Expedição ao futuro
| Edição 70, Julho 2012
Querida amiga,
Estou enviando algumas anotações sobre nossa remota viagem a Brasília. São lembranças de um estudante de arquitetura e, talvez por isso, diferentes das suas. Sempre achei esses encontros e desencontros da memória muito interessantes. Aí vão elas.
Percorremos o Planalto Central do Brasil em cima de um caminhão carregado de madeira, sob um céu estrelado que parecia uma montagem planetária de . Na madrugada ainda escura, fomos acordados pelas luzes de holofotes iluminando gigantescas gruas que se moviam sem parar ao redor das estruturas de concreto, espalhadas numa planície negra que parecia infinita: lá estava Brasília, ainda por terminar. Placas da Novacap e da construtora Christian & Nielsen estavam por todo lado e havia muito espaço entre as silhuetas dos edifícios.
O impacto foi alucinante. Era um privilégio assistir ao avanço de uma cidade nova. Eu tinha lido sobre reconstruções, sobre imposições culturais, sobre reconversões e também sobre destruições, do templo do Convento de Santo Domingo, em Cuzco, até o Palácio de Carlos V, na Alhambra. Mas lá éramos testemunhas de uma verdadeira fundação, testemunhas do futuro. Brasília, no final dos 60, ainda estava em obras. Os quatro viajantes, nos sentíamos exploradores.
Procuramos os estudantes da recém-fundada universidade como quem procura seus próprios irmãos. Visitamos a faculdade de arquitetura, instalada em uns galpões em forma de claustro, com seu agradável microclima; depois, os infinitos e gigantescos pórticos de concreto organizados numa ampla curva que viriam a formar o campus Darcy Ribeiro da Universidade.
Mas precisávamos encontrar um lugar para dormir, fosse onde fosse: numa sala do Centro Acadêmico ou numa cela do recém-inaugurado posto da polícia na rodoviária. Lembro que, numa outra viagem, chegamos de noite a Cochabamba, na Bolívia. Esfalfados de tanto caminhar, armamos a barraca no escuro. Na manhã seguinte, uma porção de gente nos rodeava, e a polícia queria saber o que estava acontecendo conosco, pois tínhamos acampado no meio da praça principal da cidade.
Resolvemos percorrer Brasília sem avaliar a escala na qual teríamos que nos deslocar; tínhamos perdido essa noção fazia tempo, na travessia do Mato Grosso. Nas longas avenidas, quase não se distinguiam os canteiros do meio-fio. Muitos Fuscas circulavam pela Esplanada dos Ministérios. Chegamos à Praça dos Três Poderes atravessando uma dupla fileira de blocos simétricos, recém-construídos e alguns também recém-incendiados, talvez por descuidos ocasionados pela urgência e pela impaciência.
Paramos na esplanada do Congresso. Olhamos para o alto; as duas torres gêmeas de 28 andares eram como a coluna fundamental das colônias romanas e hispano-americanas, marcos da fundação do mundo. Olhando para o horizonte, podia-se apreciar uma gigantesca maquete composta pelas duas fileiras de blocos ministeriais, a rodoviária ao fundo e, como braços estendidos, a grande avenida curva que articulava as áreas residenciais.
Aquela esplanada era o arremate de uma praça cívica, para uma multidão na escala do que a cidade mostrava até aquele momento. Depois aprendemos que as pessoas não têm escala de cidade ou de metrópole, e o sonho de convocar multidões que enchessem aquela esplanada era apenas isso, um sonho. Mais além, o Itamaraty terminado, bem como o Palácio da Alvorada e sua capela; o teatro e a catedral em construção. Niemeyer fazia quase tudo: encarnava o ideal renascentista do artista criador, que dá forma e dispõe livremente dos edifícios, como maquetes de gesso e papelão. Mas eram edifícios colossais.
Algumas superquadras já estavam prontas. Ele as projetara de acordo com o espírito dos blocos de Le Corbusier, libertos do solo, estendendo abaixo os espaços verdes, ao longo de toda a quadra. O contraste com os alojamentos de operários na periferia era brutal. Estes não passavam de favelas organizadas, e se esperava que desaparecessem à medida que a construção da cidade terminasse. Sem dúvida, a capital do Brasil não poderia ser povoada por operários da construção. Por seu padrão, as residências das superquadras se destinavam a burocratas e funcionários públicos.
Ao lado desses blocos de altura média, havia moradias individuais, em fileira, alinhadas junto ao Eixo Rodoviário. Chamaram minha atenção, nesse momento inicial da cidade, algumas mudanças introduzidas por quem já morava lá. O Plano Piloto distinguia sete tipos de circulação, entre elas a V7, mais tranquila, para pedestres, distante do tráfego, perto dos vizinhos, com jardim. A frente das casas dava para essas ruas. Em geral, a grama estava descuidada, havia roupa estendida e algum triciclo abandonado. Os fundos, onde ficavam a entradada cozinha, a área de serviço e a garagem, davam para uma rua de trânsito barulhento. Mas nesses fundos os moradores colocavam suportes de vasos, flores, plantas; revestiam as paredes com cerâmica colorida ou espelhinhos, que contrariavam a cidade branca e de concreto. As casas tinham virado do avesso, como uma meia, e o irresistível “ser latino-americano”, que gosta de se exibir na rua principal, contradizia a teórica tranquilidade e relação de vizinhança de uma V7.
Mas lá, naquela pequena desordem ou alteração urbana, encontraríamos lojinhas onde comprar provisões para completar o almoço, pensando em restaurar as energias, porque o desgaste de caminhar o dia inteiro, percorrendo com os olhos e com os pés uma cidade como Brasília, exigia um minuto de irreverente normalidade.
Todas as críticas feitas à Brasília durante sua construção e nos anos seguintes – décadas, eu diria – transformaram em caricatura a conotação simbólica dos edifícios e da própria cidade. Mas sua matriz funcional se rendeu frente a essa unidade plástica. Muitos caluniadores que conheci em minha vida acadêmica hoje guardam discreto silêncio. Certamente, a maioria dos 24% de críticos da mudança da capital, conforme pesquisa realizada em março de 1960, era de arquitetos e intelectuais. “Encanto não se transfere”, diziam no Jornal do Brasil ainda em 21 de abril de 1969, em defesa do Rio de Janeiro. Mas o coletivo e seu poder de identidade conseguiram a convergência entre modernização e cidade nova.
Ano passado, visitei Chandigarh. Quase todos se referem a ela como a cidade adequada ao seu estado atual de modernização. Hoje, na Índia, Le Corbusier é respeitado, homenageado, venerado e admirado. Transformado em figura pública, há cartazes e faixas com sua imagem; realmente um dos poucos heróis da arquitetura. Foi capaz de construir a necessária monumentalidade urbana em chave moderna – e foi um mestre. Lucio Costa e Niemeyer também brilham, como figuras capazes de construir um lugar para o Brasil moderno.
Alberto Sato
(Decano da Faculdade de Arquitetura, Arte e Design da Universidade Andrés Bello, Santiago do Chile.)
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