Nota de repúdio
O vencedor e os finalistas do mês
| Edição 165, Junho 2020
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CONCURSO LITERÁRIO
Se você acha que leva jeito para uma boa prosa, arrisque-se no nosso desafio e Encaixe a frase.
Funciona assim: todo mês propomos uma frase obrigatória e um ingrediente improvável, que deverão ser incorporados a uma história bem humorada. E lembre-se: a diferença entre realidade e ficção é que a ficção precisa fazer sentido. Dito isso, submeta-nos seu texto de até 5 mil toques ou uma história em quadrinhos de 1 página até o dia 20 de junho. Envie para: concurso@revistapiaui.com.br.
Se for o escolhido, seu texto será publicado na próxima edição da piauí.
FRASE DO MÊS:
Bimba birimba a mim que diga: taco de arame, cabaça, barriga.
Elemento estranho: Elvis e sua pélvis
O VENCEDOR: A frase a ser encaixada era “Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num ….”, e o elemento estranho, “Organizações Tabajara”. Os campeões são João Meirelles e Helena Kozuchowicz, que criaram a HQ a quatro mãos. Os outros finalistas estão abaixo.
Confira aqui as regras do nosso paleolítico certame literário.
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Textos finalistas
PARAÍSO DOS CÉREBROS CONGELADOS
Fernanda Caldellas
Certa manhã, quando a vida ao ar livre ainda existia e ninguém era julgado por estar fora de casa, Roberto estava a caminho de sua sorveteria preferida na rua Oscar Freire, em São Paulo, e, enquanto andava distraído olhando os vídeos que recebera no zapzap, tropeçou numa pazinha gigante dessas de tomar sorvete. Em queda livre, percebeu que aquela pazinha estava ali para derrubar todos os distraídos dentro de um enorme balde com um líquido claro que a cada volta virava uma massa de leite e pessoas. Para a sorte de Roberto, não afundou no meio daquela gente que, sem perceber que seriam a próxima sobremesa, se deliciavam no que chamavam de “piscina dos sonhos”.
Entre homens e mulheres, tinha de tudo, jovens, crianças, idosos e dragqueens, todos se deliciando na massa adocicada. Alguns gritavam que aquilo era o equivalente ao paraíso, enquanto outros nadavam de braçadas em meio ao leite espesso. Idosos se engasgavam e crianças congelavam o cérebro ao comer com a voracidade de quem está na verdadeira Fantástica Fábrica de… sorvetes.
Eis que enormes pás de plástico começam a mover-se para dar consistência à massa enquanto as pessoas se deliciavam nas ondas de creme. Entre uma onda e outra, chuvas de frutas vermelhas picadas caíam enquanto o bando de loucos abria as bocas para engordar ainda mais no meio da massa. Conforme comiam, alguns deixavam de bater os braços, por falta de energia, e não conseguiam manter-se na superfície. Pouco a pouco alguns afundavam, enquanto outras pessoas caíam na mistura.
Roberto estava tão perdido que não fazia nenhum gesto de comilança, não conseguia entender o que acontecia. Pelo sim ou pelo não, decidiu experimentar o sorvete e não conseguiu parar de comer.
De repente a massa começa a ganhar um tom avermelhado. Seriam as frutinhas vermelhas se misturando ao sorvete? Não, Roberto percebeu que o cheiro de ferro denunciava sangue. Das comportas do teto caía um líquido com cheiro adocicado de geleia de morango com amora e framboesa, cada pá tinha grafadas as iniciais “O.T” e tudo aquilo começou a rodar com mais intensidade, batendo pessoas contra pessoas, que perdiam a consciência e não eram mais vistas na superfície.
Roberto lembrou que tinha em seu bolso um canudinho reutilizável e colocou-o na boca para usar como um respirador. Atravessou o mar de creme com cheiro de amoras e sangue e encontrou uma abertura na pá onde dava para ler “Organizações Tabajara”.
Pensou: “Que tipo de piada se desenvolve com pessoas se debatendo em leite, sorvete e amoras?”
Veio um frio de tirar a paz de qualquer pessoa em sã consciência, tudo ficou escuro e Roberto caiu em sono profundo. Foi atingido por uma das pás que moldava a consistência homogênea do sorvete. Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se metamorfoseado num pote de 1,5 kg de sorvete de frutas vermelhas.
Ouviu ao fundo a voz de sua filha Sophia, de 9 anos, perguntar a alguém:
– E daí? Se o papai sumiu significa que posso comer o sorvete dele. Quer que eu faça o quê?
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CONCERTO PARA PIANO SEM CONSERTO EM RÉ MÉDIO
Flávio Aníbal Rodrigues Fornells
José, certa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num detetive particular. Particularíssimo: sem vocação, curso, licença, e nem escritório. E agora, José?
Após o estranhamento, veio a aceitação conformada e a busca de uma oportunidade para exercer sua nova profissão. Lembrou-se, então, do Silva.
