Preta, a fotógrafa, com Preta, a boneca: em três das quatro tentativas de suicídio, ela tomou doses cavalares de sonífero. Na última, ingeriu chumbinho, um raticida bastante popular CREDITO: ANDRÉ VALENTIM_2020
Muita coisa!
A pandemia e a saúde mental nas favelas
Armando Antenore | Edição 168, Setembro 2020
Ela se chama Preta. Tem os cabelos bem crespos, olhos arregalados e lábios tão vermelhos que parecem sangrar. Usa bermuda com desenhos psicodélicos, camisa de mangas curtas e uma gravata-borboleta azul, que lhe confere um ar mais burlesco do que solene. É uma boneca de pano e a principal companhia de Diene Carvalho Silva desde que o novo coronavírus pôs o Brasil em distanciamento social. Na segunda quinzena de março, a fotógrafa e produtora cultural de 32 anos decidiu atender os conselhos das autoridades sanitárias e se isolou. Por sofrer de asma e de “tudo com ite” (“sinusite, rinite…”), temia não resistir caso pegasse a Covid-19. Como acabara de entregar o imóvel onde morava de aluguel, pediu guarida para um conhecido.
Ao longo de um mês e pouco, a jovem e o anfitrião dividiram uma quitinete sem janelas na Favela do Guarda, em Del Castilho, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois, a moça se mudou para os fundos de uma ONG, a Mulheres de Peito e Cor, que auxilia pacientes com câncer de mama, sobretudo negras. Jacqueline Faria, coordenadora da instituição e uma amiga recente, lhe permitiu ficar ali, de graça. Localizada no Engenho Novo, outro bairro da Zona Norte carioca, a Mulheres de Peito e Cor parou de funcionar na fase mais rigorosa da quarentena. Assim, a hóspede pôde ocupar sozinha a edícula da ONG. Com sala, dois quartos, cozinha e banheiro, a casa não dispunha de televisão, e o wi-fi que a servia oscilava bastante.
Entre o fim de abril e o princípio de julho, a fotógrafa só deixava o modesto refúgio para compras básicas. Passava as horas lendo, ouvindo música, praticando ioga, cuidando das refeições e interagindo nas mídias sociais, quando o sinal da internet colaborava. Não raro, conversava com Preta. A jovem ganhara a bonequinha negra no começo de março e logo resolveu tratá-la pelo apelido que ela própria carrega desde a infância. “Sempre me reconheci mais como Preta do que como Diene”, contou numa das dezenas de ocasiões em que falou com a piauí por celular ou WhatsApp. “Tu, inclusive, pode me chamar de Preta. Vou gostar.”
Toda vez que se preparava para dormir, Preta, a fotógrafa, aconchegava Preta, a boneca, no leito. As duas compartilhavam o travesseiro e o cobertor. Frequentemente, de madrugada, Preta acordava e verificava se Preta continuava por perto. Vai que a boneca tivesse despencado da cama… Preta também criou o hábito de desabafar com a parceira e de lhe relatar tudo o que fizera durante o dia. “Soa um tanto bobo, mas a presença dela me tranquilizava. Eu não queria sobrecarregar os outros quando a barra pesava, entende? Melhor choramingar com a Preta do que perturbar alguém pelo telefone.” De certa maneira, a boneca desempenhou para a moça o mesmo papel que a bola de vôlei teve para o personagem de Tom Hanks no filme Náufrago.
Enquanto vivenciava o isolamento, a fotógrafa amargou períodos de agonia, desânimo e hesitação, mas nada que não conseguisse tourear. Em geral, dormia bem, acordava disposta e conservava o otimismo. Mesmo a falta de dinheiro não a desesperava. “Fiquei praticamente sem trabalho e quase não tinha poupança. Em compensação, gastava pouquíssimo. O mínimo me bastava e confortava.” Foi tudo muito diferente de outra quarentena, bem mais penosa, que se deu há quatro anos e acabou semeando na jovem o desejo de organizar agora uma rede digital de assistência psicológica, o Cada Trauma Importa.
Naquela aterradora noite de 2016, Preta caminhava pela Presidente Vargas, célebre avenida que liga a Zona Norte à região central do Rio. “Não me recordo do mês exato. Julho? Talvez agosto? Desculpe… Esqueci boa parte do que rolou na época. De vez em quando, ainda me esforço para lembrar os detalhes, mas…” Ela passara a tarde na farmácia de Copacabana onde gerenciava o setor de entregas. Mal terminou o expediente, pegou o ônibus e se dirigiu para a faculdade em que cursava engenharia de petróleo. Estava no último dos dez semestres.
“O campus fica em frente à avenida. Depois que saltei da condução, andei até a faixa de pedestres e, enquanto cruzava a Presidente Vargas, travei. Sem qualquer motivo aparente, não conseguia mais me mexer, e caí num choro incontrolável. Meu coração disparou, minha cabeça entrou em parafuso, e um medo imenso de morrer tomou conta de mim. Uma colega que me acompanhava percebeu a situação e me tirou dali antes que o sinal abrisse.”
Nenhum pensamento sombrio ou episódio desagradável importunara Preta naquele dia até o congelamento repentino. Ela tampouco se considerava uma pessoa especialmente melancólica, angustiada ou medrosa. Pelo contrário: volta e meia, pontuava as frases com um gargalhar tão simpático que diversos amigos a chamavam de Sorriso. A risada solta, aliás, a caracteriza ainda hoje, assim como os penteados afro e a expressão “muita coisa”, que emprega quando deseja manifestar apreço por algo. Preta, curtiu o filme? “Sim, muita coisa!”
O costumeiro equilíbrio psíquico da estudante se harmonizava com o corpo vigoroso de quem lutava jiu-jítsu e muay thai, o boxe tailandês. Para manter o peso de 55 kg, bem distribuído em 1,63 metro de altura, a moça também adotava uma dieta balanceada e, embora comesse de tudo, dificilmente se excedia no garfo.
Nascida em Cururupu, cidadezinha do litoral maranhense, Preta é filha de um pequeno comerciante com uma assistente social. Cresceu ali mesmo, rodeada de zelo e na companhia de três irmãos, todos homens. “Meus pais não nadavam em dinheiro, mas nunca nos deixaram passar necessidade. Diziam: ‘Vejam à vontade os desenhos animados de vocês, nem que a gente tenha de pagar 200 contos de energia elétrica.’ Bastante protetores, não permitiam que fôssemos sozinhos até a esquina ou que brincássemos diante de casa sem a presença deles. Valorizavam demais os nossos estudos.”
