A partir dos anos 70, as sociedades ricas substituíram os produtos padronizados do fordismo por bens de consumo personalizados, atendendo a desejos inexplorados e criando novos desejos ILUSTRAÇÃO: MUNDO LOPEZ
O cidadão como consumidor
Considerações sobre a invasão da política pelo mercado
Wolfgang Streeck | Edição 79, Abril 2013
Quatro décadas atrás, em um artigo célebre na revista americana The Public Interest intitulado “Bens públicos e status privado”, o economista Joseph Monsen e o cientista político Anthony Downs enfrentaram a questão de saber por que a sociedade americana era, na definição de John Kenneth Galbraith, “rica na vida privada, mas pobre em serviços públicos”. Os autores não estavam convencidos pela explicação padrão dada na época: as “técnicas de propaganda inteligentes e nefastas” utilizadas pelas grandes corporações para manipular os consumidores faziam com que eles “comprassem bens e serviços privados que não necessariamente desejassem ou necessitassem”.
Em vez disso, Monsen e Downs sugeriram que havia “um fator mais fundamental” em ação, que explicava a disparidade na distribuição de bens entre os setores público e privado: um “desejo”, por parte dos consumidores, “de competição e diferenciação”, que os levava a “criar distinções visíveis entre grandes grupos e classes e, dentro desses grupos, diferenças individuais mais sutis”. Monsen e Downs definiram esse desejo como “uma parte intrínseca da natureza humana, evidente, pelo menos em algum grau, em todas as sociedades, passadas e presentes”. Um desejo “tão fundamental que pode ser considerado uma lei da natureza humana”.
E por que essa “lei da diferenciação do consumidor” afetaria a distribuição de recursos entre a esfera privada e a esfera pública numa economia moderna? O ponto central do argumento da dupla é que os bens produzidos ou distribuídos pelas autoridades públicas são padronizados. A padronização dos fuzis do Exército é o exemplo mais evidente:
Tais bens são mais fáceis de produzir e de serem administrados pela burocracia, e estão de acordo com o ideal de igualdade que rege a distribuição dos bens governamentais. Mas, devido a essa mesma característica, não podem ser facilmente usados para a diferenciação de status, que é uma das principais funções da maioria dos produtos nas sociedades industriais avançadas.
Em seu artigo, Monsen e Downs fizeram uma distinção útil entre dois modos de fornecimento de bens e serviços, que resultam em produtos diferentes: um é público e coletivo, administrado pelas autoridades estatais; o outro é privado e individual, mediado pelos mercados. Eu apresentarei uma visão cronológica da relação entre esses dois modos de fornecimento. Mas, em vez de explicar a crescente diversificação dos produtos com base numa predisposição humana atemporal para a busca do status, vou relacioná-la a um modelo específico de satisfação do consumidor. Esse modelo foi desenvolvido na transição de uma economia de atendimento das necessidades para outra, de atendimento dos desejos; de um mercado centrado no vendedor para um mercado centrado no comprador.
ADEUS, FORD T
O fim dos anos 60 e o início dos anos 70 foram, como sabemos agora, um divisor de águas na história do capitalismo democrático do pós-guerra. Tornou-se habitual falar da crise e do colapso de um regime de produção e consumo que, depois de sustentar um crescimento econômico sem precedentes durante os “trinta anos gloriosos”, de 1945 a 1975, passou a ser chamado resumidamente de “fordismo”. Hoje, o que mais é lembrado sobre o seu desaparecimento talvez seja a onda de agitação sindical do final dos anos 60, e com ela a recusa de parcelas crescentes de trabalhadores a se submeterem à disciplina das linhas de montagem, junto com reivindicações de redução da carga horária e de melhores salários.
Mas não foi apenas o mercado de trabalho que se tornou um gargalo para o avanço da acumulação capitalista. Fatos semelhantes ocorreram nos mercados de produtos – e, de fato, as mudanças nos dois estavam relacionadas. O fordismo levara à produção em massa de bens padronizados para sociedades que estavam há décadas em transição da vida rural para a vida urbana e industrial. Nelas, as pessoas gastavam sua renda crescente em bens de consumo duráveis, como carros e geladeiras, que conseguiam adquirir pela primeira vez na vida de suas famílias.
As necessidades ainda eram óbvias, a escassez era um fato, e o que as pessoas pediam, e podiam pagar, eram produtos confiáveis, robustos e baratos, o que era possibilitado por uma produção em grande escala. Assim, a venda de produtos era dominada por oligopólios que se beneficiavam da demanda crescente. Para os produtores em massa daquela época, vender era muito menos problemático que produzir: os compradores estavam acostumados a longos prazos de entrega e esperavam pacientemente a sua vez.
Ao entrevistar gestores alemães experientes, por vezes eu os ouvi falar com saudades das décadas de 50 e 60: tudo o que precisavam fazer era fabricar um produto padrão e, em seguida, distribuí-lo para uma clientela respeitosa, feliz por ser atendida sempre que encaixada no cronograma de produção da empresa. Dada a estrutura da concorrência e o desejo de preços baixos, os clientes não tinham a expectativa de ter muitas opções. A famosa frase de Henry Ford sobre seu modelo T2 – “Disponível em qualquer cor, contanto que seja preto” – ainda se aplicava, grosso modo, à relação entre produtores e consumidores no pós-guerra.