Marchou, usando sua experiência de reservista, até o escritório do amigo Silva, afamado detetive particular, especializado em roubos de beijos e assaltos à mão desarmada. Lá chegando, propôs uma cumplicidade, entrando ele, José, com sua longa, larga e profunda inexperiência, e mais a total inaptidão para qualquer serviço útil ou inútil.
Silva, antevendo a brevidade da parceria, aceitou-o como sócio desde que se encarregasse dos serviços mais importantes como a faxina do escritório, ser “cafetão” (fazedor de café) e entregas como office-boy.
No mesmo dia, à tarde, enquanto Silva iniciava uma nova investigação sigilosamente secreta, José foi fazer a entrega de um relatório a um cliente.
Entrando na casa, foi recebido pelo morador:
– Por que você entrou pela janela?
– Porque a porta está fechada.
– Puxe uma cadeira e sente!
– Não tem cadeira.
– Então puxe o sofá e fique em pé.
– Vim trazer a investigação sobre sua esposa.
– Eu não sou casado.
– Nesse caso, damos um desconto de cinquenta por cento.
– Não te contratei: quero um desconto de cem por cento.
– O senhor não é Fulano de Tal?
– Não, sou Beltrano de Qual. O Fulano é meu vizinho.
– Espero que a janela dele esteja aberta.
– O senhor é detetive particular ou pulador de janelas?
– Uma profissão não exclui a outra. Aqui meu cartão: Silva & Associados. Eu sou José Associados, ao seu dispor.
– Gostaria de te contratar para investigar o meu cachorro.
– Qual raça?
– Um vira-lata com pedigree.
– Vira-lata é especialidade do Silva. Ele está fora, num caso na casa da Mãe Joana.
– Quando volta?
– Assim que conseguir fugir da casa.
– Enquanto isso, continuo desconfiando dos passeios do meu cão…
– Tem poste na sua casa?
– Não.
– Então é isso! Não se preocupe, os cães são fiéis, exceto os infiéis.
– Isso me tranquiliza.
– Seu vizinho, o Fulano, está em casa?
– Não sei, ligue para ele.
– O senhor tem o telefone dele?
– Não, serve o meu?
– Volto amanhã. Até lá você já deve saber se ele está em casa.
– Volte depois de amanhã porque amanhã vou visitar o Fulano.
– Não posso, é minha folga como pulador de janelas.
– Venha então na quinta-feira.
– Não posso, é minha folga como detetive. Posso vir na sexta?
– Não. É minha folga da casa. Deixe então o relatório no piano do outro vizinho, o Sicrano, que ele entrega para o Fulano.
– Por que no piano?
– Porque ele é pianista. Já “tocou piano” na Polícia Federal.
– Tchau! Me acompanha até a janela?
– Saia pela porta e não preciso te acompanhar.
José, no dia seguinte, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num piano velho e desafinado, vendido exclusivamente nas “Organizações Tabajara“.
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O GERENTE JAIRO
Thiago Parussolo
Jairo era de longe a pessoa mais ríspida e inculta da empresa, uma espécie de Organizações Tabajara do mundo moderno, que fazia desde carreto de abacate até venda de remédios genéricos. Apesar de toda sua ignorância, por coincidência (ou não) Jairo era também o gerente geral.
Orgulhava-se de ser o manda-chuva sem dominar nenhum assunto relevante da empresa, colocando seus conhecidos do bairro e da academia nos cargos de coordenação para cuidar de tudo, assim despachando ordens para estes e aproveitando o tempo livre para criar polêmica sobre temas que não entendia, fazer piadas dos outros funcionários e de qualquer um que não gostasse (o que parecia ser muita gente). “Ô Paulão, tem que dar um jeito de aposentar essa velharada aí sem muito gasto hein!”, “Ô Jocimar, tá precisando começar um regime aí que você já tá com quase sete arrobas, tá certo?”.
Os funcionários da empresa, mesmo os mais próximos, tentavam evitá-lo depois de um certo tempo de convivência. Mas vez ou outra aconteciam aqueles encontros inevitáveis; um almoço de equipe, aquela ida à cafeteria que o destino quis que fosse no mesmo momento, o café da manhã na padaria da esquina, em que ele aparecia no mesmo horário e tomava a liberdade de se sentar na mesa com seus subordinados. E eram nessas ocasiões que Jairo gostava de demonstrar todo seu desconhecimento.
Quanto mais polêmico o assunto, mais ele se entusiasmava para defender suas próprias verdades. E Jairo tinha uma para tudo. Tinha sua própria versão para o formato da Terra, opiniões fortes para desacreditar estudos sobre aborto, teorias recebidas por mensagem no celular infalíveis contra o que dizia ser a falácia do aquecimento global. Antes de dormir ficava a pensar qual poderia ser o próximo assunto para impor sua versão às pessoas que o rodeavam.
