Felipe Neto, em casa, onde tem um estúdio de tatuagem: “Não suporto comportamentos típicos de gente que nasceu rica, como a soberba. Que enxerga a classe trabalhadora como serviçal” CRÉDITO: PEDRO GARRIDO_2023
Felipe Neto contra a cadela do fascismo
Como o influenciador digital, antes conhecido pelos vídeos infantojuvenis, enfrentou Bolsonaro e fez campanha para eleger Lula
Filipe Vilicic | Edição 198, Março 2023
Na noite do dia 30 de outubro de 2022, Felipe Neto, o mais bem-sucedido youtuber do Brasil, estava tão alegre, mas tão alegre, que pulou na piscina de sua casa de roupa e tudo. Antes dessa explosão de felicidade, porém, ele comeu o pão que o diabo amassou. Se Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito naquela noite, Felipe Neto tinha uma rota de fuga preparada. Deixaria sua casa na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, rumo ao Aeroporto do Galeão, e se mudaria para Buenos Aires. Todos – ele próprio, sua equipe de segurança, um amigo e um primo – já estavam de malas prontas para a viagem. Embarcariam em um jatinho particular, alugado. Na capital argentina, eles se hospedariam em um hotel por ao menos um mês, até acharem uma casa ideal para locação.
“O governo Bolsonaro tentou me prender duas vezes, com dois inquéritos ilegais absurdos. Claro que iriam atrás de mim num segundo mandato, quando governos autoritários costumam pegar bem mais pesado”, diz Felipe Neto à piauí, acomodado na sala de sua casa de três andares, no condomínio de alto padrão Quintas do Rio, à beira da Lagoa de Jacarepaguá. Apesar de nunca ter visitado a Argentina nem falar espanhol, ele escolheu o país vizinho como lugar do possível exílio para ficar perto do Brasil. “Para os Estados Unidos, eu não iria sob nenhuma hipótese. Não gostaria de abandonar a América Latina.”
Os últimos quatro anos não foram fáceis para o influenciador digital de 35 anos que somente no YouTube reúne 45 milhões de seguidores – o tamanho da população argentina. Ele mesmo conta: “Desde que Bolsonaro foi eleito, em 2018, eu tive de começar a tomar remédio pesado para dormir. Pessoas poderosas fizeram de tudo para tentar calar a minha boca.” Além dos processos judiciais, ele enfrentou conflitos com empresários e políticos bolsonaristas e virou alvo de milícias digitais da extrema direita, que lhe acusaram de várias coisas, até de pedofilia, e de milícias do mundo real, que o ameaçaram de morte.
Com a vitória de Bolsonaro em 2018, Felipe Neto ampliou sua segurança pessoal e a de pessoas mais próximas de sua família – sua mãe, sua avó e seu irmão, o youtuber Luccas Neto, outro fenômeno na internet. No condomínio onde mora há uma equipe de seguranças armados e viaturas. A portaria controla o fluxo de visitantes. Quando se chega à sua casa, um guarda-costas recebe a visita na porta antes de autorizar a entrada na sala de estar. As áreas externas da mansão e quase todos os cômodos têm sensores de movimento e são vigiados 24 horas por câmeras. Quando o influenciador sai de casa, o que ocorre raríssimas vezes, as precauções são redobradas: uma equipe de seguranças armados é adicionada à já existente, e o acompanha, num carro à parte. Antes da saída, é realizado um mapeamento de possíveis rotas de fuga.
Pode parecer exagero, mas faz sentido. Em 2019, Felipe Neto recebeu uma série de mensagens de WhatsApp e e-mails anônimos ameaçando sua mãe de morte. Achou melhor que tanto ela quanto sua avó deixassem o Brasil. “Penso que o objetivo era apenas aterrorizar, mas eu também não queria pagar para ver esse blefe”, diz. Elas foram para Portugal, país de origem da família, que também possui a nacionalidade portuguesa.
“Eu tinha medo de que algo acontecesse desde o início da fama dele”, diz a mãe do influenciador, a pedagoga Rosa Esmeralda Pimenta Neto, de 57 anos. “Ele falava de forma muito forte contra figuras e fenômenos famosos. Achava que isso poderia irritar fãs, que podem fazer coisas mirabolantes.” Naqueles tempos iniciais, o máximo que aconteceu foi um grupo de fãs descobrir o endereço de Rosa Neto e passar a madrugada lhe enviando delivery de comidas. Aconteceu em 2011, e até hoje ela não entendeu o sentido da mensagem, se é que havia algum.
Com Bolsonaro no poder, no entanto, as coisas ficaram mais perigosas. Rosa Neto afirma ter recebido, no auge das intimidações, uma média de duas mensagens por semana com ameaças de morte, por e-mail ou WhatsApp. A decisão de se exilar em Portugal surgiu depois que recebeu uma mensagem de mais de duas páginas com detalhes de sua vida e dados pessoais. Ela se mudou com a avó de Felipe Neto, hoje com 96 anos. As duas ficaram lá até outubro do ano passado, quando voltaram ao Rio para votar nas eleições presidenciais. Caso Bolsonaro ganhasse a reeleição, ao mesmo tempo que o filho se exilaria na Argentina, elas voltariam para Portugal. Com a vitória de Lula, Rosa Neto optou por permanecer no Brasil. Mesmo assim, no fim do ano passado, durante um show de Roberto Carlos no Rio, ela recebeu uma mensagem anônima que tinha algo de sinistro em sua aparente cordialidade. Dizia: “Está gostando do show?”
No condomínio em que Felipe Neto vive, um bom número de moradores estendeu bandeiras do Brasil nas janelas de suas casas na última eleição. Mas ele teve poucos problemas com os vizinhos até agora. Um deles foi com a locatária de uma casa perto da sua, que durante uma festa resolveu esbravejar contra o influenciador, recorrendo a um sistema de som. A rua inteira ouviu os impropérios. Outro contratempo no condomínio foi causado pelo funcionário de um vizinho, que chutou e quebrou os vasos do jardim de uma das entradas da sua casa. A cena foi registrada pelas câmeras de segurança.
No mundo digital, as batalhas foram mais ferozes. Em março de 2019, apenas três meses depois da posse de Bolsonaro, o deputado federal Carlos Jordy (hoje no PL-RJ) fez uma postagem no Twitter relacionando Felipe Neto a dois jovens que mataram oito pessoas em uma escola na cidade paulista de Suzano, no dia 13 daquele mês. O deputado apagou a mensagem, mas perdeu na Justiça. Em junho de 2022, foi condenado a pagar indenização de 66 mil reais por danos morais. O valor foi doado pelo influenciador ao Instituto Marielle Franco, que promove ações sociais, e ao Ocupa Sapatão, movimento ligado à causa lésbica.
