Meu máster chefe
O vencedor e os finalistas do mês
| Edição 169, Outubro 2020
NOSSO CONCURSO LITERÁRIO CHEGA AO FIM
NOTA DE PESAR
Após ter completado uma volta inteira em torno do Sol, é com a mão no peito e uma certa dor na consciência que informamos que o nosso trepidante concurso se encerra por aqui. Agradecemos a todos que participaram com seus textos malucos, infames, obscenos, sofríveis, divertidos, perturbadores e até mesmo publicáveis. Vocês mostraram que brincadeira é coisa séria e toparam o desafio com sincero ímpeto e destemor, como um Brancaleone que não tem medo do ridículo e não se dobra ao desafio. Valeu, pessoal! E viva Macunaíma, nossa eterna inspiração! Saravá!
Nesta última rodada, a frase a ser encaixada era “Imagine-se em um barco num rio com árvores de tangerina e céu de goiabada”, e o elemento estranho, “Tubaína”.
O VENCEDOR: Flávio Sanso compôs uma história muito bem concatenada e encerra com pena de ouro a reta final do nosso concurso. Parabéns!
Leia abaixo o texto vencedor e os finalistas do concurso deste mês.
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MEU MÁSTER CHEFE
FLÁVIO SANSO
Diziam que eu era louca, bem mais louca que os outros tipos que frequentavam as madrugadas das ruas do Centro de São Paulo. Eles ao menos não tinham escolha. Mas, de certo modo, eu também não, afinal nunca na minha vida sossegaria até encontrar João Cipriano dos Reis.
Seu Cipriano foi meu paciente por quase um ano. Tudo o que ele me contava tinha a ver com o período em que trabalhou como cozinheiro num pé-sujo do Glicério. Como seus relatos davam conta de pratos apurados e receitas sofisticadíssimas, desconfiei que a maior parte do que ele falava era manifestação de sua esquizofrenia. Pois então por isso tive a ideia de sugerir que me trouxesse uma amostra de qualquer coisa que ele quisesse cozinhar. Já no dia seguinte, quando desembrulhei a quentinha, o perfume da comida era prenúncio do que em instantes seria a melhor experiência gastronômica que eu jamais havia tido. Lisonjeado com minha reação, Seu Cipriano perguntou se podia continuar a trazer o produto de suas receitas. Eu, que nunca fui de desestimular o talento alheio, aceitei. Cada dia uma comida mais deliciosa que a outra. Numa ocasião, olhei para as balinhas de gengibre na mesa do consultório e ofereci uma delas como aposta, dizendo que tentaria adivinhar os ingredientes usados naquela alquimia de sabores. Sem que eu tenha acertado uma única vez, Seu Cipriano foi esvaziando o pote de balinhas dia após dia até não restar nenhuma. “Tendo devoção pelo preparo, o cozinheiro pode fazer uma galinha parecer faisão”, profetizava ele.
O fato é que Seu Cipriano era um gênio comparável a Bispo do Rosário, a Van Gogh, nisso inclusive havendo a possibilidade de que algum de seus surtos provocasse a perda de uma orelha ou, para imenso prejuízo da culinária, de um ou mais dos próprios dedos. Sua genialidade podia ser percebida na maneira sinestésica de expressar os pensamentos, sonhos, devaneios. Certa vez, para tentar entender o funcionamento de sua mente, sugeri que me fizesse imaginar onde ele gostaria de estar naquele momento. Ele, então, disse: “Imagine-se com os pés afundando levemente na areia fina de açúcar a caminho do mar púrpura de amora. Imagine-se em um barco num rio com árvores de tangerina e céu de goiabada.” Acontece que Seu Cipriano de um dia para o outro deixou de se consultar e nunca mais apareceu no centro de apoio social.
Fiz contatos, conversei com os parentes dele, tudo em vão. Nunca mais soube do Seu Cipriano. Até que um dia, um dos meus pacientes contou que estava morando na rua e por acaso fez menção a um outro morador de rua que pelas madrugadas costumava cozinhar a céu aberto, atraindo filas de mendigos, prostitutas, pessoas sem-teto e usuários de drogas que, conforme informou meu paciente, se entregavam por algum momento a outro tipo de entorpecimento, o de provar a comida mais gostosa de todos os tempos.