Preta, que só frequentava colégios públicos, acabou virando aluna exemplar. “Eu gostava principalmente das disciplinas de exatas.” Ao completar 17 anos, partiu de Cururupu para concluir o ensino médio em São Luís, onde morou com um tio. Depois, pensou em ingressar no Corpo de Bombeiros e começou a formação de oficial. Logo desistiu da ideia. Voltou à terra natal e prestou vestibular para licenciatura em física, curso oferecido pela Universidade Estadual do Maranhão na própria cidadezinha. Conquistou a vaga, fez quatro semestres e, novamente, mudou de planos. “Eu me sentia confusa. Era bem garota e não sabia direito que profissão seguir. Quando me decepcionei com a física, descobri a engenharia de petróleo e pirei: ‘Muita coisa! Vou arriscar.’” A opção lhe exigiria sair outra vez de Cururupu. “Resolvi me graduar por uma faculdade particular do Rio, que se destacava na área.” Arranjou um financiamento estudantil e, em 2011, chegou à capital fluminense. Tinha 22 anos.
De início, rachou apartamento com uma conterrânea em Laranjeiras, na abastada Zona Sul. Mais tarde, conheceu um atendente de livraria, se casou e migrou para o Irajá, bairro tradicional da Zona Norte. Na esperança de engordar o salário que a farmácia de Copacabana lhe pagava, montou uma loja virtual e passou a revender roupas femininas, que comprava dos fornecedores com desconto.
Tudo, portanto, parecia correr às mil maravilhas quando Preta estagnou em plena Avenida Presidente Vargas. “Não sei como consegui voltar para casa naquela noite, mas voltei. De manhã, continuava péssima. Um cansaço… Uma aflição… Um desejo permanente de chorar… Onde estava a Preta de sempre? Eu não tinha forças nem para erguer uma colher e levar comida à boca. Só queria me deitar em silêncio, de preferência no escuro. Perdi totalmente a noção do tempo. Meu marido, alarmado, perguntava: ‘Amor, o que te deixou assim?’ Ele repetia a pergunta sem parar e não ouvia resposta nenhuma.”
A misteriosa tempestade que fustigou Preta demorou um ano e meio para desaparecer por completo. Em certos momentos, amainava um pouco, mas logo recrudescia de novo. Enquanto enfrentava o vendaval, a moça peregrinou por consultórios psiquiátricos e psicológicos, recebeu o diagnóstico de síndrome do pânico e depressão, tomou remédios, emagreceu 15 kg, largou a faculdade, abdicou da loja virtual e do emprego, rompeu o casamento e tentou o suicídio quatro vezes. Não bastasse, afastou-se de quase todo o convívio social durante sete meses. “Me fechei dentro de casa, absolutamente solitária, e mergulhei em mim. Precisava me investigar para ver se achava uma resposta à pergunta do meu ex-marido: O que, afinal, havia me deixado tão frágil?”
Depois de sair do confinamento, Preta ainda necessitou de um tempo para se aprumar. Quando sentiu que a tormenta se dissipava, teve vontade de dividir com outros jovens os aprendizados da crise. “Pensei, sobretudo, no pessoal sem grana. Quantos estariam passando pelo que passei? Quantos saberiam pedir socorro? Quantos encontrariam alguém que os escutasse?” Ela criou, então, o Maktüb Experience. O projeto voluntário, que surgiu em 2018, leva oficinas de grafite, apresentações de rap e batalhas de MCs à garotada de quatro favelas da Zona Norte: Acari, Para-Pedro, Muquiço e Complexo do Chapadão. São atividades esporádicas e gratuitas, com poucos participantes, que terminam invariavelmente num bate-papo – ou melhor: numa terapia de grupo muito informal. Sentados em roda, os presentes relatam vivências dolorosas e trocam ideias sobre os próprios sentimentos. Preta não só conduz a conversa como relembra, de modo espirituoso, sem dramas, o seu calvário e as lições que extraiu dele.
Por causa do Maktüb, a moça tomou gosto pela arte e descobriu aptidões suficientes para desbravar outros campos de trabalho. Primeiro, tornou-se produtora cultural e começou a organizar eventos de hip-hop. Há um ano, se matriculou num curso de fotografia, o que lhe abriu a possibilidade de realizar ensaios visuais remunerados para ONGs.
Mal a pandemia alcançou o Rio, Preta interrompeu as ações do Maktüb e tentou encontrar um jeito de agir a distância. Foi assim que inaugurou um novo braço do projeto, justamente o Cada Trauma Importa. Com ajuda das redes sociais, buscou terapeutas que topassem atender de graça quem estivesse sofrendo na quarentena. Adolescentes, jovens adultos, cinquentões ou idosos, todos poderiam receber assistência. As sessões, sempre individuais, aconteceriam pelo Zoom, o aplicativo de videoconferências, entre uma e três vezes por semana. Iriam durar, no mínimo, quarenta minutos e, no máximo, noventa. Onze profissionais de diferentes linhas aceitaram o desafio.
A fotógrafa saiu, em seguida, à caça dos pacientes. “Cada Trauma Importa. Juntos somos mais fortes”, escreveu na abertura da mensagem que disparou em abril, pelo Facebook e WhatsApp, para moradores das quatro favelas onde o Maktüb atua e de algumas outras. Com uma linguagem simples, o anúncio explicava a iniciativa. Um mês depois, a moça contabilizou 170 interessados e encerrou as inscrições.
A FILHA DE OXUM
Por que resolvi procurar o Cada Trauma Importa? Porque meu marido estava me deixando tão maluca que precisei expulsá-lo de casa. Tomar uma atitude dessas nunca é fácil. Desestabiliza qualquer um. Se você tiver paciência, posso contar em detalhes o que aconteceu. Me chamo Ana Lúcia da Silva Macharethe e, apesar do sobrenome italiano, não sou católica, não. Sou dos terreiros, umbandista com a graça de Deus e dos orixás. Acredito demais em Oxum, que me protege desde criança. Mesmo assim, costumo acender velas para as almas na Igreja de Nossa Senhora das Dores. Vou toda segunda-feira, faça chuva ou faça sol. Quando a pandemia estourou, a igreja e o terreiro fecharam de repente. Me assustei. Se até os lugares sagrados paravam de funcionar, significava que a chapa estava realmente esquentando. Logo depois, perdi o emprego. Não me restou outra saída além de ficar quietinha no meu canto, em isolamento.
Eu trabalhava como faxineira para um homem que conserta joias. Ganhava 1,4 mil por mês. Era pouco, mas quebrava o galho. Agora não ganho nada. O patrão explicou que as joalherias já não mandavam nem um anel para o conserto. ‘Deu ruim, Ana. Não consigo mais te pagar’, me disse, na lata. Adiantava eu discutir?