Jordy não foi a única figura ligada ao bolsonarismo que perdeu um processo por disseminar notícias falsas sobre Felipe Neto. Na fila, estão também a atriz Antonia Fontenelle (que o associou à pedofilia e foi condenada a um ano de prestação de serviços comunitários e multa de cerca de 40 mil reais, valor depois alterado para a metade), o empresário Luciano Hang (que perdeu o processo em que o acusava de difamação) e o pastor Silas Malafaia (que fechou um acordo no valor de 24 mil reais em uma ação por injúria e difamação). Sempre que há indenização em dinheiro, o influenciador digital doa os valores para instituições que promovem ações opostas às dos bolsonaristas.
As tentativas diretas de prendê-lo demoraram um pouco mais. A primeira aconteceu em novembro de 2020, quando Bolsonaro estava perto de completar dois anos no governo. O delegado Pablo Sartori, da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio de Janeiro, instaurou um processo denunciando Felipe Neto por corrupção de menores. Baseou-se em alguns vídeos do influenciador no YouTube que não tinham a classificação etária. (Nos últimos quatro anos, Sartori se tornou conhecido por perseguir judicialmente pessoas famosas que, de alguma forma, incomodaram a família Bolsonaro. Em dezembro de 2020, por exemplo, abriu um procedimento contra os jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos, apresentadores do Jornal Nacional, por crime de desobediência, alegando que teriam descumprido decisão judicial que proibia a Rede Globo de exibir documentos relacionados ao caso das rachadinhas. A notícia-crime que levou o delegado a tomar a decisão foi apresentada pelo senador Flávio Bolsonaro, hoje no PL-RJ, um dos investigados no caso. Em março de 2021, deputados do Psol pediram ao Ministério Público do Rio a abertura de investigação contra o delegado por “proteger os interesses da família do presidente da República Jair Bolsonaro”.)
Se fosse condenado por corrupção de menores, Felipe Neto poderia amargar entre 1 e 4 anos de prisão. Todavia, em junho de 2021, a denúncia foi arquivada por falta de provas.
O susto maior veio quatro meses depois, em 15 de março de 2021. Nesse dia, a Polícia Civil do Rio, sob o comando do mesmo delegado Sartori, foi à casa do influenciador para intimá-lo a depor, sob nova acusação: a de ter cometido crime previsto na Lei de Segurança Nacional, ao chamar o presidente da República de “genocida” no Twitter. “Quando a polícia me entregou o documento, eu estava tremendo, horrorizado”, conta Felipe Neto. “Como podia eu correr o risco de ir para a cadeia por uma lei dos tempos da ditadura?” A Lei de Segurança Nacional foi redigida em 1983, nos estertores da ditadura militar, e foi revogada pelo stf em setembro de 2021. Ele avalia ter tido influência nessa decisão, devido à repercussão de seu caso, que acabou arquivado. Com dinheiro de sobra para contratar bons advogados, logo armou sua defesa. “Mas fiquei imaginando quantas pessoas sem essa verba podiam estar sendo processadas pelo governo e sendo censuradas.”
Nos últimos quatro anos, fazer oposição a Bolsonaro se tornou uma tarefa diária para Felipe Neto. Ele se posicionou nas redes sociais sobre várias decisões federais, como o decreto que autorizou a ampliação da compra e do porte de armas, criticou ministros e levantou bandeiras ambientais, indigenistas e em prol dos direitos humanos.
Em janeiro de 2020, disparou contra Abraham Weintraub, então ministro da Educação: “Tão vendo o ENEM todo desgraçado? Tão vendo a consequência? Isso é o q acontece qnd se coloca um IMBECIL q não sabe nem escrever como ministro da Educação, só pq ele gosta do Olavo de Carvalho e lustra as bolas do Presidente. Tão entendendo agora?” Quatro meses depois, foi processado por Weintraub. O próprio ministro, porém, não deu prosseguimento ao processo, e Felipe Neto nem chegou a ser intimado. Em 7 de agosto do ano passado, o influenciador bateu boca no Twitter com Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, depois que ela compartilhou uma fake news que acusava o PT de distribuir uma “cartilha ensinando a usar crack”. Ele escreveu, na mesma rede social: “A Damares Alves é uma MENTIROSA e eu a desafio a me processar para que eu possa provar na Justiça que é uma mentirosa. A cartilha citada por ela foi criada pelo Programa Nacional de DST/Aids para ser distribuída a profissionais de SAÚDE. Detalhe: a cartilha nem chegou a ser distribuída.” Ele estava certo. Ela não o processou.
As pressões contra Felipe Neto foram se acentuando à medida que as eleições se aproximavam. Mas seu ânimo político também foi se ampliando. Em 25 de setembro do ano passado, faltando uma semana para o primeiro turno, ele foi convidado por Marcelo Freixo, então candidato ao governo do estado do Rio e atual presidente da Embratur, a participar de uma conversa de Lula e Dilma Rousseff com artistas e influenciadores digitais, num hotel no Centro da capital fluminense. O encontro com Dilma foi marcante. O primeiro gesto de Felipe Neto foi pedir desculpas à ex-presidente por ter “propagado o antipetismo e apoiado o golpe em 2016”, nas palavras dele. Dilma o abraçou e ofereceu um café, dizendo: “Eu quero fazer isso como um gesto a você.” Ele chorou.
Com Lula, a conversa também teve algo memorável para Felipe Neto. “Foi importante olhar nos olhos dele e entender que Lula tem uma genuína preocupação com as famílias de baixa renda”, diz. “Ele já tem status, dinheiro e idade para se aposentar, mas sei que quis voltar à Presidência por se importar realmente com o país.” Os dois falaram sobre a propaganda bolsonarista, com suas fake news que fomentam o radicalismo, e como isso poderia ser uma ameaça para a campanha do petista. “Foi nessa hora que tive de bater no peito e dizer: ‘Essa responsabilidade é minha’”, ele conta, referindo-se ao seu papel de influenciador e ao interesse pelo tema das notícias falsas, enquanto bate de novo a mão no peito, na sala de sua casa.
Ao fim do encontro, Felipe Neto disse a Lula que estava “à disposição” da campanha e, em caso de vitória, do futuro governo. “À disposição para debater e propor em assuntos de minha especialidade, como comunicação digital e fake news”, esclarece. “Não quero subir em palanque e disputar eleições, e daria um péssimo ministro. Gosto da solidão e do meu processo criativo. Não sou burocrata.”
Durante o segundo turno, quando a disputa entre Lula e Bolsonaro tornou-se ainda mais acirrada, ele transferiu para a equipe de produção a tarefa de criar os vídeos do seu canal, em vez de centralizar o trabalho, como fazia. “A equipe passou a me dar o roteiro e eu só gravava, como um apresentador”, diz ele. Assim, pôde se concentrar nos vídeos e posts políticos, dos quais cuidava sozinho, do roteiro à edição final. “Só pensava nisso, quis controlar tudo”, conta.
