André Singer compara a adesão dos pobres ao lulismo à hegemonia democrata do New Deal de Roosevelt. Mas, no Brasil, as reformas de Vargas oram mais significativas que as de Lula ILUSTRAÇÃO: OS PRESIDENTES FRANKLIN ROOSEVELT E GETÚLIO VARGAS EM NATAL/RN, 1943_QUADRO DE RAYMOND P. N. NEILSON_ACERVO DO MUSEU DA REPÚBLICA_RIO DE JANEIRO
Marcha à ré para a frente
Em Os Sentidos do Lulismo, André Singer discute se os trabalhadores progrediram ou regrediram nos governos do PT
Mario Sergio Conti | Edição 72, Setembro 2012
No final de Os Sentidos do Lulismo, André Singer diz que muita coisa importante não decorre da luta de classes, “mas algumas decorrem”. É o caso de seu último livro, que faz uma análise com base na perspectiva das classes sociais dos oito anos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Singer é membro de longa data do Partido dos Trabalhadores. Jornalista profissional, ele foi secretário de redação da Folha de S.Paulo no final dos anos 80 e, com a experiência de repórter e editor, tornou-se porta-voz da Presidência da República no primeiro mandato de Lula.
Apesar disso, Os Sentidos do Lulismo não é obra de petista militante nem de jornalista. É um livro que reflete a opção tomada pelo autor ao sair do governo: a de se tornar tão somente um intelectual. No retorno do Planalto à Universidade de São Paulo, onde estudou e se tornou professor, ele voltou a dar aulas de ciência política, publicou ensaios sobre o lulismo e defendeu uma tese de livre-docência sobre o assunto que, modificada, deu origem ao livro recém-lançado pela Companhia das Letras.
A opção existencial de Singer pela academia fez com que, além da pergunta que orientou o seu trabalho – o que foi, e é, o lulismo? –, outro núcleo de questões percorresse a elaboração de seu livro: a tentativa de compreender a realidade não seria propaganda, ou uma justificativa disfarçada dos atos do governo do qual participei? Como faço para que a minha subjetividade não interfira nas conclusões?
Cada vez que a dúvida o abordava, Singer voltava às pesquisas eleitorais e de opinião pública, e reestudava as hipóteses de estudiosos que pensaram o mesmo período, chegando a conclusões dessemelhantes. Com zelo redobrado pelos elementos empíricos, e minúcia no debate de teses diversas das suas, Os Sentidos do Lulismo tem como primeira virtude a clareza. O livro organiza as informações – sobretudo índices sociais e econômicos, sob o ângulo das classes – acerca da natureza das modificações que se deram nos oito anos da administração Lula. A segunda virtude decorre do mesmo procedimento: Singer avança as suas hipóteses pé ante pé, cautelosamente, buscando escorá-las com números e informações.
Tais aproximações adquirem eficácia redobrada no panorama conturbado do colunismo político atual, marcado pela polarização aguda entre situação e oposição: na grande imprensa, a maioria dos colunistas é cega (e patronalmente) contra o governo anterior; na internet, boa parte de blogueiros e assemelhados é obtusa e (governisticamente) elogiosa a Lula.
Frente à gritaria – muitas vezes com motivação argentária – de uns e outros, sobressai a solidez de Lulismo. Essa solidez conduz a conclusões que, se racionalizam e revelam o sentido positivo dos governos petistas inaugurais, não permitem concluir que tal política possa vir a alterar de maneira duradoura a situação dos trabalhadores. O próprio subtítulo, que cristaliza a hipótese do livro, está longe de ser elogioso ou eletrizante: “Reforma gradual e pacto conservador.”
André Singer não faz propriamente uma análise histórica para demonstrar que a sociedade brasileira é conservadora. Tampouco situa o Brasil na paisagem contemporânea para demonstrar que, numa maré de reação capitalista, o conservadorismo teria razão de ser. Lulismo alude a certas condicionantes históricas (peso do passado escravocrata, décadas recentes de ditadura, tradição política predominantemente conciliatória) e sociológicas (precariedade da implantação capitalista e, por consequência, da organização independente dos trabalhadores, sindical ou partidária). No mais das vezes, ele vê o conservadorismo via pesquisas de opinião pública e resultados eleitorais.
