O adjetivo é o imprescindível avalista da individualidade de pessoas e coisas; está para a língua assim como a cor para a pintura. O mundo sem ele é triste como um hospital no domingo ILUSTRAÇÃO: STILL LIFE WITH LEMMONS, ORANGES AND A ROSE_FRANCISCO DE ZURBARÁN, 1633_THE NORTON SIMON FOUNDATION
Em defesa dos adjetivos
Ditadores e generais costumam dispensar tudo o que não seja verbo e substantivo
Adam Zagajewski | Edição 52, Janeiro 2011
Muitas vezes nos mandam cortar nossos adjetivos. O bom estilo, conforme dizem, sobrevive perfeitamente sem eles; bastariam o resistente arco dos substantivos e a flecha dinâmica e onipresente dos verbos. Contudo, um mundo sem adjetivos é triste como um hospital no domingo. A luz azul se infiltra pelas janelas frias, as lâmpadas fluorescentes emitem um murmúrio débil.
Substantivos e verbos bastam apenas a soldados e líderes de países totalitários. Pois o adjetivo é o imprescindível avalista da individualidade de pessoas e coisas. Vejo uma pilha de melões na bancada de uma quitanda. Para um adversário dos adjetivos, não há dificuldade: “Melões estão empilhados na bancada da quitanda.” Todavia um dos melões é pálido como a tez de Talleyrand quando discursou no Congresso de Viena; outro é verde, imaturo, cheio de arrogância juvenil; outro ainda tem faces encovadas e está perdido num silêncio profundo e fúnebre, como se não suportasse a saudade dos campos da Provença. Não há dois melões iguais. Uns são ovais, outros são bojudos. Duros ou macios. Têm cheiro do campo, do pôr do sol, ou estão secos, resignados, exauridos pela viagem, pela chuva, pelo contato das mãos de estranhos, pelos céus cinzentos de um subúrbio parisiense.
O adjetivo está para a língua assim como a cor para a pintura. O senhor do meu lado no metrô: uma lista inteira de adjetivos. Está fingindo que cochila, mas por entre as pálpebras semicerradas observa os colegas passageiros. De vez em quando, o sorrisinho arqueado nos seus lábios vira uma torção irônica. Não sei se o que há nele é desespero calmo, fadiga ou um paciente senso de humor que não se dobra à passagem do tempo.
O exército limita o contingente de adjetivos. Aos seus olhos descoloridos, apenas o adjetivo “mesmo” tem alguma graça. Os mesmos uniformes, os mesmos fuzis. Qualquer um que, voltando de exercícios militares e já à paisana, saia pela primeira vez para dar uma volta numa cidade de civis há de se lembrar da inacreditável explosão de adjetivos, cores, matizes, formas e diferenças com que foi saudado por um cosmos repleto de diferentes individualidades.
Vida longa ao adjetivo! Pequeno ou grande, esquecido ou corrente. Precisamos de você, esbelto e maleável adjetivo que repousa delicadamente sobre coisas e pessoas e cuida para que elas não percam o gosto revigorante da individualidade. Cidades e ruas sombrias se banham de um sol pálido e cruel. Nuvens cor de asa de pombo, nuvens negras, nuvens enormes e cheias de fúria, o que seria de vocês sem a retaguarda dos voláteis adjetivos?
A ética também não sobreviveria um dia sem adjetivos. Bom, mau, sagaz, generoso, vingativo, apaixonado, nobre – essas palavras cintilam como guilhotinas afiadas.
E também não existiriam as lembranças não fosse pelo adjetivo. A memória é feita de adjetivos. Uma rua comprida, um dia abrasador de agosto, o portão rangente que dá para um jardim e ali, em meio aos pés de groselha cobertos pelo pó do verão, os teus dedos despachados… (tudo bem, teus é pronome possessivo).