Nasci perto do Rio, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e me mudei para o Morro do Turano ainda mocinha. É uma favela carioca da Zona Norte, onde vivo até hoje com uma filha e uma irmã. As duas têm problemas congênitos. Taiane, minha filha, sofre de miopatia nemalínica, uma doença neuromuscular que rouba as forças do corpo. Ela não se sustenta em pé e, por isso, usa cadeira de rodas. Minha irmã, Cristiane, também sofre de alguma coisa grave. Não sabe ler nem escrever, não anda direito e se atrapalha com as tarefas mais simples. Nunca descobrimos o motivo de tantas dificuldades. Por causa das duas, presto muita atenção para o coronavírus não entrar em casa. Que Oxum nos livre de uma delas enfrentar a Covid! Tremo só de imaginar. Quando vou à vendinha ou à farmácia, boto a máscara e tento não esbarrar em ninguém. Depois, tiro cada peça de roupa e corro para o banho. Lavo até os cabelos.
Enquanto morava com a gente, meu marido não tomava os mesmos cuidados. Ele se levantava cedo e passava álcool em gel nas mãos, no controle remoto da tevê, no celular, nas maçanetas. Tudo certinho. Às dez, saía para trabalhar na portaria de um clube e só voltava de noite. A questão é que dificilmente voltava sóbrio. O irresponsável se metia em algum desses bares que desrespeitavam a quarentena e bebia umas cervejas, umas pingas. Eu caía de pau: “Ô, Luís, quer encher a cara? Compra a porcaria do latão e bebe dentro de casa. Não dá para você se enfiar em boteco. É perigoso. Tem risco de contaminação. Não se ligou que até os terreiros e as igrejas fecharam?” Ele resmungava sei lá o quê e, no dia seguinte, fazia igual.
Uma noite, apareceu trocando as pernas, com uns pacotes embaixo do braço. Guardou as compras no armário da cozinha, sem limpar. Eu estava vendo o RJ2, aquele jornal da Globo, e reclamei: “Olha o corona, Luís! Precisa desinfetar.” O cara se enfureceu: “Chega de assistir à Globo, Ana! Você vai acabar no hospício. Os jornalistas da Globo exageram sobre a doença. Só pensam em derrubar o presidente.” Mal escutei aquilo, tive certeza de um negócio: o Luís votou no Jair Bolsonaro. Apertou o 17! Eu já desconfiava, mas o infeliz teimava em negar. Ele sabe que votar no Bolsonaro é o mesmo que me trair. “Votou ou não votou, Luís?”, perguntei, ainda em frente da televisão. Lembro que, no segundo turno das eleições, pus um vestido branco e colei o 13 bem perto do coração. O número do Fernando Haddad, né? Fui toda bonita para o clube onde voto e, no caminho, passou um carro com dois sujeitos, que berraram: “É Bolsonaro, tia!” Pra quê? Eu me virei rapidinho e lasquei: “Vai tomar no cu!” Sou cabeça aberta. Odeio o Bolsonaro. Homofóbico, racista, bajulador da ditadura… “Responde de uma vez, Luís!” Ele finalmente confessou: “Votei, sim. E daí?” Meu Pai do Céu! “Nós somos negros, Luís. Somos da favela. Como você pôde votar naquele doido?”
Sem titubear, apanhei um par de malas e levei para o traidor. “Terminou! Arruma tuas tralhas, coloca nas malas e chispa daqui. A gente não se identifica mais. Eu me cuido, você não se cuida. Eu tenho o pensamento avançado, você raciocina como o homem das cavernas.” Nós vivíamos juntos desde 2017, se não me engano. Foi o meu terceiro casamento e provavelmente o último. Três está de bom tamanho para quem já fez 51 anos. Taiane e Tamara, a minha caçula, que não mora comigo, nasceram de outras relações. Dois namoros que não vingaram, sabe como é?
Agora percebo o óbvio: as bebedeiras do Luís também provocaram a nossa separação. Ele gostava de álcool quando nos casamos, mas não tanto. Pelo menos, assim me parecia. Talvez eu não quisesse enxergar… A situação mudou a partir do momento em que o Luís desabou na sala e bateu a cabeça. Era tarde da noite. Logo pensei em infarto. Dei uns tapinhas no rosto dele, senti o hálito e me toquei: infarto nada! Bebida! Daí em diante, tudo só piorou. Ele não aceitava a ideia de se tratar.
Tive uma infância horrível justamente porque meu pai bebia demais. Éramos oito irmãos e, muitas vezes, nos faltava comida. Também faltava roupa, faltava sapato, faltava lápis para a escola. Você deve achar que meu pai vadiava, mas não: o coitado ralava de segunda a sexta. Pintava carros e ganhava bem. Só que torrava a maior parte do dinheiro com cachaça. Precisávamos arrastá-lo do bar à força. Ele resistia, se irritava e batia na minha mãe, nos filhos, em todo mundo. Uma ocasião, nós pegamos sarampo. Eu e duas irmãs. Minha mãe resolveu preparar uma canja para a gente e comprou a galinha. Meu pai cismou com o bicho: “Está podre! Ninguém aqui sabe comprar galinha.” Catou o frango e agrediu a minha mãe. Ela tomou uma surra de galinha… Sempre que me recordo daquele tempo, choro à beça. Imaginava que fosse passado, mas me enganei. Como pude crescer e, já madura, me casar com um alcoólatra? Como pude repetir a história da minha mãe? Não bastava o que pelejei quando menina?
Separação, mais o medo de alguém querido se infectar e morrer na fila do hospital, mais o desemprego, mais a grana curta. Vai somando… Eu tenho ou não tenho razões para procurar ajuda psicológica? Infelizmente, não consegui o auxílio emergencial do Bolsonaro. Então sobrevivemos apenas com o benefício de 1 045 reais que a Taiane recebe do governo por ser cadeirante. Gastávamos 900 de aluguel, mas a dona do imóvel topou baixar para 700. Continuamos pagando a internet normalmente. Já a tevê a cabo está de graça. Os garotos do tráfico, que distribuem o sinal na comunidade, decidiram não cobrar dos moradores sem trabalho e sem o auxílio do presidente.
Faço uma sessão de terapia por semana. É maravilhoso desabafar com a terapeuta. Ela me ensinou uns exercícios de relaxamento muito bons. Eu deito na cama ou no sofá, fecho os olhos, respiro devagarzinho e levo o meu pensamento lá para o mar, lá para a mata. Um prazer, viu? Por uma hora, me esqueço do Luís, do Bolsonaro, do coronavírus e dos hospitais sem vaga.
“Aqui não tem pau para urubu sentar.” A frase enigmática martelava na cabeça de Preta durante o período em que a jovem lutou contra a depressão e a síndrome do pânico. De onde vinha? A própria jovem afirmara aquilo ou escutara de alguém? Em quais circunstâncias? E o que a expressão significava de fato? Certo dia, a moça se lembrou: um parente de Cururupu costumava dizer a sentença. “Um parente bem próximo e de pele clara”, ressalta a fotógrafa, que faz parte de uma família multirracial. O ramo paterno descende de negros. O materno, de brancos. “Eu, ainda criança, perguntava à minha mãe por que o tal parente sempre batia naquela tecla. Ela se calava ou respondia com evasivas.” Sozinha, a menina acabou desvendando o mistério. “Urubus são negros, correto? Meu pai é negro. Portanto…” Tratava-se de uma declaração racista, talvez derivada do anedotário popular. “Com a frase, o parente branco pretendia avisar que não aceitava receber visitas de meu pai, o ‘urubu’, o negro.”