Tais procedimentos podem ser enganosos: lembrar, numa enquete, a última onda de greves não significa, em si, que o entrevistado seja conservador em política. E às vezes a conclusão sobre o conservadorismo serve para justificar conjunturas pontuais. Lulismo sustenta, por exemplo, que a chave para entender a primeira eleição de Lula à Presidência encontra-se no movimento do PT para a direita na campanha eleitoral, consubstanciado na Carta aos Brasileiros (na qual o partido aderiu sem ambiguidades à manutenção da ordem) e na autodefinição do candidato com um mote conciliador, “Lulinha paz e amor”. Chega-se então a uma tautologia circular: o eleitorado mais pobre é conservador, e por isso votou no Lula que se apresentava como candidato da ordem.
O argumento deixa em segundo plano a história do Partido dos Trabalhadores, que surgiu e cresceu justamente por ser radical: votou contra Tancredo e Sarney no Colégio Eleitoral da ditadura, assinou com ressalvas a Constituição de 1988, não fez aliança com partidos da burguesia em 1989. Para Singer, esse PT não existe mais, acabou, tem uma base social diferente daquela que o definiu na fase inicial. E o novo partido que surgiu dos seus escombros se move segundo a dialética entre pobres e ricos, e não da luta classista de trabalhadores contra burgueses.
O autor também abstrai o colapso do real no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, a queda dos salários e o aumento do desemprego, configurando uma situação contra a qual o PT e o seu candidato se insurgiram nas eleições.
Já a reeleição de Lula é atribuída a uma política que não é conservadora tout court. Ou, ao menos, é de um conservadorismo distinto do que explicou a eleição anterior: a política do Bolsa Família e demais programas compensatórios, do aumento real do salário mínimo, do acesso ao crédito. Esse conjugado de medidas provocou, segundo Lulismo, um realinhamento da base eleitoral do ex-presidente. O candidato e o seu partido perderam apoio da classe média, que teve seu peso social relativizado pela ascensão da nova leva de consumidores pobres. Lula criou então raízes onde nunca conseguira antes, entre os nordestinos pobres do interior, a quem o Estado não assistia. Singer chama o núcleo dessa nova base de “subproletariado”, uma fatia numerosa da classe trabalhadora.
Nesse ponto da exposição, o autor recorre a’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, no qual Marx analisa o golpe de Estado de 1851, que derruba a república francesa e eleva Luís Bonaparte ao trono. É o ponto também em que Lulismo cresce: Singer usa a imaginação sociológica quando recorre a uma das ideias centrais da política moderna, a da representação, e a um dos regimes que marcam a crise da própria ideia de representação, o bonapartismo.
Em 2 de dezembro de 1851, diz O 18 Brumário, Bonaparte só pôde triunfar, e ser coroado Napoleão III, porque pertencia a uma dinastia criada na Revolução Francesa, a qual aboliu os privilégios feudais e sacramentou a pequena propriedade fundiária. Essa massa de pequenos proprietários camponeses vivia isoladamente, com laços sociais e comerciais tênues. Nos seus roçados, era irrisória a divisão de trabalho, a aplicação das ciências, a diversidade de desenvolvimento, a variedade de talentos. Como diz a imagem famosa:
A grande massa da nação francesa é constituída pela simples adição de grandezas equivalentes, mais ou menos como as batatas num saco formam um saco de batatas.
É por isso que os camponeses, o saco de batatas, não constituem uma classe. Não constroem uma organização política que defenda seus interesses materiais, em oposição a outras classes. Os camponeses, afirma Marx, não podem se representar a si mesmos, eles devem ser representados. É preciso que o representante deles apareça simultaneamente como o seu mestre, como uma autoridade superior, como um poder governamental ilimitado que os protege contra as outras classes e lhes dispensa do alto a chuva e o tempo bom.