Colocou como prioridade produzir conteúdos a favor da campanha de Lula em sua página no Instagram. Decidiu criar uma série de vídeos nos quais rebatia notícias falsas, como a de que Tarcísio de Freitas (eleito governador de São Paulo) teria sido alvo de um atentado terrorista na favela paulistana de Paraisópolis, ou a de que a logomarca CPX em um boné usado por Lula teria a ver com o crime organizado, ou a de que a Covid não afetou crianças no Brasil – mentira espalhada pelo próprio Bolsonaro.
Seus seguidores enviaram vários pedidos de esclarecimento sobre notícias, querendo saber se eram verdadeiras ou falsas, como a de que o PT teria desviado 242 bilhões de reais do Ministério da Saúde em 2014. Em um vídeo de quatro minutos de duração, Felipe Neto tentou explicar que o partido não desviou verbas, mas as realocou. “Na verdade, [o dinheiro] foi utilizado para crescer o Minha Casa, Minha Vida, o Bolsa Família, o Prouni e tantos outros projetos sociais. Ao invés de dar esse valor na mão de deputado e senador, como Bolsonaro faz agora com o orçamento secreto”, disse, no vídeo.
Para fundamentar seu argumento, ele recorria a notícias publicadas na imprensa e fazia entrevistas nos bastidores, inclusive com políticos, como Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde no primeiro governo de Dilma e atual ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República. “Conversamos longamente”, recorda Felipe Neto. “Com muita paciência, ele me passou informações sobre como foram usados os 242 bilhões de reais e sobre a origem da notícia falsa de que o PT teria roubado.” O influenciador comenta que foi Rosângela da Silva, a Janja, mulher de Lula, quem lhe passou o contato de Padilha, entre outros. E que a atual primeira-dama foi seu “ponto focal de contato” com a campanha petista.
Os vídeos de Felipe Neto desmentindo notícias falsas foram vistos mais de 330 milhões de vezes no Instagram – onde ele é seguido por 17 milhões de pessoas. É sua série de conteúdos que mais rapidamente atingiu uma marca tão expressiva. “O Felipe certamente teve peso na vitória de Lula, pois levou a trajetória do presidente a um público novo, que não tinha visto Lula no Planalto, não sabe o que é lutar pela liberdade sob uma ditadura”, avalia Marcelo Freixo. “Diferente de nós, ele fala o dialeto dos jovens.”
Devido ao sucesso dessa série, Felipe Neto foi convidado para debater a regulamentação das redes sociais em um encontro da Unesco em Paris, no dia 21 de fevereiro, o Internet for Trust (Por uma Internet Confiável). “Só soube com quem conversaria quando saiu a notícia na mídia”, diz o influenciador. No dia 15 de fevereiro, ele descobriu que falaria na abertura do evento com três jornalistas: a filipina Maria Ressa (ganhadora do Nobel da Paz de 2021 por ações em defesa das liberdades de expressão e de imprensa em seu país), a norte-americana Melissa Fleming (secretária de Comunicações Globais da ONU) e a britânica Carole Cadwalladr (que revelou no jornal The Guardian o escândalo da Cambridge Analytica, a consultoria política que abasteceu a campanha de Donald Trump em 2016 com dados de usuários do Facebook). Do Brasil, participaram ainda o presidente Lula, que enviou uma carta para ser lida no evento, e o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, convidado para um debate.
Trajando um elegante blazer bordô, Felipe Neto debateu em inglês com as três jornalistas e deixou clara sua posição a respeito da necessidade de regulamentação das redes sociais. “As plataformas precisam ser responsáveis. Elas continuam pedindo para que os Estados as regulem. Elas devem parar de pedir regulação. Venham para a mesa e sejam responsáveis pelo que estão fazendo. Parem de apenas pedir às pessoas que elas resolvam os problemas que as próprias companhias criaram”, afirmou. O influenciador foi mais longe: disse que, “para garantir mais harmonia no ambiente digital”, é preciso mudar o modelo de negócio das redes sociais. “Como as plataformas falam sobre direitos humanos quando lucram com a radicalização [do público]?” No palco, houve consenso sobre a urgência de se estabelecer regras. “Estamos à beira do precipício. Sabemos como é do outro lado: insurreição violenta e genocídio. Isso é o efeito da falta de regulação”, disse Cadwalladr, que atuou como moderadora.
Felipe Neto discorda dos pedidos judiciais de suspensão de perfis no Twitter, mesmo no caso de seus opositores, como o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) e o podcaster Bruno Aiub, o Monark, que tiveram as contas suspensas depois de darem estímulo a narrativas golpistas. Mas, semanas antes do evento da Unesco, Felipe Neto já explicitara sua posição à piauí. “O jogo precisa ser claro, até para corretamente punir os fascistas. Para isso, é preciso ter uma regulamentação. Só assim podemos alcançar algum nível de paz no ambiente digital”, disse. “Temos de resguardar os direitos coletivos e individuais, mas preservando um ambiente justo e sem crime. Os neoliberais boçais acham que se combate o crime digital sem lei. Eu, não.”
Em 22 de fevereiro, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, anunciou a criação de um grupo de trabalho para propor estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo. O grupo será coordenado pela ex-deputada federal Manuela d’Ávila e terá cinco representantes do ministério e 24 pessoas da sociedade civil, entre as quais Felipe Neto, o psicanalista Christian Dunker e a antropóloga Débora Diniz. “Não só na eleição, como na pandemia, o Felipe teve papel na construção de informações relevantes, e de contrainformações”, disse d’Ávila. “A capacidade técnica de alguém como ele, que tem se dedicado crescentemente a estudar as tecnologias, o que ele próprio faz, é também relevante frente aos caminhos que temos de encontrar.” Em 180 dias (prorrogáveis), o grupo tem como objetivo propor métodos de enfrentamento ao radicalismo ideológico.
Depois do debate em Paris, Felipe Neto viajou para a Dinamarca com amigos para gravar vídeos, inclusive na Legoland, parque dedicado ao brinquedo Lego, criado naquele país e ao qual ele tem dedicado programas (não patrocinados) em seu canal no YouTube. “Montar Lego tem algo de terapêutico”, diz.
O convite da Unesco é uma honraria e tanto para um influenciador digital que, antes de 2018, não era tão famoso pelas opiniões políticas. Para milhões de jovens que o seguiam no YouTube, Felipe Neto era mais conhecido como um divertido entertainer da internet que criava dancinhas, detonava fenômenos da cultura pop para o público adolescente ou inventava brincadeiras para os espectadores infantojuvenis. Mas isso não quer dizer que fosse apolítico. A diferença é que tinha uma perspectiva oposta à atual.
