitá-los. Tinha 48 anos e, pouco antes, entrara na menopausa. Parecia deprimida. Não conseguia dormir. Pediu um sedativo a Ignazio. Nada ajudava. A tia começou a se desesperar com sua insônia eterna. Passou a ter alucinações. Ignazio e Elisabetta levaram-na a um neurologista em Pádua, que, erradamente, diagnosticou demência. “A paciente compreende tudo”, disse Ignazio. “Sabe que está presa a uma exaustão perpétua, mas sua mente permanece lúcida.” A tia morreu pouco depois, com apenas 30 quilos. O hospital fez uma autópsia. “Ainda recordo como saíram da sala de cirurgia, as mãos cobertas de sangue, e disseram: ‘Bo‘”, contou Elisabetta. Bo, em italiano, significa “Não temos a menor idéia, não dá para entender.” Como causa da morte, um funcionário do hospital registrou: “encefalite de origem indeterminada”.
Cinco anos depois, em 1978, outra tia foi atacada pela doença. Também morreu depois de ser examinada em Pádua. Dessa vez, depois da autópsia, Ignazio guardou o cérebro. Retirou dele finas fatias, e levou-as, envoltas em parafina, para um famoso neurologista em Gênova, o doutor Johannes Wildi. Ignazio e Elisabetta logo receberam uma carta minuciosa. O doutor Wildi não sabia o que havia matado a tia de Elisabetta, mas notou que a deterioração do cérebro se assemelhava à doença de Creutzfeldt-Jakob. O médico se mostrou perplexo com uma série de pequeninas lesões no tálamo. O tálamo serve como uma estação de passagem para as informações que transitam entre o cérebro e o corpo. Sem isso, não se pode pensar de forma coerente nem manter o equilíbrio. Mas não se sabia que o tálamo tivesse qualquer ligação com a insônia. O doutor Wildi julgou que a descoberta era um acidente.
Em 1984, Silvano, tio de Elisabetta, veio visitá-los. Pouco antes, ficara sob a mira de armas durante um assalto a banco em Veneza. Tinha 53 anos. Seus olhos estavam pequenos como cabeças de alfinete, tinha o rosto chupado. Era óbvio o que havia de errado com ele.
Elisabetta ficou arrasada. Ela e Ignazio vinham evitando ter filhos. Mantinham-se à espera, observando se a mãe de Elisabetta adoecia. “Eu era uma espiã em minha própria casa”, recorda-se. “Ia ao quarto dela na ponta dos pés, para conferir se estava mesmo dormindo; mamãe ficava incomodada, começou a jogar os chinelos em mim.”
O tio Silvano tinha acabado de passar as férias com a mãe. Contou-lhes que suava tanto que ficava encabulado de dançar. Sempre fora um dançarino formidável, elegante, usava um lenço dobrado com a ponta de fora no bolso do paletó. Conquistador, agora estava impotente. Elisabetta, Ignazio e Silvano sabiam o que viria a seguir. Embora não pudessem provar, sabiam que o que estava matando a família era a insônia – a insônia não era apenas um dos elementos da bizarra moléstia familiar, mas o seu elemento crucial.
Resolveram consultar um especialista em distúrbios do sono. Em Bolonha, havia uma clínica dirigida por um professor chamado Elio Lugaresi. Ignazio telefonou para o médico. Poderia examinar o tio da sua esposa? Lugaresi pediu que a família viesse no dia seguinte. Professor popular na Universidade de Bolonha, ele é um homem bem-humorado, de maneiras simples. De certo modo, é essencialmente italiano: a única vez que o vi de fato aborrecido foi quando, depois de me levar a um restaurante caro, soube que eu não bebia vinho. É também ambicioso, e tem disposição para pensar fora dos parâmetros da medicina italiana.
Lugaresi se lembrava nitidamente da chegada de Silvano. Tinha boa aparência, ombros largos, “era um homem culto”, disse ele. Silvano recebeu um quarto com uma cama confortável. Um equipamento de vídeo foi ligado a fim de gravar seu comportamento, e sua cabeça foi coberta por sensores cerebrais.
A patologia cruel da IFF mexe com a imaginação, mesmo a dos cientistas. Um pesquisador de príons me contou que a família de Elisabetta trazia à sua memória os habitantes da cidade de Macondo, que não dormiam, congelados em seu “estado de lucidez alucinada”, no romance Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Já eu não parava de pensar nos contos de Edgar Allan Poe, em que a fronteira entre a consciência, o sono e a morte fica ameaçadoramente difusa. Em especial, o conto “Fatos do caso do senhor Valdemar”, em que um médico narra a história de um paciente que, embora sem sinais vitais, ainda é capaz de responder perguntas por meio de hipnose.