Nenhuma analogia de fundo histórico tem encaixe perfeito. Quanto mais duas situações são aproximadas – como o golpe de 1851 na França e o Brasil do início do século XXI–, o que predomina são as diferenças. Num e noutro caso, de fato, as dessemelhanças são enormes: antes isolamento na roça, e hoje onipresença dos meios de comunicação massificadores; lá, abolição prévia do latifúndio no século XVIII, e aqui a vigência da grande propriedade, no XXI; na França de então, o Exército tinha papel preponderante, e no Brasil de hoje as Forças Armadas estão fora da política. Ainda assim, há o mesmo motor (parado): o papel passivo do campesinato do século XIX e a pasmaceira política do Nordeste agrário que votou em peso no Lula do Bolsa Família.
A representação política na qual uma massa popular delega ao líder o papel de representá-la parece espelhar a situação de Lula no segundo mandato. Esse apoio passivo lhe deu condições de conceder benesses aos superpobres. E também de atender aos reclamos dos super-ricos, na forma da ampliação de mercado propiciada pelo Bolsa Família e na concessão de ganhos rentistas maiores ao capital financeiro. O líder assim se alçou do solo das classes, pairando acima delas na sua política de conciliação.
Singer se recusa a rotular esse contingente de trabalhadores que adquirem algumas condições de consumo de “nova classe média”, como fazem os publicitários. Chama-os de subproletariado, fração atomizada de uma classe que quer ser protegida pelo líder e o Estado. Um subproletariado que desfruta de uma renda pequena, mas constante e impessoal. E que pode fazer crediário e comprar determinados bens de massa. Com essas melhorias na vida de uma porção dos trabalhadores, diminuíram os problemas mais graves do Brasil, a pobreza e a desigualdade social.
Lulismo avança então outra analogia. Com o realinhamento eleitoral de 2006, confirmado com a eleição de Dilma Rousseff, a nova organização das classes abriu um período duradouro no Brasil. Essa situação histórica teria parecença com o New Deal, o “novo acordo” feito pelo presidente F. D. Roosevelt nos anos 30, que combateu a recessão econômica, dirimiu a pobreza extrema e reconfigurou a economia americana.
A analogia não funciona com a força da anterior, com O 18 Brumário. Ela é mais especulação mal-ajambrada do que esclarecimento real. Isso ocorre porque a imagem literária de Marx – o campesinato enquanto saco de batatas – é uma metáfora sugestiva, fruto de uma análise política histórica e materialista, que adquiriu lugar de destaque nos conceitos da política moderna. Já o New Deal foi um conjunto de situações e medidas governamentais. Não é uma categoria política.
Ele foi o produto de um longo processo de lutas sindicais, e não apenas da eleição de Roosevelt. Visava combater a recessão provocada pela crise sistêmica do capitalismo em 1929. Suas principais medidas foram o investimento em obras de infraestrutura, o controle da produção e dos preços de consumo, a criação do seguro-desemprego, a proteção da velhice, e a edificação do sistema público e de Previdência. Entre as ações mais extremas estiveram a queima de estoques (para forçar a queda de preços) e a redução da jornada de trabalho (objetivando criar novos postos de emprego). Tudo isso tem pouco a ver com o Bolsa Família e o Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC.
Singer realça o que lhe importa do New Deal: a abertura de uma era de domínio do Partido Democrata na Casa Branca e, nos anos 50, a adaptação do republicano Dwight W. Eisenhower ao programa dos adversários. E compara: na eleição de 2010, o tucano José Serra divulgou um plano que aumentava a abrangência do Bolsa Família. Ou seja, prometia aumentar o que o PT fazia, demonstrando uma igualmente suposta adesão do principal partido de oposição a uma plataforma.