Até ouvi alguns gerentes sugerirem que as diferenças entre o capitalismo organizado do pós-guerra na Europa Ocidental e o socialismo estatal da Europa do Leste não eram tão radicais como se acreditava: apenas os prazos de entrega eram ainda mais longos no Leste. Tampouco havia muita diferença entre o setor privado e o estatal: pedir aos Correios um telefone era bem semelhante a pedir à Volkswagen um carro novo – em ambos os casos havia uma espera de seis meses ou mais. Na verdade, na Europa Ocidental a primeira onda de motorização foi suprida por empresas estatais ou apoiadas pelo Estado: a VW na Alemanha, a Renault na França, a British Leyland na Grã-Bretanha, a Fiat na Itália.
Em 1971 havia sinais claros de que o mundo do pós-guerra – em retrospecto, um mundo idílico – estava chegando ao fim. À medida que os trabalhadores começaram a se rebelar, exigindo uma participação maior nos lucros depois de duas décadas de crescimento ininterrupto e pleno emprego, os consumidores também foram ficando mais exigentes. No Ocidente rico, os mercados para bens de consumo duráveis, padronizados, produzidos em massa, davam sinais de saturação. As necessidades básicas haviam sido, de modo geral, satisfeitas; se a máquina de lavar roupas continuava lavando, por que comprar uma nova? As compras de reposição não poderiam mais sustentar taxas altas de crescimento econômico.
O início da crise manifestou-se de forma mais visível na indústria automobilística. Sua capacidade de produção havia crescido de forma extraordinária, mas agora ela se via espremida entre uma resistência cada vez maior dos operários ao trabalho mecânico das suas fábricas e a indiferença crescente dos consumidores aos seus produtos. No início dos anos 70, as vendas do Fusca de repente despencaram e a Volkswagen entrou em uma crise tão profunda que muitos acharam que era o início do seu fim.“Os limites do crescimento” se tornaram um tema central do discurso público, com empresas e governos partindo para a busca desesperada de uma fórmula capaz de superar o impasse, que ameaçava evoluir para uma crise fundamental do capitalismo.
Hoje podemos ver como essa crise resultou em uma onda de reestruturação dos processos de produção e das linhas de produtos. A militância dos trabalhadores foi derrotada, em parte pela ampliação da oferta de mão de obra – primeiro com a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho remunerado, e depois com a internacionalização da produção. Mais importante, para o nosso contexto, foram as estratégias que as empresas utilizaram para tentar vencer a crise. Enquanto parte da esquerda ainda esperava o fim do “trabalho alienado” e da “tirania do consumo”, as companhias estavam ocupadas fazendo a reengenharia de seus produtos e processos: encurtando os ciclos de produção com a ajuda de novas tecnologias da microeletrônica; produzindo bens de menor durabilidade; e tornando dispensável boa parte do trabalho manual, ou pelo menos permitindo que as empresas relocassem sua produção para outras partes do mundo, onde a mão de obra era mais barata e menos exigente.
Em resumo, a resposta do capital à estagnação do mercado de bens padronizados incluiu tornar os bens menos padronizados. A reengenharia dos produtos agora ia muito além das modificações anuais nas calotas e acabamentos cromados que as montadoras americanas tinham inventado para acelerar a obsolescência dos automóveis. Nos anos 80, a sofisticação do design e a maior flexibilidade das máquinas e do trabalho possibilitaram personalizar as mercadorias de maneira sem precedentes.
Os grandes lotes uniformes da produção em massa foram subdivididos em séries cada vez menores de subprodutos diferenciados, em um esforço para chegar mais perto das preferências idiossincráticas de grupos cada vez menores de possíveis clientes. À medida que a produção em massa deu lugar a algo como uma produção de nicho em grande escala, os consumidores passaram a ser cada vez mais poupados da obrigação de fazer as concessões a que estavam acostumados ao comprar os bens padronizados de outrora – quando sempre havia uma distância entre aquilo que idealmente preferiam e os produtos “tamanho único” que a indústria era capaz de fornecer. A diferenciação dos produtos gerava uma correspondência mais próxima entre os bens manufaturados – e, cada vez mais, os serviços – e o desejo de cada consumidor. Ao mesmo tempo, incentivava os consumidores a cultivar esse desejo.
O que tornou a personalização dos produtos economicamente atraente, e acabou por ajudar as economias capitalistas a sair da estagnação dos anos 70, foi o grau em que ela aumentou o valor da produção industrial: ficou claro que, quanto mais o produto chegava perto das preferências específicas do consumidor, mais este estava disposto a pagar – e, de fato, mais estava disposto a trabalhar, e mais estava disposto a tomar dinheiro emprestado para alcançar o poder aquisitivo que lhe permitisse participar do novo modelo de crescimento econômico, com sua transição dos mercados saturados da era fordista para os atuais.