Ocorre que Preta se assemelha muito à família do lado paterno. “Sou tão negra quanto meu pai. Se o parente branco não gostava de ‘urubus’, então me rejeitava também.” Quando chegou à conclusão, a garota se revoltou, mas guardou o sentimento para si. “Nós não merecíamos tamanho desprezo. Ninguém merece…”, lamenta agora. “Meu pai é um batalhador. Na infância, perdeu a mãe e sofreu um acidente que o deixou manco. Como não pôde frequentar a escola, nunca se alfabetizou. Em compensação, aprendeu os cálculos básicos e se tornou um negociante de primeira. Superou tantos obstáculos para, depois de casado, aturar discriminação dos próprios familiares?”
Fora do círculo doméstico, e ainda no lugarejo natal, Preta se defrontou com manifestações mais abertamente racistas. Em geral, não reagia. “Você tem o nariz que o boi pisou”, zombavam uns. “Lá vai a menina do cabelo duro, a menina do cabelo seco, a menina com palha de aço no lugar do cabelo”, atiçavam outros. Havia também os que indagavam: “Você é mesmo filha de uma branca? Certeza de que não te encontraram na lixeira?”
Com os anos, inconscientemente, Preta criou uma estratégia para se desviar das humilhações ou suportá-las. Esmerou-se em distribuir simpatia, apagar da memória as experiências mais traumáticas e reprimir as dores do preconceito. Virou, assim, o protótipo da mulher alegre, inabalável e equilibrada. “Acreditei tanto naquela personagem que nem cogitava pedir colo quando algo me incomodava. Receava que, se pedisse, todo mundo desconfiaria: ‘Tu, a nossa fortaleza, querendo ajuda?’” Preta simplesmente passava por cima das contrariedades, sem digeri-las, e seguia adiante. Julgava esquecer o que, no fundo, jamais esquecia. Às vezes, até dava bandeira de que as coisas não corriam muito bem. Evitava ir de biquíni às praias do Rio ou se olhar no espelho, por exemplo. Considerava-se feia e sentia vergonha do corpo, apesar de não o admitir. Escondia-se de si mesma quase sem perceber.
O Rio, aliás, a amedrontava. Ela nunca havia conhecido uma cidade tão grande antes de desembarcar no Aeroporto Santos Dumont. Vivera em São Luís e passeara por Belém, mas nenhuma das duas capitais se comparava com a fluminense. “Os edifícios gigantes de Copacabana, as lojas chiques de Ipanema, os congestionamentos, a infinidade de favelas, o Cristo Redentor, os turistas estrangeiros, os bares lotados, tudo me assustava. O prédio mais alto de Cururupu tinha só três andares. Imagine…” Assim que pisou na metrópole, a jovem flagrou uma violenta discussão de trânsito. “Peguei um ônibus perto do Santos Dumont e, enquanto percorria o Centro, vi pela janela uma cena espantosa. Um fulano desceu do carro e, não sei por quê, socou o motorista de uma perua. Gelei: ‘Ave, Maria! Onde vim parar?’”
Hoje Preta supõe que o acúmulo de mágoas, raivas, tensões e complexos mal trabalhados desencadeou a paralisia na Avenida Presidente Vargas e a via-crúcis que a sucedeu. “Precisei implodir para finalmente encarar os meus fantasmas e me libertar.”
A fotógrafa morre de rir quando se lembra da primeira vez que enfrentou uma sessão de terapia. “Agora parece engraçado, mas me senti péssima na época. Ou melhor: me senti ridícula.” Logo depois de estancar na avenida, Preta consultou um psiquiatra, que a medicou e lhe recomendou tratamento psicológico. A moça aceitou o conselho e acabou diante de uma terapeuta que quase não abria a boca. “Ela perguntou o meu nome. Respondi. Ela sorriu e ficou quieta. Aguardei a pergunta seguinte. Ela continuou muda. Eu não tinha ideia de como funcionava uma sessão. Por isso, entrei na onda e me calei também. Às tantas, a mulher quebrou o gelo: ‘Você está legal?’ Eu não estava, claro, mas respondi no piloto automático: ‘Estou. E tu?’ Ela sorriu de novo, sem dizer uma palavra. Depois de uns quarenta minutos em silêncio, me pediu para voltar dentro de uma semana. Voltei, e rolou o mesmíssimo esquema. ‘Gente, terapia é sempre assim?’, pensei. ‘Vou passar um ano aqui e não vai acontecer nada?’”
Em vez de ir à terceira consulta, Preta resolveu buscar outro psicólogo. “Felizmente, descobri uma profissional bem diferente da anterior – luminosa, acolhedora e… negra!” Foi a partir daí que a fotógrafa conseguiu desvelar as aflições encobertas do passado e cuidar das feridas provocadas pelo racismo. “Uma terapeuta negra fez todo o sentido para mim. Muita coisa! Ela demonstrou absoluta empatia pelo meu sofrimento. Afinal, sabia por experiência própria qual o peso da negritude num país como o Brasil. Não estou afirmando que os psicólogos brancos sejam menos empáticos. Só acho que veem a questão sob uma ótica excessivamente abstrata. Nenhum deles vivenciou na carne a injustiça da discriminação racial.”
Enquanto procurava se reerguer, Preta contou ainda com a escuta generosa e surpreendente do “Seu Roberto”. Recém-separada do marido, a jovem morava na parte superior de um sobrado em Honório Gurgel, bairro da Zona Norte. Seu Roberto, o proprietário do imóvel, habitava a inferior. Era um aposentado de 60 e tantos anos, branco, que se compadeceu da inquilina deprimida. Todas as tardes, mesmo naqueles sete meses em que se isolou dentro de casa, a moça descia para conversar com o senhorio. “Falávamos sobre nossas vidas por uma ou duas horas. Ele ouvia as minhas queixas sem pressa e opinava delicadamente. Vira e mexe, recordava os perrengues que já teve. ‘Comi o pão que o Capeta amassou e sobrevivi. Tu vai superar a fase ruim também’, me encorajava. Jamais imaginei que o Seu Roberto, um cara hipersimples, pudesse ser tão sábio e afetuoso. Nossos papos me enchiam de esperança. Às vezes, o conforto está onde a gente menos espera, né?”
Como o turbilhão emocional impedia Preta de trabalhar, o senhorio a dispensou temporariamente do aluguel. Ela só retomou os pagamentos quando obteve o auxílio-doença concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que lhe garantia um salário mínimo por mês.