Tio Silvano foi internado na clínica de Lugaresi na primavera de 1984. Lugaresi me mostrou as fitas do seu declínio. As cenas causam desconforto. O caminho de Silvano segue inexoravelmente para baixo. Numa fita gravada em março, as pálpebras tremem sobre os pontinhos que são seus olhos. À semelhança de Valdemar, o “palpitar vítreo dos olhos cedeu lugar àquela expressão de um aflitivo exame interior, que não se vê jamais, senão nos casos de sonambulismo”. Durante os momentos bons, Silvano ainda consegue ler. Põe os óculos na ponta do nariz e tem um lenço dobrado com a ponta de fora no bolso do paletó do pijama. Marca num bloquinho os dias que passam. Há fitas dele à noite, penteando cuidadosamente o cabelo num estupor de alucinação, pensando que vai sair para uma festa. Uma vez, bateu continência como se fizesse parte da troca de guarda no Palácio de Buckingham.
Elisabetta recordava outros momentos semelhantes, como a vez em que ele ofereceu uma orquídea à rainha da Inglaterra. Durante os curtos períodos de lucidez, junto com a família, Silvano ria do que estava lhe acontecendo – brincava dizendo que o chapéu de sensores cerebrais na sua cabeça lhe dava o aspecto do papa – mas isso não encobria o seu terror. Após mais dois meses de doença, vemos na fita o seguinte: uivos no meio da noite, os braços e as pernas retorcidos em volta de si mesmos. Nos últimos dias de vida, ele jaz inerte, em uma nulidade contraída e esgotada. “O senhor está morto?”, pergunta o médico a Valdemar, no fim do conto de Poe. A resposta de Valdemar é de dar calafrios: “Pelo amor de Deus, rápido!… rápido!… faça-me dormir… senão, rápido!… acorde-me!… rápido!… eu lhe digo que estou morto!” Assim era Silvano.
Lugaresi tomou providências para que houvesse um patologista disponível 24 horas por dia. Com a morte, o cérebro de Silvano foi retirado em poucas horas, preservado em formol e depois embarcado para um laboratório de neuropatologia na Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, nos Estados Unidos, que era dirigido por Pierluigi Gambetti, um ex-aluno de Lugaresi. Gambetti cortou o cérebro em centenas de pedaços. Estranhamente, o tecido parecia saudável – exceto por uma série de minúsculas lesões em uma parte do tálamo. A descoberta intrigou Gambetti e Lugaresi. Por que o tálamo? Nenhum dos dois tinha uma resposta. Lugaresi precisava de mais informações – e mais cérebros.
Elisabetta e Ignazio iniciaram uma minuciosa história da família. Elisabetta ligou para os parentes a fim de perguntar se conheciam alguém que havia morrido em circunstâncias estranhas. Dados históricos foram desencavados em arquivos de igrejas em todo o Vêneto. Ignazio vasculhou diversos arquivos em busca do sobrenome da família. Descobriu parentes desconhecidos, inclusive um que morreu supostamente de “esquizofrenia”, em Gênova, cujo cérebro foi preservado por um médico que ficou intrigado. A busca das origens da doença deu a eles um propósito comum, um modo de fazer frente ao horror. Enquanto isso, a mãe de Elisabetta completou 65 anos, idade além da qual não se verificavam os ataques de IFF. Pouco depois, Elisabetta e Ignazio conceberam sua filha, que nasceu em 1986.
Houve então mais um lance trágico. Num telefonema feito por acaso, Ignazio soube que Teresa, a irmã de uma prima distante de Elisabetta, vinha se comportando de maneira estranha. Ela tinha 36 anos. Esbarrava em móveis e objetos quando caminhava pela casa, e suava. A irmã levou-a para a clínica em Bolonha. De todas as mortes que os médicos filmaram e presenciaram, a dela talvez tenha sido a mais triste. Mãe de dois filhos, em seus primeiros momentos na clínica, Teresa parece alegre, veste um suéter vermelho, tem o rosto suave e os lábios fartos. Mesmo alguns meses depois, quando sua cabeça pende para a frente, numa inútil tentativa de dormir, se um médico a toca de leve, Teresa logo fica alerta e sorri. Mas a doença é implacável. Varre para longe a maciez de suas bochechas. Seu rosto se transforma na paródia do semblante de um estudante que virou a noite em cima dos livros. Enormes círculos pretos se formam em volta dos olhos. A exemplo de outros membros da família, ela cai por fim num aparente coma de exaustão. O rosto se contrai continuadamente, e Teresa morre. Outros membros da família morreram.