Essa adesão, para Lulismo, caracterizaria a união do Brasil, como nos Estados Unidos do New Deal, em torno do objetivo de mitigar a desigualdade social, diminuindo drasticamente o número de pobres, e permitindo o acesso deles a bens controlados pelo Estado.
Nas primeiras versões do livro, em artigos publicados na imprensa, a associação entre o New Deal e a conjuntura nacional era bem mais direta e mecânica. Na versão final, Singer atenuou e matizou a analogia. Agora ele fala em “sonho rooseveltiano do segundo mandato”, e expõe a sua hipótese principal na forma de pergunta: “Será o lulismo um reformismo fraco?”
Singer mora numa casa na Vila Madalena, a vinte minutos (sem trânsito) do campus da USP. Oriundo de uma família austríaca de esquerda, ele é um professor sereno, que não se emociona ao defender seu livro de restrições e ataques. Ele não espera que Lulismo seja lido por políticos profissionais do calibre de Lula, Dilma Rousseff e José Serra. E muito menos que venha a influenciá-los diretamente. No máximo, espera que seja lido por colegas de universidade, alunos e interessados em pensar o que ocorreu no governo anterior. E que, lentamente, algumas das suas ideias venham a ser usadas no debate político. Por essa via, quem sabe, tenham peso na vida nacional.
Ele descrê da revolução. Também não acredita na existência de um método marxista de apreensão e mudança da realidade. Pesquisador eclético, é um socialista reformista que “morrerá feliz”, conforme disse, se a sua geração (ele nasceu em 1958) acompanhar a diminuição da abissal desigualdade social brasileira – e que seja reduzido o panache da minoria, numericamente desprezível, que aufere rendas iguais às de mais da metade do povo brasileiro.
Pelo que ele escreve em Lulismo, o objetivo do fim da desigualdade radical estaria sendo gradualmente alcançado. E, igualmente significativo, nenhuma força política expressiva seria contra ele. Afinal, muitas empresas se beneficiam da expansão do crédito consignado, do poder de compra e do endividamento dos mais pobres.
Singer disse que a incorporação da nova massa de trabalhadores ao universo da cidadania está longe de ser o que ele, pessoalmente, considera adequada. A velocidade da inclusão é vagarosa – ainda não se atingiu o patamar existente quando do golpe de 1964, que aumentou o arrocho salarial e o desemprego. E, apesar dos ganhos recentes, a pobreza ainda é gritante. Ao se reconhecer que ela é caracterizada em muitos países pela ausência do acesso a bens mínimos para a vida – caso de esgoto, saúde e educação de nível –, o Brasil continua paupérrimo: mais de metade da população não dispõe de moradias com esgoto.
Por fim, programas como o Bolsa Família não se transformaram em direitos. Apesar das promessas recorrentes de Lula e Dilma, eles não foram emendados à Constituição, o que só pode ser feito com a aprovação de três quintos do Congresso. Por isso, em todos os quadrantes, Getúlio Vargas é considerado um presidente mais significativo, historicamente, do que Lula: nos seus governos, o salário mínimo, as férias gratuitas e toda uma série de benefícios foram institucionalizados por meio da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.
Na entrevista em sua casa, Singer se lembrou de Família Braz, os dois documentários que retratam a ascensão social de pai, mãe e filhos de um bairro periférico de São Paulo, a Vila Brasilândia. No segundo filme da série, a família que pouco tinha dispõe agora de quatro carros e vários eletrodomésticos. “A casa deles, porém, continua a mesma: pequena e desconfortável”, disse Singer. “E ter uma casa própria decente é um índice da incorporação social que continua muito longe da vida da maioria das pessoas.”
Singer acha que a incorporação poderia se dar de maneira mais rápida. Mas observa que, para se aumentar o ritmo da ascensão social, seria preciso fazer antes uma análise meticulosa da correlação de forças das classes. Ele nota que a pequena burguesia tradicional viu com repulsa a melhoria da condição dos mais pobres. Relembrem-se as imagens caras aos arautos do ressentimento: os aeroportos viraram rodoviárias; os bairros ricos têm que continuar “diferenciados”; o trânsito piorou porque agora todo mundo tem carro; não se encontram mais empregadas domésticas; todo petista é ladrão, Lula é analfabeto, Dilma não sabe falar etc.