Numa das vezes em que a jovem tentou o suicídio, Seu Roberto fez o papel de anjo da guarda. Encontrou a inquilina desacordada e a socorreu. “Não sei exatamente quem me salvou nas outras ocasiões.” Em três das quatro tentativas, a moça tomou doses cavalares de sonífero. Na última, ingeriu chumbinho, um raticida clandestino, mas bastante popular. “Sempre que reflito sobre a primeira tentativa, concluo que não desejava realmente morrer. Queria chamar a atenção, pedir ajuda, gritar para o mundo que a Mulher-Maravilha estava sofrendo.” Nas demais ocorrências, porém, Preta ansiava, sim, pela morte. Enxergava-se como “um barco sem âncora”, “um mar revolto” ou “uma carga de mil toneladas” que precisava se aliviar de si mesma.
A MÃE DO MICHAEL
Mães odeiam se separar dos filhos pequenos. Eu, pelo menos, detesto – principalmente em situações dramáticas. Calcule, então, o grau do meu tormento quando a pandemia chegou e me vi longe do Michael. No dia 13 de março, sexta-feira, mandei o garoto para a minha tia em Maricá, cidade bem próxima do Rio. Ele passaria o fim de semana por lá e logo retornaria. Só que, no dia 16, segunda, começou o zum-zum-zum sobre a Covid e achei mais seguro deixar o moleque onde estava. Dizem que a maioria das crianças infectadas fica assintomática, não é? O Michael tem 11 anos. Se pegasse o coronavírus enquanto voltava para casa, provavelmente não sentiria nada, mas poderia transmitir a doença.
Nós dois dividimos um quarto e sala no Salgueiro, o morro da Zona Norte carioca que ganhou fama por causa da escola de samba. Ocupamos o primeiro andar de uma construção com três pavimentos. Meu avô materno vive no segundo e minha mãe no último. Preferi não correr o risco de o Michael contaminar a família e paguei um preço alto: quase enlouqueci de saudade. A gente só se reencontrou em maio. Tomei coragem, segui todas as precauções e finalmente resgatei o menino. Não aguentava mais tanta distância.
Muitos me conhecem por Lil, mas meu nome é Lidiane Cristine dos Santos. Completei 30 anos em janeiro. Uma idade marcante… Quando engravidei do Michael, estava com 18. Eu namorava o pai dele e me descuidei. Namoro entre colegas de escola, sabe? Nada sério. O relacionamento terminou um pouco depois que descobri a gravidez. Por sorte, meu ex é um cara responsável e assumiu o filho. Eles convivem de boa.
O Michael, graças a Deus, nasceu com bastante saúde. A gente decidiu batizá-lo assim para homenagear o Michael Jackson e o Michael Jordan, aquele jogador de basquete. Admiro os dois há um tempão. Talvez inspirado pelo nome, o Michael – o meu Michael – se revelou uma criança incrível. Ele me estimula demais, me faz sonhar com tudo que ainda posso conquistar para orgulhá-lo. Uma vez me perguntaram: “Você seria pior sem teu garoto?” Respondi: “Não sei se pior, mas sei que não seria tão melhor.”
Em maio, logo que o Michael retornou para casa, aconteceu a tragédia com o João Pedro – o adolescente negro de 14 anos que levou um tiro de fuzil pelas costas enquanto brincava, lembra? Foi durante uma operação policial numa favela que também se chama Salgueiro. Fica pertinho do Rio, em São Gonçalo. Pensei muito na mãe do rapaz, uma professora. É sensacional gerar um filho preto, mas a gente nunca relaxa. Vai dormir preocupada e acorda ainda mais preocupada. Meninos negros estão sempre na mira. De repente, alguém cisma e acusa os moleques de erros que não cometeram. Às vezes, nem rola acusação. Atiram neles e pronto. Infelizmente, já tive de explicar a real para o Michael: “Você é preto, filho, e começou a andar sozinho na rua. Não pode vacilar. Escolhe direito tuas companhias. Não sai desarrumado e sem documento. Evita olhar fixo para os estranhos. Se entrar nas Lojas Americanas, não toca em nada. Se resolver comprar alguma besteira, pede a notinha e guarda.”
Quando o Michael festejou 10 anos, em novembro de 2018, acusei o golpe. De uma hora para outra, tomei consciência das perdas que a gravidez precoce me trouxe. Eu gostaria de estudar publicidade, por exemplo, mas até agora não deu pé. Só concluí o ensino médio à beira dos 25 anos, acredita? Me falta tempo para os livros porque preciso sustentar o garoto. Meu ex ganha pouco e contribui com apenas 150 reais por mês. Ele faz hambúrguer em casa, embala de um jeito maneiro e entrega os pedidos de bike.
Já fui atendente do McDonald’s e vendedora de roupas no Shopping Tijuca. Não curtia nenhum dos empregos. Mesmo assim, respirava fundo e metia as caras. Em 2014, consegui mudar de rumo e me tornei produtora artística. Trabalho com o pessoal do samba e do hip-hop. Não reclamo, não, mas por mim estaria morando em São Paulo. Lá as oportunidades na área musical tendem a ser maiores. Nem vale a pena comparar com o Rio. Eu também gostaria de descolar um teto melhor e, quem sabe, um companheiro bacana. Desde o nascimento do Michael, praticamente não cuidei da vida amorosa. A correria é tanta que, quando arranjo uma folga, só quero descansar.
Parece que todas as fichas caíram de uma vez no instante em que o moleque soprou as dez velas do bolo. “Caramba!”, me assustei. “O tempo voou e continuo igualzinha. Sem faculdade, sem casa bonita e sem deslanchar na carreira.” Bateu uma angústia, uma sensação de urgência, uma autocobrança terrível: “Se liga, mulher! Está esperando o quê para progredir?” Tamanha pressão acabou por me derrubar. Primeiro, tive umas pontadas no peito. Depois, uma febre esquisita, que aparecia quase diariamente. Fiz um punhado de exames e não deu nada. Era tudo emocional. A tristeza, então, desabou sobre mim. Mergulhei numa apatia imensa e perdi até a vontade de me levantar da cama. Um negócio bem absurdo, que não combinava comigo, porque sempre esbanjei disposição. “Bora, galera! Ninguém vai morrer!”, costumava gritar para os colegas toda vez que pintava uma dificuldade no trampo. Olha só a ironia… Eu, a mais ativa das ativas, agora desejava apenas uma coisa: morrer.