Quando já havia alcançado grande sucesso, Felipe Neto começou a se manifestar contra o PT, Lula e Dilma Rousseff nas redes sociais. Em um vídeo de 2016, ele atacou Lula, chamando-o de “corrupto, safado, ladrão e delinquente”, e pediu que o então ex-presidente fosse preso. Em outro vídeo, de 2017, afirmou: “Não existe votar em alguém corrupto. Não existe. Votar no Lula, sob qualquer hipótese, contra qualquer candidato, eu não voto. Você diz o Lula contra o gorila Malaquias, eu vou votar no gorila. Embora o Bolsonaro represente muita coisa que eu discordo, que eu acho errado, se fosse ele contra o Lula eu acho que não teria escolha, eu teria que votar nele.” Felipe Neto tenta explicar o que aconteceu naqueles dias: “Eu era antilula, antipetista, um lavajatista.” E acrescenta: “Era também desinformado e menos estudado.”
Na campanha do ano passado, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) aproveitou-se desses vídeos para atacar o influenciador e o PT. O que também fizeram os seguidores de Jair Bolsonaro, empenhando-se em resgatar as falas antigas de Felipe Neto, inclusive seus comentários machistas, homofóbicos e gordofóbicos. Uma delas, de 2010, foi dita em um vídeo sobre a saga Crepúsculo (que tem 17 milhões de visualizações): chamou uma “menina que adoraria ser popular, mas não é” de “gordinha, deslocada, triste”. Sobre essa fase, ele se justifica: “Normal fazermos besteiras na vida. Não tem como a gente ficar imune a erros. Os meus foram acompanhados pelo público, conforme evoluí. Eu merecia ter sido cancelado várias vezes.”
Felipe Neto diz que começou a tomar antipatia por Jair Bolsonaro em 2013, quando ouviu pela primeira vez o então deputado federal, em uma entrevista dada a uma simpatizante. O influenciador se irritou com as frequentes declarações de cunho homofóbico, como esta: “Eu tenho imunidade para falar que sou homofóbico, sim, com muito orgulho, se é pra defender as crianças nas escolas.” Depois dessas falas de Bolsonaro, o influenciador fez um vídeo (deletado recentemente de suas redes), no qual dizia:
– Silas Malafaia é o maior homofóbico, depois daquele outro filho da puta, lá…
– Hitler – interrompe um assistente.
– … Não, Bolsonaro! – completa Felipe Neto.
A aversão foi crescendo à medida que Bolsonaro proliferava na imprensa – cada vez mais receptiva a ele – os seus discursos racistas, machistas e de apoio à ditadura militar. “Como todas aquelas atrocidades que ele falava em aparições constantes no programa da Luciana Gimenez”, lembra o influenciador.
Em 2018, ano da eleição presidencial, ele começou a expor sua abjeção a Bolsonaro até mesmo nos shows ao vivo. Durante um espetáculo em Brasília em fevereiro, reproduziu um jogo que fazia em seu canal no YouTube chamado “Casa, Mata ou Beija”. A uma espectadora que participava da brincadeira na capital federal, perguntou, quando o tema foi Bolsonaro: “Você casa, mata ou beija?” Ela disse que preferia beijar. Foi quando, de modo oblíquo, Felipe Neto revelou sua opinião. “Você não vai matar o Bolsonaro?”, indagou ele. “É que eu trabalho no Senado”, respondeu a mulher. Por fim, ela mudou de ideia e “matou” Bolsonaro.
“Mesmo assim, eu ainda era antilula”, ressalva Felipe Neto. Foi preciso esperar até o segundo turno das eleições presidenciais de 2018 para testemunhar o início de sua virada à esquerda.
Em 22 de outubro daquele ano, durante um comício na Avenida Paulista, em São Paulo, o então candidato Jair Bolsonaro fez uma ameaça: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia.” No dia 27, véspera do segundo turno, Felipe Neto reagiu, escrevendo em seu perfil no Twitter: “Eu estava neutro no 2º turno pelo meu ódio ao PT. Td mudou qnd Bozo falou, AGORA, q vai varrer os opositores para fora do país ou pra cadeia. Em 16 anos de PT eu fui roubado, mas nunca ameaçado. Autoritarismo nunca mais! Irei de Haddad.” O texto no Twitter – rede social em que o influenciador tem atualmente 16 milhões de seguidores – não pode ser mais encontrado porque ele usa um programa que apaga automaticamente as mensagens antigas. Mas registros feitos na época mostram que o tuíte chegou à casa de 120 mil curtidas e 23 mil compartilhamentos.
Seu anúncio de apoio a Fernando Haddad surpreendeu todo mundo – da direita à esquerda. A repercussão do tuíte fez com que figuras da esquerda se aproximassem dele e incluíssem seu nome em grupos de WhatsApp frequentados por artistas, políticos e ativistas que faziam oposição a Bolsonaro. Ele então estabeleceu contato com pessoas como a cientista política Ilona Szabó, o jornalista e ativista Rene Silva – editor-chefe do jornal Voz das Comunidades, fundado no Complexo do Alemão –, a jornalista Cristina Tardáguila, fundadora da Agência Lupa, e o apresentador Luciano Huck. Mas Felipe Neto ainda não tinha se movimentado tanto assim no espectro político: continuava a ser um “liberal de centro-direita”, como ele se definia na época. “Quando declarei voto em Haddad, foi num tom meio ‘estou sem saída’”, diz à piauí.
Passada a eleição de 2018, a militância política do influenciador continuou, com diferentes alvos, mas cada vez mais antibolsonarista. Causou estrondo, em 2019, a reação que teve quando o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, apoiador de Bolsonaro, decidiu recolher na Bienal do Livro do Rio exemplares da história em quadrinhos Vingadores: A Cruzada das Crianças, por conter um beijo de dois heróis homossexuais. Felipe Neto comprou milhares de exemplares de variados livros com a temática LGBTQIA+ e mandou embalá-los em plástico preto, com o seguinte aviso: “Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas. Felipe Neto agradece a sua luta pelo amor, pela inclusão e pela diversidade.” No dia 6 de setembro, mandou um recado pelo Twitter: “Serão 14 mil livros distribuídos GRATUITAMENTE.” No dia seguinte, voltou à rede social: “Se você estiver na Bienal ou próximo, por favor, vá para onde os livros estão. Há rumores de q fiscais da prefeitura vão pra lá CONFISCAR.” Agentes municipais se dirigiram ao evento, mas foram bloqueados por uma multidão de jovens. Todos os livros foram doados para o público.