Acelerar a redução da sobrepopulação superempobrecida, mesmo que sem afrontar o capital, implica enfrentar a demofobia aparatosa da classe média tradicional. Ela é insuflada por parte do grande capital e conta com os bons serviços de partidos, empresas, universidades, a academia, ideólogos e órgãos de comunicação. Muitos deles já demonstraram, desde Machado de Assis, como suportam pacientemente o sofrimento alheio. Mas se tornam belicosos – marcham com Deus pela Família e a Propriedade, apoiam que se arranquem as unhas de oposicionistas etc. – quando desafiados, mesmo que por meio da mera presença física, por trabalhadores que não sabem o seu lugar. E o lugar certo deles é na frente da televisão: para que possam acompanhar a subtrama só deles no kitsch novelesco das oito da noite, e consumir mercadorias comezinhas em prestações (e juros) a perder de vista.
O papel dos intelectuais de esquerda, avalia Singer, seria pressionar pelo aceleramento da diminuição da pobreza, ao mesmo tempo que avalia a conjuntura e a relação de forças entre as classes. Seria preciso bem aquilatar a reação dos reacionários, para, se for o caso, avançar: vide o que ocorreu em março de 1964.
Lulismo é encerrado com um posfácio de ordem pessoal, que resume a trajetória do autor. Ele tem como título um verso de Carlos Drummond de Andrade que alude a situações de bloqueio, desafio e enigma: “No meio do caminho tinha uma pedra.” O empecilho geral do título é retomado nos três subtítulos que dividem o posfácio: “tempos de esperança”, “tempos de experiência” e “tempos de reflexão”.
André Singer pertence à geração que despertou para a política na década final da ditadura militar. Eram tempos de esperança porque se impunham derrotas aos militares, e o movimento dos trabalhadores renascia com uma perspectiva antistalinista e democrática. Na cena internacional, o imperialismo americano era derrotado no Vietnã, a Revolução dos Cravos derrubava a ditadura em Portugal e a burocracia periclitava ante o sindicalismo livre do Solidariedade.
Mas havia uma pedra no meio do caminho. A ditadura não caiu devido à força popular, a modernização conservadora tomou o lugar do radicalismo, a adesão ao projeto neoliberal foi feita à custa de arrocho e mais concentração de renda até que, por fim, o PT tomou o poder. Foram tempos de experiência para André Singer. Tempos também de expectativas sociais rebaixadas, de adaptação pragmática aos horizontes do capital e, a se depender da pessoa ou grupo, de desencanto ou cinismo.
Agora, os tempos são de reflexão. A meditação feita por Singer em Lulismo, além de clarear os limites das transformações operadas nos últimos dez anos, pode servir também para condensar a imagem que o regime faz de si mesmo, no plano intelectual: sublinhar os ganhos populares no período, não enxergar alternativas mais rápidas de progresso, advogar a conciliação e não a luta de classes, combater a desigualdade miúda e receosamente, sem recorrer à mobilização dos mais fracos nem injuriar o capital.
É uma reflexão que não se preocupa em localizar a situação brasileira no âmbito do capitalismo mundializado. Lulismo cita mas não se estende na investigação do papel do crescimento acelerado da China na sustentação das taxas de exportação de matérias-primas nacionais. Ou a desindustrialização local. Ou a financeirização crescente do capital. Ou o avanço da terceirização e dos serviços nas grandes cidades, em detrimento do trabalho propriamente proletário. Ou a explosão dos planos de saúde e de ensino privados, mercantilizando setores que a Constituição de 1988 e todos os congressos e programas do PT consideravam dever do Estado e direito do povo. Reconheça-se que, para dar conta de tudo isso, talvez fosse preciso esperar alguns anos, e então escrever outro livro.