A depressão durou uns dez meses. Ficou tão grave que passei trinta dias à base de água, sem comer nem mesmo um biscoito. Meu apetite simplesmente desapareceu. Com esforço, depois de muita terapia e alguns remédios, saí do buraco. O tratamento inteiro rolou na rede pública. Nunca faturei o suficiente para usar o sistema privado. No finzinho de 2019, me senti plena de novo, e comecei 2020 imaginando que seria o ano da virada. Quanta ilusão…
O isolamento social, além de me afastar do Michael, detonou o ramo da música. De onde uma produtora artística vai tirar dinheiro se as rodas de samba e os shows de hip-hop sumiram? Quando iniciei a quarentena, estava com 1 mil reais na conta. Precisei apertar o cinto à beça até sacar, em junho, o auxílio emergencial do governo. Cancelei meu plano de internet e pedi para usar o wi-fi do vizinho. Transformei o celular pós-pago em pré-pago e reduzi as compras de supermercado. Um desespero! A grana miúda, as incertezas profissionais e a decepção com 2020 me roubavam o sono. Atravessei várias madrugadas em claro, explodindo de ansiedade. Se pregava os olhos, tinha pesadelos. Amigos ou parentes me telefonavam em sonho para contar: “Lil, peguei o corona.”
Nas primeiras semanas do confinamento, me entupi de notícias sobre o vírus. Recebia tantas informações ruins durante o dia que, uma hora, decidi pular fora daquele inferno e só ver o telejornal da noite. Também abandonei as mídias sociais por um tempo. Bye, bye, Facebook! Tchau, Instagram! Eu toda enrolada, e os meus conhecidos postando receitinhas de doce ou fotos de ginástica na laje?! Aquilo me irritava horrores. Bando de mentirosos… Jura que a pandemia ferrou somente a trouxa da Lil?
Para complicar, depois que voltou, o Michael não conseguia baixar o aplicativo da Prefeitura, que permite acessar as tais aulas online. O motivo? Vai saber… Talvez o wi-fi do vizinho não ajudasse. Eu tentava compensar lendo mangás ou livros infantis com o menino antes de dormir. Era pouco, mas melhor do que deixar o garoto à toa.
No meio da bagunça, percebi que poderia ter uma recaída e caminhar novamente para o abismo da depressão. Vamos combinar que ninguém merece afundar duas vezes. Acendi o sinal de alerta e procurei socorro. Foi quando uma amiga me enviou pelo WhatsApp o contato do Cada Trauma Importa. Que alívio! As duas sessões semanais de terapia me fazem muito bem. Aprendi umas técnicas de respiração que diminuíram bastante o meu estresse. Mas o principal é o que a terapeuta me diz. Ela raciocina de um jeito simples e certeiro:“Não se cobre tanto, Lil. O mundo todo levou um susto e está em crise. Por que você não estaria?”
No início de 2018, já recuperada dos transtornos psicológicos, Preta descobriu o Couchsurfing enquanto navegava displicentemente pela internet. O serviço conecta moradores de diversos países com viajantes à procura de hospedagem gratuita. Embora só domine o português, a jovem logo vislumbrou a possibilidade de receber estrangeiros no sobrado de Honório Gurgel. “Compreensível, né? Eu estava louca para conhecer gente nova depois de um ano e meio na pior.” Em fevereiro, juntou-se à comunidade virtual e abrigou o primeiro turista, um chileno. Gostou tanto da experiência que, até dezembro de 2019, acolheu hóspedes de pelo menos vinte nacionalidades. “Uruguaios, argentinos, peruanos, franceses, italianos, espanhóis, britânicos, croatas, turcos, japoneses… Minha casa virou uma Babel”, recorda, às gargalhadas. “Muita coisa!”
Especialmente com os latino-americanos, Preta mantinha demoradas conversas, que acabavam ganhando um tom mais íntimo. “O pessoal abria o coração. Falava de problemas familiares, decepções amorosas e dilemas profissionais. Eu retribuía narrando a minha história.” Os diálogos lembravam um pouco aqueles que a moça tinha com Seu Roberto. “O curioso é que não havia grande diferença entre os meus sofrimentos e os dos gringos. Percebi que os humanos padecem de um jeito semelhante em qualquer lugar do planeta.”
O vaivém no endereço de Preta despertou o interesse da vizinhança. Honório Gurgel, afinal, está longe de ser uma das regiões mais atrativas do Rio. O bairro de classe média baixa carece de peculiaridades marcantes, tirando o fato de que a cantora Anitta cresceu ali. “Como dificilmente vemos estrangeiros nas ruas de Honório, uma pá de moradores quis se aproximar dos meus hóspedes.” Nasceram, assim, as reuniões que serviram de inspiração para o projeto Maktüb Experience, germe do Cada Trauma Importa.
A jovem promovia encontros dos turistas com a população local, sobretudo os adolescentes. Não raro, sugeria que os forasteiros passassem à garotada noções dos próprios idiomas ou de atividades prazerosas em que se destacavam: música, desenho, pintura. “No final, formávamos uma roda e batíamos um papo.” A prosa frequentemente se transformava em desabafo coletivo.
Satisfeita com as reuniões e desejosa de partilhar ainda mais os ensinamentos trazidos pela depressão, Preta resolveu adaptar a iniciativa até chegar à configuração que o Maktüb exibe agora. As quatro favelas onde o projeto se desenrola ficam justamente nas imediações de Honório Gurgel.
Desde menina, a fotógrafa demonstra aptidão para liderar e servir. “Quando tinha 12 anos, organizei uma turma de crochê e bordado em Cururupu. Eu mesma dava as aulas, sem cobrar um centavo.” Hoje, no Cada Trauma Importa, é Preta quem estabelece o primeiro contato com os inscritos. Faz questão de escutar atenciosamente as lamúrias deles e de reconfortá-los. Só então os encaminha para o terapeuta mais adequado. A moça também administra o cronograma das sessões e, todas as manhãs, busca ter notícias dos pacientes. “Bom dia, flor do dia! Como estamos?”, lhes escreve pelo WhatsApp.
A expressão “cada trauma importa” remete à frase “vidas negras importam”, tradução de Black lives matter, lema dos militantes antirracistas norte-americanos. Já maktüb é a transliteração de um vocábulo árabe que significa “precisava acontecer” e que o romancista Paulo Coelho popularizou a partir da década de 1990. A jovem, porém, não garimpou a palavra nos textos do Mago. Ela a ouviu em Vida Longa, Mundo Pequeno. O rap do grupo Oriente explica que maktüb sintetiza “o fatalismo muçulmano”. Se proferido em momentos de agonia, o termo não soará como “um brado de revolta contra o destino”, mas como “a reafirmação do espírito plenamente resignado diante dos desígnios” que a existência nos apresenta. “Eu não poderia evitar o tsunami emocional que me atingiu, sacou? Maktüb! Era a minha sina”, diz a fotógrafa, que não tem religião, apesar de crer “em deuses”. “O universo encontrou um caminho bem tortuoso para me revelar o que devo fazer enquanto estiver viva: ‘Tu, Preta, há de zelar por teu equilíbrio mental e pelo dos outros.’”
A Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou, no dia 13 de maio, um relatório sobre o risco de a pandemia do novo coronavírus afetar gravemente a saúde psíquica da população em geral, e não só de médicos e paramédicos. O documento recomendava que governantes implantassem tanto medidas contra o avanço do patógeno quanto estratégias para prevenir ou amenizar os efeitos psicológicos da crise sanitária.