Enquanto protestava, Felipe Neto também se informava. Ele começou a se interessar pelo que chama de “literatura sociopolítica”. Leu livros do filósofo francês Michel Foucault e do linguista norte-americano Noam Chomsky. De Foucault, chamou-lhe atenção o livro Vigiar e Punir, que o levou a ter uma visão “menos punitivista” da sociedade. As leituras de Chomsky o ensinaram sobre os perigos do “imperialismo neoliberal” e do neofascismo. “Mas a maior ruptura foi o livro As Veias Abertas da América Latina. Foi quando compreendi o quanto nossos antepassados latino-americanos sofreram com o intervencionismo da dominância capitalista”, conta ele, sobre o livro do jornalista uruguaio Eduardo Galeano. Publicada em 1971, a obra faz parte do cânone da esquerda latino-americana, com sua denúncia da colonização europeia e do imperialismo norte-americano. “Não é à toa que quem lê muito e estuda normalmente é ou se torna de esquerda”, comenta o influenciador.
As obras de Chomsky foram recomendadas pelo jornalista norte-americano Glenn Greenwald. Marcelo Freixo sugeriu que lesse A República das Milícias, do jornalista Bruno Paes Manso. Mas também houve indicações feitas por pessoas que ele conheceu nas redes sociais e em grupos de WhatsApp, e por um primo, Marcel Albuquerque, professor de filosofia em cursinhos pré-vestibular e influenciador digital. Albuquerque recomendou as obras do filósofo alemão Arthur Schopenhauer e do antropólogo francês Bruno Latour.
“O Felipe veio de um bairro pobre e majoritariamente de direita, aí passou para um círculo de artistas e youtubers. Então, quando começou a ser atacado pelo bolsonarismo, se enturmou e se informou com a esquerda”, diz o youtuber Bruno Correa, de 32 anos, amigo de longa data de Felipe Neto. Eles se conheceram em 2012, e quatro anos depois, devido a problemas financeiros, Correa se mudou para a casa do amigo, onde também morava na época Luccas Neto. Eles dividiram o teto até 2018. Correa também fez a mesma virada política que o amigo, por influência dele: da direita, passou à esquerda. “O Felipe é orgulhoso, e nós entendemos os momentos em que ele se demonstra assim. Também é bem direto ao ponto, não fala muito. Se começa a te abraçar, a ser simpático demais, tenha certeza de que ele está interpretando.”
Na disposição de lutar contra Bolsonaro, as ameaças de morte que abalaram a família tiveram grande influência. Para Rosa Neto, seu filho mudou de posicionamento político por ter sentido na pele a pressão das intimidações dos bolsonaristas. “Quando ele criticava o PT, o Lula, a Dilma, também falava duro, mas não acontecia nada dessa categoria”, diz ela, referindo-se às ameaças de morte e perseguições. “A extrema direita ameaçou nossas vidas, nossa integridade, nos fez sair do país.”
Os quatro anos de governo Bolsonaro deixaram cicatrizes nesse “outsider da política”, como Felipe Neto se define. Uma delas foi seu rompimento com um tio materno, bolsonarista que vive hoje em Portugal. Outra foi a divergência com Neymar Júnior, de quem tinha se aproximado durante uma viagem a Paris, em abril de 2022. O atacante do time francês PSG ajudou a marcar um médico para o influenciador, que estava com sintomas de contaminação por zika vírus. Depois, Felipe Neto foi à casa de Neymar, em Bougival, nas proximidades da capital francesa, para participar de uma partida de pôquer com jogadores do PSG. “Ele era despolitizado, então foi um susto quando saiu em apoio a Bolsonaro nas eleições presidenciais”, diz Felipe Neto. Em outubro passado, os dois trocaram farpas, primeiro em mensagens privadas no Instagram e, em seguida, publicamente no Twitter. “É preciso estar sempre atento, deixar os bolsonaristas longe de nós, pois a cadela do fascismo está sempre no cio e pode voltar a qualquer momento”, comenta, citando uma frase do dramaturgo alemão Bertolt Brecht.
Quando ocorreu a depredação do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto, em 8 de janeiro, Felipe Neto tuitou: “O terrorismo praticado pelos bolsonaristas não tem sequer um propósito. Absolutamente nada pode acontecer que impeça o resultado da democracia de continuar. Nada. É apenas balbúrdia de baderneiros que resultará em prisões.” À piauí, ele acrescenta, sobre a intentona golpista: “Não imaginei que os bolsonaristas chegariam a esse ponto. Mas a burrice deles, além da ignorância, não cansa de surpreender. Iam quebrar tudo e fazer o quê depois? Os caras até tiraram selfie para servir de prova contra eles.”
De protesto em protesto, de livro em livro, de ameaça em ameaça, Felipe Neto foi virando seu leme ideológico. Sua articulação política se deve também, em boa parte, à aproximação com Marcelo Freixo, na época deputado federal pelo Psol do Rio. Os dois trocaram as primeiras mensagens em grupos de WhatsApp no início de 2019, ainda no começo do governo de Bolsonaro. Em uma delas, o influenciador contou que, aos 22 anos, tinha ficado impressionado com um personagem de Tropa de Elite 2, que havia sido inspirado em Freixo: o professor e deputado Diogo Fraga (interpretado por Irandhir Santos). Para Felipe Neto, o que mais chamou a sua atenção no personagem, na época, foi a coragem de peitar as milícias cariocas. Em 2008, quando era deputado estadual no Rio de Janeiro, Freixo presidiu a CPI das Milícias, que pediu o indiciamento de 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis.
Como Freixo prefere o contato pessoal a trocar mensagens no WhatsApp, eles passaram a se encontrar na casa de Felipe Neto, em geral durante os almoços. Às vezes, Freixo levava outros convidados ao encontro e, assim, aproximou sua equipe do influenciador. Também apresentou a ele a matemática Tatiana Roque, professora da UFRJ. “Pude falar com ele sobre minha principal bandeira, que é criar leis para combater o negacionismo científico e a disseminação de notícias falsas”, lembra Roque. (Na eleição de outubro, Felipe Neto declarou voto em Roque, que concorreu a deputada federal pelo PSB. Não se elegeu. Hoje, ela é secretária de Ciência e Tecnologia da cidade do Rio.)
Em maio de 2020, Freixo convidou Felipe Neto para uma conversa ao vivo no YouTube sobre o governo Bolsonaro e outros temas, como proteção ambiental e vacinação contra a Covid. Até aquela data, o influenciador se recusava a participar de debates com políticos e eventos de campanha. Aceitou o convite de Freixo ao perceber que suas ideias se alinhavam às do deputado. Na conversa, Freixo disse: “A gente precisa entender o que a tem pela frente. Nós temos um governo fascista em prática no Brasil […] A gente tem de salvar este país de um monstro [o então presidente Jair Bolsonaro].” Ao que Felipe Neto retrucou: “Me encontro numa situação de desesperança […], o processo de impeachment seria necessário […] o projeto do governo Bolsonaro é fascista.” Naquela época, Freixo tentava criar na Câmara dos Deputados uma CPI para investigar Bolsonaro sobre as denúncias de interferências na Polícia Federal. Também batalhava para unir partidos de esquerda com o objetivo de pedir o impeachment do presidente. Nem uma coisa nem outra foi para frente.