Por madrugadas afora, passei a percorrer o Centro de São Paulo, navegante a perigo cuja bússola de salvação foi o aroma de um tempero familiar que finalmente me levou aonde Seu Cipriano, cercado de gente, manuseava um improvisado fogão a carvão. Não levei muito tempo para constatar que seu estado havia se agravado. Durante a nossa conversa, a todo momento ele se dizia um anjo enviado dos céus com o propósito de alimentar corpos e almas. Resolvi retornar sempre no mesmo horário e, ali ao ar livre, na escuridão iluminada por pontos de brasa – do fogão e dos cachimbos –, prestei assistência ininterrupta a Seu Cipriano. Com o tempo, houve melhora significativa no seu quadro alucinatório. E eu, no final das contas, me vi no papel de ajudar a servir a comida de procedência e sabores divinos.
Atualmente, Seu Cipriano é o chefe de cozinha de um restaurante charmoso da Vila Madalena. Outra novidade é que agora ele é também especialista em bebidas exóticas. Lembro do dia em que, encobrindo com o guardanapo de papel a lista de ingredientes, escolhi no cardápio um drinque de nome sugestivo: Seiva dos Deuses. Depois, copo já vazio, solicitei ao garçom que chamasse o chefe. Seu Cipriano apareceu vestido num uniforme que lhe caía muito bem. Tirei da bolsa uma balinha de gengibre, mostrei a ele e arrisquei: “O sabor cítrico é do suco de tangerina que contrasta com o doce do creme de goiabada. Tudo misturado a licor de kiwi amarelo, cachaça e um toque gasoso de espumante.” Orgulhoso de sua invencibilidade, Seu Cipriano me corrigiu, dizendo que eu estava quase certa. O toque gasoso era de Tubaína.
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FINALISTAS:
FUMOS E VOLTAMOS
ADILSON ROBERTO GONÇALVES
Elisa me deu carona para ir à festa do pós-corona, de máscara e sem azaração porque o bicho tá pegando, avisa com ênfase. Fui, fiquei a três metros de qualquer pele ou pelo. Distância mais ou menos, calculada com birita; não dá pra saber se é pé, jarda ou litro por centímetro quadrado. Rolou uma erva pantaneira, ela disse que queima bem, até os barrigas-verdes, os caretas dos catarinas, estavam começando a apreciar tais fumos e “impeachando” quem fosse contra. Provei e traguei.
Na viagem onírica brasileira, toda descoberta genuína é trocada por jabuti ou jabuticaba. Tudo aqui é jabuticaba, parece que só tem aqui. E elas voam. Mas trocando marmelada por goiabada dá para pensar em viajar com essas ervas pantaneiras queimadas? Imagine-se em um barco num rio com árvores de tangerina e céu de goiabada, doce feito com o fruto da própria goiabeira, para sentir o próprio “filho do homem” se revelando em chamas, mais algumas. Tangerina exótica, mexerica aqui e bergamota lá no quase ex-Brasil. Queimando as narinas senti o corpo quente depois de seis meses de reclusão monastérica. A distância social foi mantida. Numa festa? O conjunto de revelações parecia mais uma aula de termodinâmica, com tanto processo exotérmico acontecendo. Quase esqueci que não tinha mais vestibular nem ENEM este ano.
O desafio para um frouxo como eu é peitar a vergonha de ter medo do coronavírus e tomar Tubaína e não ficar de fumacê adolescente, aconselhava Elisa. Não sabia que ela era conselheira e agente nutricional. Imagina se não houvesse céu esfumaçado nem paraíso emporcalhado de mercadores da teologia da prosperidade, própria, não alheia, eu refutei. Ela nem olhou pra mim. A erva era boa.
A festa já acabou, eu acho, porque Elisa me levava embora. Voltamos feito baile veneziano, a máscara suja pendurada no queixo, desentendido de sua função. Carona ou uber, não sei. Estirado na cama fui acordar para tocar a quarentena quebrada e a distância à educação. Elisa foi pra casa dela, creio.
Entre a vídeo-aula da professora que chorou quando abrimos a câmera para ela entender que existíamos e a palestra do coaching de gerenciamento de emoções pessoais para lidar com a perda de conexão em banda larga, quase adormeci. Ou entrei na modorra. Rebote da festa, ainda que à distância, não deixou longe os efeitos. Devo ter escutado que é fogo-fátuo o que descobriram em Vênus e pensei na preservação da hemorróida presidencial cauterizando com esses fumos que se evolam.