O Brasil, já se sabe, naufragou no combate à propagação da doença e, até agora, desconhece o estrago que a tragédia vem provocando na cabeça dos brasileiros. O governo federal não se preocupou em criar um programa extensivo para cuidar do assunto. Existem, no entanto, levantamentos pontuais que fornecem algumas pistas.
Um exemplo: o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) constatou que, entre janeiro e julho, as 80 mil drogarias do país compraram dos fabricantes 97 milhões de caixas de ansiolíticos, estabilizadores de humor e antidepressivos. É uma quantidade muito superior à dos anos anteriores. Nos primeiros sete meses de 2018 e 2019, as farmácias adquiriram 74 milhões e 82 milhões de caixas, respectivamente. Considerando apenas a fase de distanciamento social (março a julho de 2020), o total chegou a 74 milhões, bem mais que os 59 milhões do mesmo período de 2019.
Outro exemplo: entre 25 de abril e 5 de maio, o Ministério da Saúde telefonou para 2 007 adultos de todo o país. Quando a entrevista abordou a sanidade mental, 42% dos consultados relataram alterações no sono durante a quarentena (ou padeciam de insônia, ou dormiam mais que o corriqueiro), 39% acusaram falta de apetite ou vontade excessiva de comer, 35% se declararam pouco interessados em realizar tarefas cotidianas, 33% alegaram se sentir para baixo e 31% manifestaram perda de energia.
Numa pesquisa conduzida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), 1 460 participantes de 23 cidades brasileiras responderam um questionário online em duas ocasiões: fim de março e meados de abril. O Yale New Haven Hospital e a Universidade Columbia, ambos dos Estados Unidos, também coordenam o trabalho, que pretende detectar se os entrevistados apresentaram indícios de transtornos psíquicos enquanto se isolavam e quais os fatores que contribuíram para o eventual adoecimento deles. Eis as principais conclusões:
* No fim de março, quando a quarentena engatinhava, 4,2% dos consultados exibiram sinais de depressão, 6,9% de estresse e 8,7% de ansiedade. Em meados de abril, os índices subiram para 8% (depressão), 9,7% (estresse) e 14,9% (ansiedade).
* As mulheres se mostraram mais suscetíveis às psicopatologias do que os homens.
* A mesma suscetibilidade se verificou entre os participantes que precisavam quebrar o confinamento para trabalhar em relação àqueles que faziam home office.
* Quem morava com idosos, obesos, hipertensos, diabéticos ou cardiopatas se revelou mais propenso às doenças emocionais.
* Os que tinham criança em casa desenvolveram menos sintomas.
* Quanto maior a escolaridade dos entrevistados, menor a incidência dos distúrbios.
* Quanto mais regular a prática de exercícios físicos ou quanto mais equilibrada a dieta, menor a ocorrência de problemas mentais.
“O aumento dos indicadores de depressão, estresse e ansiedade não nos surpreendeu. Era esperado”, afirma o carioca Alberto Filgueiras, professor do Instituto de Psicologia da Uerj e um dos idealizadores da pesquisa. “Outros países que decretaram o isolamento para debelar epidemias de síndromes respiratórias agudas no século XXI, como o Canadá, a Austrália e a China, também registraram alta daquelas taxas.”
Filgueiras e seu parceiro de estudo, o norte-americano Matthew Stults-Kolehmainen, continuam analisando os dados com o intuito de compreender melhor os aspectos capazes de proteger emocionalmente as populações em confinamento. O objetivo da dupla é fornecer elementos para a futura implementação de políticas públicas sobre o tema.
Os pesquisadores repetiram o questionário em julho, mas ainda não computaram os resultados. Também planejam aplicá-lo tão logo o distanciamento acabe no Brasil e um ano depois. “A literatura científica demonstra que várias pessoas desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático quando saem de uma quarentena”, diz Filgueiras. “Queremos verificar se o mesmo vai acontecer por aqui.” O mal caracteriza-se pela recorrência de pensamentos ou pesadelos que revivem determinado trauma e podem gerar taquicardia, sudorese demasiada, tensão muscular, irritabilidade ou tonturas.
Evandro, Evandro, Evandro. Durante nossas conversas, Preta confundiu meu nome inúmeras vezes. Tratava-me por Evandro sem perceber. Embora intrigado, evitei corrigi-la. Uma hora, porém, decidi matar a curiosidade: “Reparou que você sempre me chama de Evandro? Por quê?” A jovem finalmente se deu conta do lapso: “Jura? Perdão… Teu nome parece o do meu terapeuta e mentor.”
Formado em ciência política, o niteroiense Evandro Vieira Ouriques leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele virou professor da Escola de Comunicação quatro décadas atrás, quando ainda trabalhava como jornalista e diagramador na imprensa fluminense. Hoje se divide entre a licenciatura e a clínica, já que mantém um consultório onde exerce as funções de terapeuta filosófico. Em linhas gerais, lança mão da filosofia para refletir sobre as angústias dos pacientes e ressignificá-las.
Duas características logo despertam a atenção de quem o encontra pela primeira vez: a paixão com que se expressa e o visual despojado, quase hippie. Barbudo e calvo, o professor de 70 anos deixa os cabelos brancos remanescentes crescerem até os ombros. “Conheci Preta em janeiro de 2020, numa exposição de fotografia”, relembra. “Ela levou poetas e rappers para se apresentarem ali.” À época, Ouriques preparava um curso de extensão que ocorreria na UFRJ e no Observatório de Favelas, uma organização sem fins lucrativos. As quinze aulas discutiriam as possibilidades de se construírem espaços de convivência em territórios cujos moradores estão sob risco permanente de extermínio. “Mal troquei algumas palavras com Preta, tive vontade de convidá-la para dar uns depoimentos no curso.” Uma “forte intuição” lhe sugeria valer a pena se aproximar da moça. “Não me enganei. Preta é uma líder nata, que não usa o próprio trauma para traumatizar o outro. Ela reconheceu com muita dor que, numa etapa da vida, ocupou a posição de subjugada, mas resolveu não subjugar ninguém em represália. Abdicou da vingança. Em vez de cultivar o rancor, escolheu celebrar e disseminar as oportunidades de libertação.”
Devido à quarentena, o curso ainda não se realizou. Enquanto aguarda a reabertura da universidade, o docente supervisiona o Cada Trauma Importa e atende não só a jovem como alguns dos que buscaram a rede de assistência psicológica.
A carioca Estelita Oliveira de Amorim Ouriques também figura entre os voluntários da ação. Casada com o professor, é iogaterapeuta e costuma atuar no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, que pertence à Secretaria de Estado de Saúde. “Em minhas sessões, tento reequilibrar os pacientes por meio dos elementos que compõem a tradição iogue: as técnicas respiratórias, as posturas corporais, o relaxamento, a meditação e, claro, a escuta amorosa”, resume a profissional de 56 anos, que se dedica à prática milenar hindu desde os 22.