Mas como Singer nota a situação geral apenas num adendo final, a experiência brasileira adquire, na sua visão, um caráter mais linear. O que também facilita sonhar com um período de longa duração no qual se reconhecesse como tarefa “nacional” – e não de uma classe e seus aliados – a diminuição da pobreza.
É isso mesmo, um sonho: a adesão do grosso da burguesia brasileira a esse objetivo não ocorreu. Umas poucas frases do candidato do PSDB em prol do Bolsa Família, num programa eleitoral, têm tanto significado quanto a promessa de aumento do salário mínimo. Como ensinaram os governos de Fernando Henrique Cardoso, uma coisa e a outra não são prioridades para os tucanos.
De forma semelhante, acontece em Lulismo o mesmo com a política internacional. Primavera Árabe, crise do euro, recessão na Grécia e na Espanha, Ocuppy Walt Street, a falência do neoliberalismo na América Latina – todos esses movimentos, de alcance maior ou menor, influenciam e influenciarão a situação nacional. Os governos Lula se beneficiaram de uma situação internacional que lhe foi favorável, principalmente do desenvolvimento do capitalismo na China, conduzido por uma ditadura de partido único, nominalmente comunista. E é impossível prever até quando tal situação perdurará, propiciando a manutenção da situação brasileira dos últimos anos.
Quanto à integração dos programas assistenciais na Constituição, por certo que não é indiferente se um ganho material é anexado à Lei Maior. Mas essa codificação, por si só, pouco garante. No próprio 18 Brumário, Marx observa que a Constituição exigia que o presidente da República tivesse cidadania francesa, e Luís Napoleão tornou-se o primeiro presidente com cidadania… suíça. Nada é pétreo numa Constituição.
Perto de nós, a Constituição de 1988 tem um punhado de artigos garantindo direitos populares básicos – e eles são letra morta por desígnio do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Agora mesmo, ao lado, no Paraguai, um presidente foi afastado do poder em poucas horas (com os aplausos entusiasmados da elite brasileira, e murmúrios pro forma do petismo), apesar de a Constituição do país garantir o direito de defesa.
Oantagonista explícito de Lulismo, nomeado pelo próprio André Singer, é o sociólogo Francisco de Oliveira. A desavença entre ambos diz respeito à caracterização do resultado social dos governos Lula. Para Singer, como se viu, a fase é de progresso, de incorporação dos trabalhadores na vida nacional. Apesar de o progresso ser lento e precário, há uma queda real da desigualdade.
Para Oliveira, a fase é de regressão. Com a economia nos centros capitalistas numa fase de revolução científica e tecnológica, os programas assistenciais brasileiros mantêm os trabalhadores à margem do progresso real. Com isso, os governos petistas aceitam a desindustrialização e o atraso social. Diminuir a desigualdade nesse quadro é uma quimera: os super-ricos brasileiros existem porque há os superpobres. Uma condição não existe sem a outra.
No âmbito da política, os governos de Lula, continuados pelo de Dilma, desmobilizaram as iniciativas vindas de baixo. Sindicatos, Movimento dos Sem Terra, centrais de trabalhadores, todos foram, alguns menos e outros inteiramente, cooptados pelo poder. Lula vestiu o velho figurino populista do líder providencial, que concede benemerências e pede votos. Assim como a sua sucessora, foi auxiliado pela indústria cultural, pelas igrejas e seitas religiosas, e pelo PT que fez as pazes com o capitalismo.
O modelo do lulismo não parece ser apenas Luís Bonaparte, o Pequeno. Ele também comporta Getúlio Vargas, o Outro Pequeno. Um Getúlio que, quando a reação udenista e militar o encurralou no Palácio do Catete, em 1954, não houve povo organizado que o defendesse. Estava ele, o povo, com as bênçãos do PCB, desorganizado e entregue à lógica da mercadoria. Só saiu às ruas com o suicídio do líder. Mas aí já era tarde.
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