Numa reunião na sala da casa dos Roiter, Elisabetta, Ignazio e os pesquisadores de Bolonha concordaram em denominar a doença de insônia familiar fatal. Enquanto isso, o laboratório de Gambetti começou a fazer progressos sensíveis na compreensão da doença. Separadamente, Gambetti e Lugaresi notaram algo chocante naquela doença. Nos diagramas em que ficou registrada a atividade cerebral de Teresa, Lugaresi viu picos abruptos, semelhantes aos que ocorrem em pacientes da doença de Creutzfeldt-Jakob. Gambetti, ao examinar o cérebro de Teresa nos Estados Unidos, notou que estava cheio de furinhos: o tecido ficara espongiforme. Os dois desconfiaram que não era uma infecção tradicional. Ambos tinham notícia da controvertida teoria de Prusiner a respeito dos príons. Será que ele estava certo e os príons eram a causa da IFF?
Em 1992, a equipe de pesquisadores de Gambetti conseguiu seqüenciar o material genético da família e apontar com exatidão a mutação que causa a insônia familiar fatal. Munidos dessa informação, puderam submeter a família a um exame. Elisabetta convenceu os familiares relutantes a participar. Metade dos cinqüenta parentes examinados tinha o gene letal.
Nessa ocasião, Gambetti ligou para Stanley Prusiner e perguntou se ele queria utilizar amostras do tecido cerebral da família. Prusiner tinha camundongos com o gene do príon humano, e Gambetti não. Sem isso, ele não podia provar que os príons causavam a IFF. Prusiner deu todo apoio a Gambetti. “Sem ele, não teríamos conseguido que a doença fosse reconhecida tão rapidamente”, disse Gambetti. Para Prusiner, foi uma inesperada mudança de rumo. Ele vinha tentando mostrar, havia mais de vinte anos, que uma certa classe de doenças era provocada por suas próprias proteínas malignas. Parecia contra-intuitivo, para dizer o mínimo. As proteínas não têm ácidos nucléicos e, assim, não têm meios de se reproduzir ou se replicar. Prusiner estava propondo que elas podiam se espalhar como uma infecção, se apossando de proteínas sadias e tornando-as letais.
Usando a matéria cerebral de Teresa, Prusiner realizou as suas experiências cruciais em 1996. Depois de conseguir provocar a IFF nos camundongos, ele estava apto, por fim, a confirmar sua teoria. Príons discrepantes causavam a doença. Prusiner havia encontrado o padrão básico de comprovação para um agente infeccioso. Um ano depois, ganharia o seu Prêmio Nobel.
Nem todos os cientistas estão convencidos da importância dos príons. Um pequeno grupo de biólogos acredita que, oculto nessas proteínas, encontra-se uma espécie de vírus lento, alguma outra coisa que penetra no tecido cerebral e deixa as pessoas doentes. Eles chamam a atenção para o fato de que ninguém foi capaz, num tubo de ensaio, de converter um príon humano normal num letal. O próprio Prusiner desconfia de que exista algum tipo de proteína auxiliar no processo, que denomina vagamente de “proteína X”. Mas existe um número crescente de indícios que respaldam a sua tese. Por exemplo, não há nunca o menor traço de infecção em quem morre de doenças de príon – nenhum inchaço, ou células sangüíneas brancas mortas, ou outros vestígios de inflamação. Os pacientes não são contagiosos. Ninguém na família de Elisabetta, por exemplo, infectou um vizinho, ou a esposa, ou o marido. Mas a razão principal para os príons continuarem dignos de crédito é que, simplesmente, não existe uma resposta melhor.
Para Elisabetta e sua família, o Nobel de Prusiner não mudou grande coisa. Eles continuam a morrer. Alguns começaram a se perguntar se faz sentido passar por todos esses transtornos – os exames de sangue, a publicidade, a discriminação. Alguns membros da família se perguntam se Ignazio e Elisabetta, cujo exame do gene deu negativo em 1993, estão apoiando as pesquisas por interesse próprio. Esses familiares não conseguiram descobrir se são portadores do gene da IFF. “Traga-nos notícias de Cleveland”, dizem eles, sempre.