O RAPPER
Na real, não tenho medo de que o coronavírus me mate. Tenho é pena. Odiaria morrer sem deixar um legado para a minha comunidade, os meus familiares e principalmente a minha filha. Não estou falando apenas de coisas materiais – uma casa mais confortável, dinheiro no banco, talvez um carro. Falo também de consciência. Sabe aquele papo de semear um mundo melhor? Eu gostaria… Sonho em convencer quem me rodeia de que a leitura e o respeito pelas diferenças podem salvar as próximas gerações. Até o momento, não consegui. Então, ainda preciso continuar na área.
Escrevo letras de rap justamente por isso: para abrir a cabeça dos que só pensam em futilidades. Vou espalhando minhas sementes com as palavras, tá ligado? Solto o verbo aqui mesmo, na Vila Kennedy, a favela da Zona Oeste carioca em que nasci e sempre morei. Quando participo das rodas culturais ou batalhas de rima, sou o MC Mano Chim. Fora delas, me chamo Wendel Luiz Correia dos Santos de Jesus. O nome imenso diz muito sobre meus pais. Eles não se entenderam na hora de me registrar. Brigaram pelo Correia, pelo Santos e pelo Jesus. Nenhum dos dois quis abdicar de nada. Percebe como a mente pequena atrapalha tudo? Fiquei com o sobrenome de ambos, que nunca pararam de tretar.
Curto ler desde a infância. Na quarta série, a professora Janete mostrou para a classe o livro da Vaca Vitória. Esqueci o título… Um livro de poesias curtas, sinistro! Lembrei: Era uma Vez a Vaca Vitória, que Caiu no Buraco e Acabou a História. Daí em diante, peguei gosto pela brincadeira. Primeiro, devorei romances de vampiro, como os do Darren Shan. Depois, parti para as biografias. Agora priorizo autores mais filosóficos, tipo Augusto Cury e Leandro Karnal. No fim da adolescência, até cogitei estudar filosofia. Acho maneiro dar aulas. Mas os meus pais não concordaram: “O quê?! Vai perder o maior tempo em faculdade para se formar e ganhar merreca?” Na fantasia de ter uma profissão menos sucateada, fiz cursos técnicos de automação industrial e enfermagem. Por absoluta falta de aptidão, não terminei nem um, nem outro. Fui seguir os conselhos da família e me estrepei. A mente pequena deles atrapalhou tudo de novo.
Hoje, com 28 anos, trabalho como aguadeiro. Distribuo água filtrada para o povão. O calor do Rio é de rachar, certo? A galera vai às festas de rua ou se amontoa em filas de emprego, e, muitas vezes, não tem um puto no bolso. Água mineral custa caro. Para que ninguém morra de sede embaixo do sol, a companhia estadual de saneamento contrata a gente. Metemos um galão no ombro, como aqueles que os vendedores de mate carregam, e damos água potável à vontade, em copinhos de 200 ml. Recebo 60 reais por evento. Antes do vírus, faturava uns 400 ou 500 todo mês. Com a pandemia, o negócio gorou. Dizem que vão nos recontratar quando o isolamento acabar de vez. Tomara…
Meu pai é pedreiro e eletricista, mas também está sem trampo. Minha mãe, por enquanto, segura as pontas. Ela cuidava de uma idosa num apartamento de Copacabana. Passava a semana lá. Só voltava para a Vila Kennedy no sábado. Em abril, a velhinha pegou a Covid e morreu. Coitada… Mesmo assim, o filho dela não despediu minha mãe. “Você precisa arejar o apartamento”, explicou. A idosa vivia de frente para a praia. Se não ventilar o imóvel, a maresia faz um estrago. Lógico que a doença da velhinha nos assustou. Havia o risco de a gente se contaminar, mas parece que escapamos.
Em casa, moro com cinco pessoas, além de meus pais: duas irmãs desempregadas e três sobrinhos. Tem ainda a Princesa, uma mini poodle. Minha filha de 10 anos fica com a mãe. Imagine a situação: um monte de adultos e crianças, mais uma cadelinha, dividindo um espaço apertado o tempo inteiro. Qual a chance de funcionar? Ontem mesmo notei que mexeram nos meus livros e rabiscaram um dos melhores. Senti uma dor… Livro não se rabisca, gente! O pessoal debochou tanto do meu protesto que deitei no chão do quarto e chorei como um bebê. Antes chorar do que explodir de ódio e arranjar mais briga.
Outro problema lá de casa é a religião. Minha mãe professa o catolicismo desde menina e, de uns tempos para cá, se fanatizou. Rejeita as crenças do meu pai, que gosta do candomblé. Ela o acusa de paganismo. Não bastasse, ainda critica a minha tia, que se converteu à Igreja Batista. Olha a mente pequena atacando mais uma vez… Jesus condenava os preconceituosos! Jesus pregava a paz! O que Ele acharia de tamanha implicância? Eu preferi me manter longe do Fla-Flu. Tenho espiritualidade, mas não tenho religião. Observo o azul do céu, o verde do mar, as curvas das montanhas e me conecto diretamente com o Criador.
Nunca acreditei em psicólogo, confesso. Pensava: se nem minha família me escuta, por que um estranho vai escutar? Acontece que o confinamento vinha me tirando do sério. O que fazer para baixar a bola? Só me restou arriscar e procurar o Cada Trauma Importa. Na primeira sessão, chorei de novo como um bebê. Despejei pelo Zoom todos os meus temores, raivas e frustrações. Para minha surpresa, o estranho não apenas me ouviu. Ele também me respeitou.
Em agosto, Preta já não se mantinha tão isolada. Retomava lentamente o trabalho de produtora cultural, planejava alguns ensaios fotográficos e entregava cestas básicas nas comunidades onde o Maktüb está presente. A moça comprou os alimentos com o dinheiro que comerciantes das redondezas lhe doaram. Àquela altura, não vivia mais no Engenho Novo. Trocara a edícula da Mulheres de Peito e Cor por uma casa dentro do Chapadão.
Dos onze terapeutas que abraçaram inicialmente o Cada Trauma Importa, sobravam quatro: o casal Ouriques, a sexóloga Daniela Mattos e o psicólogo Alexandre Ribeiro. Os demais não conseguiram permanecer na ativa sem remuneração. Quarenta dos 170 pacientes inscritos haviam recebido atendimento desde maio, quando as sessões começaram. Os outros aguardavam na fila. “Quanto tempo a rede ainda vai durar? Não faço a menor ideia”, admite Preta. “Por mim, levo a iniciativa adiante mesmo depois da quarentena, mas nem tudo está sob nosso controle, né? A pandemia que o diga…”
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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