A transmissão da conversa de Felipe Neto com Freixo chegou a ser vista por mais de 17 mil pessoas ao vivo e acumula, hoje, 56 mil visualizações no canal de YouTube da Mídia Ninja, veículo também associado aos movimentos de esquerda. “Só me tornei realmente próximo, amigo, de um político: o Freixo”, diz o influenciador, que hoje se define como um “cara de esquerda”, mas inclinado à social-democracia. Ele diz se irritar muito quando ouve algum “liberaleco” dizer que o Brasil tem que copiar os Estados Unidos. “O liberalismo é um câncer para o Brasil, atualmente um país subserviente ao poder norte-americano”, proclama.
As críticas de Felipe Neto a Bolsonaro chamaram a atenção do New York Times. Em julho de 2020, ele colaborou em um vídeo para o jornal, resumindo a atuação do governo durante a pandemia. Em inglês bem-falado, que começou a estudar na pré-adolescência como autodidata (um de seus passatempos era legendar séries de tevê norte-americanas, como Friends), expôs as posições negacionistas do então presidente e disse: “Estou certo de que Jair Bolsonaro é o pior presidente do mundo durante a Covid.” Só no canal do New York Times no YouTube, o vídeo foi visto 1,5 milhão de vezes.
Em seguida à vitória de Lula, Felipe Neto publicou vídeos desmentindo as teses golpistas de que as urnas eletrônicas brasileiras não seriam confiáveis. Depois dos ataques aos prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro, criou uma série de conteúdos apoiando as ações tomadas por Lula. Isso não o impediu de também fazer críticas ao governo. “Passei a entender melhor o xadrez político e, agora, vejo o presidencialismo de coalizão como tóxico para o país”, afirma. Afinal, ele criticava Bolsonaro por deixar dinheiro “na mão de deputado e senador” pela via do orçamento secreto e agora está testemunhando a mesma prática no atual governo. “Fico desesperançoso por ver o Lula ofertar o cargo de ministra do Turismo para uma pessoa conhecida apenas por ser mulher do Waguinho, e o ministro de Comunicações para um indivíduo que está lá apenas por ser do Centrão.” O Ministério das Comunicações foi ocupado pelo deputado federal Juscelino Filho (União Brasil-MA). O do Turismo, pela deputada federal Daniela Carneiro (União Brasil-RJ), mulher do prefeito de Belford Roxo, Wagner dos Santos Carneiro, ambos suspeitos de manter ligações com milícias.
Em que medida influenciadores digitais conseguem transferir crenças e valores ao público? “Nunca liguei muito para a política, mas ele me despertou para o assunto”, diz a universitária carioca Eliza Lopes, de 22 anos, cofundadora do fã-clube Support, dedicado a Felipe Neto e que conta com 195 mil seguidores no Twitter. “Vi muita gente que ia votar nulo e mudou para o Lula por causa dele.”
A influência de Felipe Neto sobre seus fãs é objeto de uma pesquisa feita na USP. Para o trabalho, coordenado por mim, foi realizado um levantamento com 103 fãs do influenciador, que responderam de forma anônima. Mais de 90% de seus seguidores afirmaram que, por causa dele, já haviam mudado de opinião em assuntos como saúde mental (72,5%) e política (71,4%). A maioria dos entrevistados concordou com posicionamentos de Felipe Neto, como o de que “mulheres devem ter o direito ao aborto” (66%), “famílias LGBTQIA+ devem ter o direito de adotar” (98%) e “Bolsonaro foi o pior presidente do mundo, principalmente durante a pandemia” (94,2%).
Até os 22 anos, Felipe Neto Rodrigues Vieira tentou levar adiante uma série de empreitadas ao alcance de um rapaz de Engenho Novo, bairro de classe média baixa na Zona Norte do Rio. Filho de pais separados, começou a trabalhar cedo, como designer gráfico, aos 15 anos (o pai, que é psicólogo e com quem tem contato, mora hoje em Campinas e formou outra família. Felipe Neto pediu que a piauí não publicasse o nome dele por razões de segurança). Depois, teve um site de downloads (ilegais) de séries de tevê e investiu no sonho de ser ator, com aulas na Casa das Artes de Laranjeiras. Com colegas de escola, montou uma versão do musical Grease e a peça Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare. Mas a carreira teatral não vingou.
Num dia em que estava particularmente irritado, criou um personagem com jeito de playboy, óculos escuros e sempre com raiva, à maneira dos haters da internet. Decidiu fazer dessa figura a atração de uma série de vídeos no YouTube, plataforma que começava a se expandir no Brasil e na qual ele já tinha publicado algumas gravações caseiras, em que testava suas habilidades de interpretação. Na nova série, à qual deu o título de Não Faz Sentido, o personagem colérico de Felipe Neto se especializou em criticar fenômenos e produtos culturais relacionados aos adolescentes, como bandas da moda, o cantor canadense Justin Bieber e a saga Crepúsculo. Sobre Bieber, disse: “Nada mais do que uma criança criada para outras crianças admirarem.” O Não Faz Sentido explodiu. Estreou em 2010 e, em dois anos, fez de Felipe Neto o primeiro youtuber brasileiro a atingir 1 milhão de inscritos em seu canal.
Os lucros começaram a chegar. Vinham dos anúncios vendidos pelo YouTube nos seus vídeos e de campanhas publicitárias. Também se tornou apresentador de alguns quadros de programas da Rede Globo, como no dominical Esporte Espetacular. Nunca tinha ganhado tanto dinheiro, mas, quando tudo parecia ir muito bem, Felipe Neto apresentou sintomas de depressão, ansiedade e pânico. “Tinha choro compulsivo e melancolia, pois, diante da fama, me sentia como alguém que nem sabe o que é uma bola, num jogo de futebol”, recorda.
Ele recorreu a psiquiatras e se medicou. Em 2013, aos 25 anos, saiu de frente das câmeras e foi para os bastidores. Resolveu se dedicar a um canal de comédia no YouTube, o Parafernalha, que evoluiu para uma agência de influenciadores digitais, a Paramaker. Em 2015, ele vendeu a empresa, por um valor que não revela. Hoje, o negócio pertence à multinacional francesa Webedia, especializada na produção de conteúdo digital.
Em 2017, ele retornou ao seu próprio canal no YouTube, mas passou a focar na audiência infantojuvenil, fazendo vídeos de humor, em que se filma reagindo a outros youtubers, e com brincadeiras diversas, como degustações de guloseimas. A tática deu certo: disparou de 5,6 milhões de inscritos no canal para mais de 19 milhões, no início de 2018. Um de seus vídeos mais bem-sucedidos nessa fase – e que já alcançou 77 milhões de visualizações – foi a paródia que fez da música Despacito, do cantor porto-riquenho Luis Fonsi, um sucesso da época. Na ocasião, lançou uma dancinha, o rebuliço. No vídeo, ele cantava frases grudentas como Os haters tentam jogar contra e falar mal/Mas o amor tomou conta do canal, além de descrever o passo que ensinava, ao lado do irmão e de amigos: Faz esse pasito/Um olho pra cada lado/ E manda o rebuliço/Mexe todos os dedinhos/Faz esse pasito/Uma careta maluca.