Enquanto isso, Lucy in the Sky with Diamonds ia tocando no fone conectado na radioweb do repositório de clássicos. O carbono que aqui queima não é o mesmo que brilha lá, lembrei de Arthur C. Clarke e do filme Yesterday com um mundo sem os Beatles. Produzido por alta temperatura e pressão, só isso diferencia o diamante do lápis que ainda uso, escorregando pelas mãos. Como seria o mundo sem o ogro? Efeito dessas idas e voltas, muita lama rola por baixo desta ponte até a foz, muita dama recebe 89 mil do… de quem mesmo? Não vou lembrar. Que a musa se alevante nas manchetes dos jornais, ainda não queimados em cinzas.
O cheiro da fumaça continua entrando no quartinho do fundo, o século XX não quer ir embora, o sinal da internet é melhor lá e quase não se ouve a cachorra latindo.
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DOSSIÊ MAIS QUE SECRETO DE INTELIGÊNCIA
GUIDO SANTOS
Dia 1: Sucesso! Me infiltrei na célula suspeita de atividades subversivas: “Centro Esotérico Sutra”. Acusação: apologia ao livro pornográfico Kama Sutra. Estou bem disfarçado: barba e cabelo grandes, chinelo e tatuagem de henna. Vi homens de saia falando sobre “desconstrução de padrões”. Sem dúvida, são agentes da ideologia de gênero. Atento.
Dia 2: O guru conduziu uma meditação guiada. Mandou repetirmos, mentalmente, uma frase: “Imagine-se em um barco num rio com árvores de tangerina e céu de goiabada”. Parece um código, que não consegui decifrar. Pedi ajuda a meu contato na Funarte e ele solucionou o mistério: é uma adaptação da música Lúcia no Céu com Diamantes, escrita por um bando de maconheiros liderados por um tal de João Limão – que, meu informante assevera, fez um pacto com o diabo e os soviéticos. Agora entendo o plano dos elementos: destruir o cristianismo e o Ocidente, para construir um reino satânico e socialista. Tudo começa a fazer sentido.
Dia 3: Pista quente: o guru citou um nome. Dalai Lama. Deve ser o líder deles. Após uma extensa investigação na Wikipédia, descobri que esse elemento nasceu… adivinhe onde? Sim, na China COMUNISTA. Coincidência? Eu acho que não.
Dia 4: Começam a suspeitar de mim. Sem querer, derrubei meu celular e um dos barbudos me devolveu o aparelho. Agradeci com um “obrigado”. Ele ficou perplexo. Merda! Esqueci que eles só agradecem falando “gratidão”. Preciso ser mais cauteloso.
Dia 5: Participei da “Declamação de poemas por homens sensíveis”. Um escândalo: poesia não é coisa de macho. Um barbudo começou a dinâmica recitando o soneto Universo Paralelo ou Universo Perpendicular?. Não entendi nada, nunca fui bom em geologia. Por questões de segurança nacional, enviei a transcrição para análise de um amigo da saudosa Divisão de Censura de Diversões Públicas, dos gloriosos tempos da Revolução (mas o parecer foi curto e grosso: “em que pese a estupidez e o mau gosto, não atinei a comprometimentos ideológicos outros”). Quando chegou a minha vez, resolvi mostrar como a arte brasileira da próxima década deve ser: heroica e nacional. Ou não será nada. Declamei então uma bela ode, intitulada Pra cima deles, Capitão. Ao terminar, completo silêncio. Acho que não gostaram. Um homem quebrou a tensão recitando O fardo do homem descontruído. Quando encerrou os versos (Ó, mulher empoderada/Me desculpa por ser homem/E passa logo teu Zap!), recebeu uma chuva de aplausos. Até que gostei. Sou a favor de toda forma de amor hétero.
Dia 6: Tentativa desesperada de manter o disfarce: convidei um dos barbudos pra fumar a famigerada maconha (que obtive de forma lícita, apreendendo de um usuário na rua). Mas o elemento recusou: “Não fumo erva do tráfico. Tem uma energia negativa”. Então tirou do bolso uma tal de hidropônica. “Eu mesmo cultivo”, falou. Fumamos. Realmente, era da boa. Não que eu já tivesse fumado antes. Óbvio que não! Então como eu sei que era boa? Simples, porque estou chapado até agora! Quando terminamos, senti uma fome imensa. Fomos até uma lanchonete. Ótima chance de extrair informações! Eu estava confuso e lento, mas sempre discreto. O barbudo pediu uma Tubaína. “Comunista safado”, pensei. Quem é de direita, pede cloroquina. De repente, reparei na estampa da sua camiseta: um elefante com quatro braços. Confuso, perguntei o que era aquilo. “O Deus Ganesha”, respondeu. Não consegui disfarçar meu espanto: “Mas esse não é o Deus de Israel”! Antes que ele fosse capaz de reagir, reparei que, abaixo do elefante, havia uma cruz, semelhante a um cata-vento… “É uma suástica!”, bradei. Emocionado, dei um apertado abraço hétero nele, que respondeu: “É um símbolo místico!”. Dei uma piscadela cúmplice: “Claro, quem nunca usou essa desculpa?”. Não sei o motivo, mas ele ficou assustado e se evadiu.