Quando lhe contei isso, o professor Gambetti ficou penalizado. Ele é um homem alto, de costas curvadas e cabelo escuro, que começa a rarear no topo da cabeça. Seu laboratório em Case Western é o centro de vigilância dos Estados Unidos para as doenças de príon. Há um congelador, com uma placa de risco biológico na porta, cheio de pedaços de cérebro suspeitos de infecção. Outros congeladores no porão contêm mais centenas de amostras, inclusive os cérebros de membros da família de Elisabetta. Tanto quanto o cemitério rodeado por ciprestes perto da casa de Elisabetta, o laboratório é o verdadeiro túmulo do clã de Giacomo. Se houver uma pane elétrica, o telefone na casa de Gambetti tocará automaticamente. Na era do mal da vaca louca, o tesouro de cérebros de Gambetti, um dos maiores do mundo, tem um grande valor.
Durante minha visita ao laboratório de Gambetti, o telefone tocou. Pude ouvir só parte da conversa, mas foi assim: “Você tem um meio de mantê-lo congelado? Tem uma geladeira? Bem, veja se cabe no congelador, então. E gelo seco?” Desligou o telefone para falar com eloqüência sobre os benefícios científicos obtidos com o estudo dos cérebros da família de Elisabetta. Lamentou sinceramente a desgraça da família. Uma de suas equipes, contou-me ele, está trabalhando para obter uma vacina para a doença de Creutzfeldt-Jakob. Em mais uma descoberta interessante, a equipe mostrou que variantes do mesmo gene de proteína de príon pode produzir IFF e uma forma da doença de Creutzfeldt-Jakob.
Dei uma espiada no tálamo cicatrizado de Silvano sob o microscópio e, usando luvas e máscara, vi camundongos em que a equipe de Gambetti havia inoculado o gene humano da IFF. Se descobrirem um modo de começar e interromper o processo por meio do qual os príons convertem outros príons, não só vão curar a IFF e a doença de Creutzfeldt-Jakob, como talvez abram caminho para o tratamento do mal de Alzheimer.
Enquanto me mostrava o seu laboratório, Gambetti comentou que os pacientes com IFF também representam uma oportunidade notável para compreender a insônia comum. A função do sono é tema de um debate antigo. O sono existe para nos manter a salvo de acidentes durante uma parte do dia? Para processar conhecimentos recém-adquiridos? Para nos ajudar a esquecer informações inúteis? Para aprimorar as funções imunológicas? Será mesmo necessário? “Se o sono não serve a uma função absolutamente vital, trata-se do maior engano cometido pela evolução”, escreveu Allan Rechtschaffen, pesquisador do sono nos Estados Unidos. Como as fitas de vídeo dos parentes de Elisabetta deixam claro, as vítimas da IFF acumularam uma imensa dívida de sono – centenas de vezes maior do que os participantes das experiências de sono são capazes de alcançar.
Não podemos viver sem dormir. Ao mesmo tempo, aqueles resultados catastróficos são produzidos por danos cerebrais muito limitados – e quase exclusivamente no tálamo. Vastas áreas do cérebro permanecem intactas. Essa descoberta chocou os patologistas e os pesquisadores do sono, e abriu novas possibilidades para ajudar os insones normais. “Se eu fosse o diretor do Instituto Nacional de Saúde, investiria pesado na pesquisa da IFF”, disse William Dement, que criou a clínica de distúrbios do sono na Universidade Stanford. “Talvez se consiga achar a cura da insônia. No mínimo, conseguiríamos tornar as pílulas para dormir mais seguras e mais práticas. Não precisaríamos mais afetar bilhões de receptores da maneira como fazemos agora”, disse Dement, “para produzir o efeito desejado: um sono seguro e profundo.”
“Quando comecei esse trabalho”, disse Gambetti, “achava que o mal de Alzheimer era a pior doença que se podia ter. Mas ver uma pessoa amada se desintegrar diante de nossos olhos, e essa pessoa ainda por cima saber o que está acontecendo… agora acredito que até um acidente de carro seria menos cruel.”
Um dia antes de eu viajar para a Itália, outro primo de Elisabetta morreu. Ela e Ignazio cumpriram a jornada familiar para o cemitério rodeado por ciprestes. Quando os encontrei, ela estava ainda de preto. No dia seguinte, o filho da mais recente vítima me telefonou. No atestado de óbito do pai, ele pôs como causa da morte o mal de Alzheimer. Queria me explicar por que fez isso, e também por que não queria saber se ele tinha o gene da insônia familiar fatal. Era por causa de problemas com o seguro de vida e da discriminação, e ainda, sublinhou, com a voz tensa de tristeza, “o estresse do exame pode até desencadear a doença. Além do mais, o que eu ia fazer com essa informação? Não existe cura. Talvez venha a existir, algum dia, mas agora não existe. Prefiro contar com a minha fé”.
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