Nessa época, adotou o costume de colorir o cabelo com uma cor diferente a cada novo milhão de inscritos em seu canal, no que era imitado pelo público de crianças e adolescentes. As apresentações não se limitavam ao meio digital: ele também fazia shows ao vivo pelo Brasil afora, sempre lotados. Além disso, lançou, por meio de parcerias, uma série de produtos, de livros a tinturas de cabelo, e criou a Play9, produtora de conteúdo digital e agência de influenciadores. Hoje, entre os agenciados da Play9, estão pesos pesados como o locutor Galvão Bueno, a apresentadora Fátima Bernardes e o jogador Vinícius Júnior.
Enquanto tocava sua carreira, Felipe Neto também foi decisivo para deslanchar a carreira de Luccas Neto, seu irmão, quatro anos mais novo. Luccas, hoje um fenômeno entre as crianças, tem uma lista de filmes de sucesso. Só na Netflix, são catorze títulos. Chegou à fama fazendo loucuras, como mergulhar em uma banheira cheia de Nutella. De 2014, quando estreou seu canal no YouTube, até agora arrebanhou 40 milhões de inscritos. “Meu irmão, porém, é mais despolitizado, já tivemos até discussões pessoais a respeito”, diz Felipe Neto. Apesar disso, Luccas entendeu “a ameaça que Bolsonaro era para o irmão mais velho”, e votou em Lula.
Durante os anos Bolsonaro, além da militância política, Felipe Neto arregaçou as mangas. Incomodado com a proliferação de fake news, criou um instituto para apoiar estudos e campanhas sobre a desinformação na internet e a liberdade de expressão no ambiente online. O projeto começou a tomar forma depois que a produtora Paula Lavigne o apresentou ao advogado e cientista social Caio Machado, especialista em inteligência artificial e desinformação. Em dezembro de 2020, os dois lançaram o Instituto Vero. “Mostrei a ele o orçamento inicial, e tudo nasceu rápido”, recorda Machado. “Felipe logo disse que bancaria sozinho um terço dos custos, além de conseguir os outros dois terços com investidores.”
A entidade reúne pesquisadores e comunicadores para discutir soluções contra a desinformação nos meios digitais. Entre seus conselheiros, estão dois youtubers famosos – e antibolsonaristas –, Nilce Moretto e Estêvão Slow. O advogado Silvio Almeida também fazia parte do conselho, mas abandonou o cargo quando assumiu o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Desde 2021, o Vero lançou um guia para ajudar adolescentes a proteger sua privacidade nas redes, promoveu aulas gratuitas online com especialistas em educação digital, e apoiou estudos e campanhas sobre desinformação durante as eleições e de liberdade de expressão no ambiente online. “Cheguei até a me reunir com o deputado Rodrigo Maia [então presidente da Câmara] para debater leis de combate às fake news”, conta Felipe Neto.
No mesmo ano, o influenciador criou o movimento Cala a Boca Já Morreu, nome inspirado na frase usada pela ministra Cármen Lúcia, do STF, quando a Corte liberou por unanimidade (em 2015) as biografias não autorizadas e, com isso, reafirmou o direito à liberdade de expressão. “Acordei umas sete da manhã, com uma mensagem de áudio do Felipe”, lembra o advogado Augusto de Arruda Botelho, hoje secretário nacional de Justiça, outro candidato a deputado federal pelo PSB que Felipe Neto apoiou mas não foi eleito. Na mensagem, transmitida depois de ser intimado por suposta violação da Lei de Segurança Nacional, Felipe Neto dizia que haviam tentado censurá-lo. “Imagina o que esse governo autoritário não fará com quem não consegue se defender?”
Além de Botelho, outros três escritórios de advocacia toparam participar do Cala a Boca Já Morreu, com a proposta de oferecer suporte jurídico gratuito a quem estiver sendo investigado por ter criticado uma autoridade pública. Desde então, a iniciativa já atendeu 23 pessoas, de militantes da esquerda processados por algo que publicaram nas redes sociais até policiais militares perseguidos por colegas. “Os advogados me provaram que tudo aquilo era um absurdo”, conta o músico paranaense Fábio Barbosa de Souza, atendido pelo Cala a Boca Já Morreu e que foi processado pela deputada federal Aline Sleutjes (Pros-PR), por um texto publicado por ele no Facebook. “Ela queria intimidar quem fizesse oposição em Piraí do Sul [curral eleitoral da ex-deputada]”, completa ele, que ganhou na Justiça.
O tema da saúde mental também capturou a atenção de Felipe Neto. Ele planeja criar mais um instituto, ainda sem nome, para promover ações de educação e conscientização sobre problemas como depressão, ansiedade e tendências suicidas. A ideia é oferecer, em parceria com o poder público, atendimentos de psicólogos e outros profissionais, de forma presencial ou online. Um projeto-piloto deve ser lançado brevemente em uma cidade que ainda não foi definida. “A saúde mental dos jovens está se deteriorando, e redes como o TikTok só estão piorando a situação”, diz.
Felipe Neto afirma ter lido “mais de quarenta obras” sobre o assunto, entre elas Nação Dopamina, da psiquiatra norte-americana Anna Lembke, com quem trocou mensagens. Agora, está escrevendo seu próprio livro, no qual pretende “conversar” com o público sobre o problema. “Não tenho a ambição de ser referendado pela academia. Minha proposta é dialogar com a juventude. Se alguns diminuírem o vício em celulares por isso, terei cumprido meu objetivo.”
Com alguns fios brancos na barba e no cabelo, ele avalia se logo não estará “velho pra essa coisa de YouTube”. “Em 2022 eu só pensava em política e aí foi natural o meu conteúdo de YouTube ficar mais adulto, tanto que estava atraindo mais os pais, menos os filhos.” Ele conta que cogitou se aposentar da produção de vídeos para as redes sociais. Mas desistiu da ideia. Em vez disso, decidiu mudar mais uma vez o estilo de seu canal na internet. “Quero resgatar o clima de garotada, de diversão. Comprei outra casa só para as gravações. Vou criar coisas como colocar pessoas em um galpão para disputar provas e ganhar prêmios.”