Parecer final: Acho que o disfarce foi por água abaixo, mas tenho certeza que as informações obtidas vão ser fundamentais no combate aos grupos subversivos. Minha missão acaba por aqui, mas, se precisar que alguém apreenda o cultivo hidropônico do elemento interrogado, pode contar com meu patriotismo. Garanto que vou queimar tudo!
Abraços héteros, Capitão! Do agente especial da sua Abin particular (a que funciona).
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DONA ROSINHA
JONATA R. FRESCHI
Dona Rosinha era velha. Mas velha tal qual aquelas velhas das crônicas do Veríssimo, das bem surdas. Junto a Dona Rosinha vivia, em um apartamento de 35 m2, sua neta Roberta, que veio do Rio para São Paulo em 2018 para continuar seus estudos e acabou se hospedando junto à parente, que andava muito sozinha.
Todas as noites era costume de Rosinha assistir aos noticiários, pois embora tivesse aprendido a ler suficientemente bem, desde que enviuvou tomou o televisor como cônjuge e deixou a leitura das letras miúdas aos mais jovens.
Vez por outra, enquanto assistia às notícias no volume máximo da televisão de tubo, perguntava à Roberta coisas do tipo:
– Filhinha, quem é esse tal de Gouvêa Monossauro que vive cortando os bolsos dos outros?
– Bolsos? Não, vovó, são as bolsas. Bolsas de estudo, igual àquela que eu costumava ter… E é Governo Bolsonaro que eles disseram, o governo do nosso atual presidente da república.
Rosinha sempre assentia com um prolongado “Aaahmmm”, pois na maioria das vezes continuava sem ter entendido direito o que a neta lhe dissera.
Mesmo sem entender corretamente, se mantinha o tempo todo vidrada nas palavras que saíam do televisor. Naquele momento o então presidente, em entrevista na frente do Palácio do Planalto, falava sobre a sua relação com o ministro da Economia, Paulo Guedes:
– O meu casamento com o ministro continua indo muito bem, tá okay? O Paulo Guedes andou dizendo umas coisas de mim aí na imprensa, pelas minhas costas, que eu não gostei, mas me pediu desculpas na última sexta-feira e vamos continuar curtindo a nossa lua de mel. Só pra deixar claro para vocês, o casamento hétero entre um presidente e um ministro funciona assim: Imagine-se em um barco num rio com árvores de tangerina e céu de goiabada! É mais ou menos isso! O barco está desgovernado, mas o casamento tá dando certo porque temos as laranjas pra botar a culpa e os goiabas pra ocupar umas cadeiras.
Nesse momento, Dona Rosa questionou a neta se havia ouvido certo, e dessa vez Roberta teve que concordar que Rosinha tinha ouvido perfeitamente bem.
No último dias, no entanto, a anciã andava preocupada com outra coisa, com o tal do coronavírus. A Shirley, sua vizinha de porta, outro dia mesmo havia batido as botas pela doença, apesar de ter seguido todas a recomendações da nova enciclopédia médica brasileira, o WhatsApp: consumiu cinco frutas ácidas deitada de ponta-cabeça, tomou três litros de água em jejum, faz gargarejo com garrafada do norte em noite de lua cheia, e nem assim se safou da peste. Triste ocaso.
Roberta, apesar de preocupada com a avó, passava os dias todos fora procurando por um bico aqui, outro acolá, para ajudar nos custos da casa, já que tivera sua bolsa de estudos cortada pelo governo. Naquele dia chegou tarde da noite e entrou mansa no apartamento, pois naquele horário normalmente a avó já estava cochilando enquanto assistia ao noticiário. Roberta não ouviu o costumeiro ronco que deveria ecoar pelo apartamento, embora a velha estivesse de olhos fechados no sofá. Estava morta. Ao lado do corpo desfalecido, quatro garrafas vazias de Tubaína.
Roberta derramou uma lágrima. Sabia que devia ter sido mais enfática ao explicar à avó que o nome do remédio que ela tinha ouvido no noticiário da noite anterior não era Tubaína, mas Cloroquina… Dona Rosa era diabética, morreu de surdez…
(fim)