Eis que certa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num dos seres que mais abominava, um cientista. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Conseguia sentir no seu subconsciente todas as suas crenças, mas seu novo pensamento racional rapidamente as sobrepunha com dados lógicos. Até mesmo sua face no espelho era mais aprazível, sem sinais de ódio. Não podia ir ao trabalho assim, o que as pessoas pensariam?
Decidiu tomar um banho frio, poderia ser algum tipo de alucinação de que precisasse despertar de vez. Por mais que tenha se esfregado debaixo da água gelada, não adiantou, após se enxugar a racionalidade ainda estava lá, em todos os lugares que olhasse e em tudo o que pensasse. Achou melhor telefonar e avisar que não estava se sentindo bem, era melhor não ir ao trabalho desse jeito. Logo ele, que sempre se gabou por ter histórico de atleta e não fraquejar por qualquer coisa.
Resolveu tentar dormir novamente, pois toda essa sensação de lucidez estava insuportável, o melhor seria desligar a mente e torcer para acordar como antes.
Quando o despertador tocou, teve a sensação de ter dormido por muito tempo, mas incrivelmente era o mesmo horário em que acordava todas as manhãs. Teria dormido um dia inteiro? Conferiu o calendário, e ainda era o mesmo dia. Como teria sido possível? Jairo então testou seus pensamentos, e nada em sua cabeça desmentiu tudo o que acreditava antes, todas as suas opiniões estavam lá, imutáveis como sempre. Tudo não passara de um sonho (ou um pesadelo, no caso). Alívio maior Jairo não poderia sentir! Dispensou o café da manhã em casa, que esse dia merecia começar com uma boa discussão acompanhada de um pão com leite condensado na padoca ao lado trabalho.
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BURGER & BEER, UMA HISTÓRIA DE SUCESSO
Yumi Yab
Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num jovem dono de hamburgueria gourmet. Deitado de costas, muito rijas e bem trabalhadas na Smart Fit da Teodoro Sampaio, ao erguer um pouco a cabeça, viu seu abdômen trincado naquele trabalhoso six-pack que invariavelmente confere ao portador um todo especial sentimento de orgulho.
“Que aconteceu comigo?”, pensou ele. Olhou ao redor. Uma coleção de garrafas vazias de cervejas artesanais se enfileirava numa prateleira que também tolerava uma pequena pilha de livros: Mil Viagens Para Fazer Antes de Morrer, Aventuras Empresariais, Empreendedorismo Now e Branding 2.0, um deslocado Memórias Póstumas de Brás Cubas (presente da ex-namorada, ele subitamente lembrava agora: Alana, a vegana, cuja incontornável filosofia anti-carne havia por meses minado sua fé no próprio business e, por fim, irrevogavelmente, botado na lona o relacionamento), as biografias de Benjamin Franklin e Junior Durski.
Pegou o controle remoto que repousava sobre o criado-mudo e ligou a televisão instalada logo abaixo da prateleira. “Em que mês e ano estamos?”, formulava, entre outros enevoados pensamentos. Zapeando pelos canais, foi catando fragmentos da realidade pouco a pouco adivinhada: comerciais das Lojas Havan e das Organizações Tabajara se ensanduichavam entre os blocos dos noticiários que comunicavam a quarta nomeação, em apenas três meses, de um Ministro da Saúde diferente. Isso ocorria, ao que tudo indicava, em meio a uma pandemia viral. Desligou a televisão e se pôs a vasculhar o próprio celular, em busca de si.
Alguém bateu com cuidado na porta. Aparentemente, era a mãe dele.
– Filho, já são quase nove! Venha tomar o café – admoestou, do outro lado. Estranho, mas ele não conseguia se lembrar do rosto da mãe. Vasculhou a memória por um segundo ou dois, mas não conseguiu recuperar nada. Que manhã bizarra, nebulosa, incompreensível. Seria tudo isso a ressaca de um porre monstruoso?
– Sim, obrigado, mãe. Já vou me levantar – respondeu automaticamente, estranhando a própria voz a cada palavra. Era uma voz diferente, ainda que familiar. Murmurou mais algumas palavras para si mesmo, como se testasse um instrumento. Ao final de dois minutos, estava contente: constatou que soava bem. Ele tinha uma bela voz, uma voz boa de se ouvir.
Saiu da cama de um pulo e correu para o espelho do banheiro. Não ficou menos satisfeito com o que o reflexo lhe devolveu: estava ali um homem que ostentava uma bem cuidada barba, a mais bem-apresentada que já vira. A testa alta anunciava uma inteligência incomum e todo o conjunto do rosto revelava uma grandeza iminente, prestes a se materializar; claramente, era só questão de tempo até que um exemplar de homem magnífico como aquele tomasse de assalto o mundo dos negócios. O espelho não mentia: era só questão de tempo.
“Claro!”, pensou ele. “Como pude me esquecer?”, inequivocamente se iluminou, completando a insólita transposição. Naquele mesmo segundo, soube por inteiro quem era e quem, em breve, certamente seria – com um pouco de trabalho e a benção dos ventos liberais favoráveis, se Deus quiser, é claro.