Em treze anos, Felipe Neto se consolidou como o youtuber de maior sucesso no Brasil e o quinto do mundo em número de seguidores. Somados, seus vídeos superam 16 bilhões de visualizações. Ele é também um dos influenciadores digitais mais bem-sucedidos financeiramente, mas evita falar sobre o assunto. “Não faço a menor ideia de quanto eu faturo por ano, pois são muitas fontes, como empresas, campanhas publicitárias, YouTube”, desconversa. “Minha mãe, que me ajuda a administrar as finanças pessoais, é quem me fala quanto tenho para gastar. Quando chega o fim do mês, ela diz: ‘Segura aí, filhão.’” Especula-se que o seu faturamento anual esteja na casa dos 60 milhões de reais. “O faturamento bruto é bem maior”, ele corrige, sem falsa modéstia. “Já o que lucra a pessoa física Felipe Neto deve ser um pouco menos.”
O influenciador não é avesso ao luxo. Costuma usar roupas de grifes como Louis Vuitton e se hospedar bem durantes as viagens, como fez no ano passado, ao escolher a suíte presidencial do hotel Le Meurice, em Paris, cuja diária custa cerca de 125 mil reais. “Mas não vivo em função desse mundo Balenciaga”, diz. “Não suporto comportamentos típicos de gente que nasceu rica, como a soberba. Aquele tipo que enxerga a classe trabalhadora como serviçal.”
Felipe Neto conta que sempre foi caseiro, até para evitar o assédio nas ruas. Com o seu posicionamento político, ficar em casa também é uma medida de proteção. Ele só consegue circular livremente, sem guarda-costas, em cidades no exterior – e em áreas onde não há muitos brasileiros. Na viagem a Paris no ano passado, resolveu fazer algo que há muito anos não fazia: ir a uma boate. Escolheu uma que tocava música colombiana. Não foi reconhecido na pista e se divertiu para valer. Ficou até admirado de ver alguém que julga mais famoso que ele se divertindo na mesma casa noturna, o rapper norte-americano Lil Nas X.
Apesar da exposição diária nas redes sociais, Felipe Neto é discreto quanto à vida privada. Vive sozinho em sua casa, acompanhado apenas de Depp, uma cachorra da raça lhasa apso. Durante o dia, divide o espaço com empregados que cuidam da casa, colegas que gravam com ele o canal de YouTube e trabalhadores que executam obras nos estúdios.
Na garagem, fica estacionado um SUV da BMW que ele pouco usa. Na sala de estar, dividida em dois ambientes, há mesas de jogos de tabuleiro e brinquedos da marca Lego (tema de uma nova série de vídeos de seu canal). As paredes estão repletas de quadros emoldurando reportagens sobre ele. Em destaque, o certificado da revista norte-americana Time, que o incluiu na lista anual das cem pessoas mais influentes do mundo em 2020. Das paredes envidraçadas da sala de estar, vê-se a piscina, sobre a qual há uma ponte, para que não seja necessário contorná-la para chegar ao outro lado. No térreo há ainda uma sala de cinema com três fileiras de poltronas, um estúdio de tatuagem e uma academia de ginástica.
No segundo andar, fica sua suíte, um quarto cheio de colecionáveis, como bonecos de personagens de filmes e séries de tevê (incluindo um boneco dele mesmo, trajado como na época do Não Faz Sentido, que lhe foi presenteado por uma fã), mais quatro cômodos – dois quartos de hóspedes, um com equipamentos e outro com o estúdio de gravação. No terceiro e último andar, escritório e biblioteca, incluindo prateleiras com prêmios ligados ao universo dos influenciadores digitais. Um amplo terraço entrará em reforma para se tornar outro estúdio, embora Felipe Neto tenha comprado outra casa, no mesmo condomínio e de dimensões similares, somente para as gravações.
Ele costuma acordar por volta das onze da manhã e, se não está em uma “fase de sedentarismo”, sua primeira atividade no dia é malhar, às vezes na companhia do amigo Bruno Correa e de um primo, que costumam compartilhar com ele a academia. Depois, lê as notícias do dia em sites e se atualiza sobre o que estão falando nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Por volta das duas da tarde, ele almoça. Só depois começa a trabalhar – e vai até nove, dez da noite. Quando terminam as reuniões e gravações, sua distração é assistir a filmes e séries no cinema da casa. Depois disso, dedica-se à leitura, até as três ou quatro da manhã, quando cai no sono.
Em dezembro de 2021, ele e a youtuber Bruna Gomes romperam o namoro e, desde então, Felipe Neto está solteiro. Quem frequenta a sua casa faz parte de um círculo de amigos muito próximos, que ele chama de Los 13. Entre os treze amigos, estão pessoas que, de alguma forma, tiveram suas carreiras impulsionadas por Felipe Neto. Em dezembro de 2020, quando a pandemia parecia arrefecer, ele decidiu marcar um compromisso presencial com amigos: toda semana, uma partida de futebol em um campo na Barra da Tijuca. Alguém filmou um dos jogos e o vídeo foi parar em um canal bolsonarista. Disseminou-se nas redes a fake news de que ele teria jogado futebol com os amigos ao longo do ano inteiro de pandemia. “Mentira, era apenas o terceiro encontro”, defende-se o influenciador. “Mas, mesmo assim, eu estava errado e pedi perdão. Voltei a me isolar totalmente por mais um ano.”
Durante o isolamento, Felipe Neto quebrou recordes de audiência com uma série em que se apresentava jogando Minecraft, um videogame de construção de mundos imaginários. Mas, até mesmo na difusão de conteúdos mais leves, ele coleciona polêmicas. Em fevereiro de 2021, foi banido de um site de xadrez por ter trapaceado o software. Para sorte dele, nada disso abala seus números extraordinários no YouTube.
Com a eleição de Lula, o humor de Felipe Neto mudou bastante. Ele se sente mais leve e planeja colocar de lado, ainda neste ano, o remédio contra insônia. “O medo em relação à segurança de minha família diminuiu muito”, diz. Depois da eleição, voltou ao hábito de almoçar nos fins de semana com a mãe, a avó e o irmão.
Ele tem feito inclusive algumas festas em sua casa, quebrando o isolamento que virou um hábito e abrindo-se à possibilidade de encontrar presencialmente novas pessoas. No campo amoroso, diz que o Instagram é um bom ambiente para flertar. Costuma combinar encontros em casa, mas não se sente pronto para assumir um relacionamento monogâmico (ultimamente tem se questionado se a poligamia não é a melhor opção para a vida afetiva).
Na noite de domingo de 30 de outubro de 2022, quando se confirmou a vitória de Lula, o plano de fuga para a Argentina foi logo desativado. Em vez disso, o influenciador festejou o resultado eleitoral em sua casa, acompanhado de amigos. Como mostram vídeos gravados pela turma, eles dançaram ao som de Tá na Hora do Jair Já Ir Embora, o hino antibolsonarista. Felipe Neto cantou “Olê, olê, olê, olá. Lula, Lula” e, numa explosão de alegria, deu aquele pulo na piscina, com roupa e tudo.
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