Com o avanço da revolução da microeletrônica, os modelos de carros disponíveis se multiplicaram a tal ponto que os clientes podiam ser convidados a projetar, eles mesmos, seu novo carro. Na década de 80, não houve dois carros fabricados no mesmo dia na Volkswagen de Wolfsburg – cidade-sede da empresa – que fossem totalmente idênticos.
A personalização dos produtos era parte de uma onda poderosa de comercialização das sociedades capitalistas da época: a diversificação atendia a desejos dos consumidores que, no sistema de produção em massa, tinham ficado inexplorados comercialmente; agora esses desejos podiam ser ativados, e se transformar em fonte de lucro.
Não vou me deter na importante questão de saber se esse processo foi impulsionado pelo consumidor ou pelo produtor. Um exame do marketing moderno sugere que as duas coisas podem ser verdadeiras. O marketing descobre as preferências dos consumidores, mas normalmente também as desenvolve; ele pergunta ao consumidor o que ele gostaria de ter, mas também lhe propõe coisas das quais ele poderia estar disposto a gostar, incluindo coisas que ele nunca imaginou que existissem. O bom marketing, nesse sentido, coopta o consumidor como codesigner, em um esforço para incorporar mais desejos potenciais, ou ainda comercialmente inexplorados, às relações de mercado.
Isso transforma o mercado vendedor do fordismo em um mercado comprador, dando poder ao consumidor de maneiras que seriam inconcebíveis alguns anos antes. Mas também equivale a um gigantesco passo à frente no processo de invasão da vida social pelas “forças de mercado” sob o capitalismo.
DINHEIRO NU
É importante ter em mente o extraordinário alcance da comercialização da vida social destinada a salvar o capitalismo do espectro da saturação dos mercados. Na verdade, nos anos 70 as empresas aprenderam a colocar a individualização, tanto dos consumidores quanto dos produtos, a serviço da expansão comercial. O consumo diversificado trazia oportunidades até então desconhecidas para a expressão individualizada da identidade social. Nos anos 70 e 80, as famílias e comunidades tradicionais também estavam perdendo sua autoridade, oferecendo aos mercados a oportunidade de preencher esse vácuo social – fenômeno que os libertários da época confundiram com a emergência de uma nova era de autonomia e emancipação.
O movimento dos mercados de um objetivo de satisfação das necessidades para o objetivo de atendimento dos desejos se estendeu muito além dos automóveis. Outras indústrias que se expandiram depois do fim do fordismo incluíam as de bens de luxo – de perfumes e relógios da moda –, todas seguindo o mesmo padrão de diferenciação crescente e rotatividade acelerada dos produtos. Um exemplo típico foi a coleção de relógios Swatch, uma criação de marketing por excelência, que apareceu pela primeira vez em 1983, quando os fabricantes asiáticos começaram a substituir os relógios mecânicos por microprocessadores a quartzo.
A produção em massa não desapareceu, mas ficou muito mais sofisticada, desenvolvendo seus próprios nichos. Juntamente com o McDonald’s, que também acabou adotando certa diversificação de seus produtos, as cozinhas regionais e locais foram redescobertas, e a culinária refinada se expandiu como nunca. Nos anos 80, a produção de vinho seguiu o exemplo da indústria automobilística quase passo a passo, quando os vinicultores abandonaram a prática de elaborar misturas genéricas com diversas uvas de vários locais e voltaram a produzir uma gama de produtos diferentes, cada um com seu caráter individual e sua origem identificável.
A escala da virada generalizada para a comercialização talvez seja mais bem ilustrada pelo mundo do esporte. Já bem avançada a década de 70, os Jogos Olímpicos ainda eram um domínio dos chamados “amadores”, de quem se esperava que não ganhassem dinheiro nenhum naquela atividade, considerada oficialmente como não mais que uma obsessão pessoal ou, conforme o caso, um dever patriótico. Mas, em pouco tempo, o que antes era o “movimento olímpico” se transformou em uma gigantesca máquina de fazer dinheiro, tanto para os atletas como para os patrocinadores, a publicidade, a mídia e um complexo de outras empresas produtoras de bens de consumo relacionados ao exercício físico ou ao corpo.
A transformação do esporte como instituição social – de uma cultura de ascetismo para outra de narcisismo consumista, em menos de três décadas – pode ser simbolizada pela ascensão simultânea de duas empresas alemãs, Adidas e Puma. De início produtoras locais de dois ou três estilos de chuteiras de futebol e tênis de corrida, passaram a ser empresas globais multibilionárias, que ganham dinheiro, basicamente, com produtos de moda, que vão de centenas de modelos de tênis a perfumes.
A comercialização criou oportunidades – ao que parece, bastante atraentes – para um novo tipo de socialização, isto é, a maneira de o indivíduo se conectar aos outros e, assim, definir seu lugar no mundo. As vastas possibilidades de consumo nos mercados ricos fornecem um mecanismo que permite que as pessoas concebam um ato de compra como um ato de autoidentificação e autoapresentação, que diferencia o indivíduo de certos grupos sociais e o une a outros.
Comparada a modos mais tradicionais de integração social, a socialização por meio das escolhas do consumidor parece mais voluntária, resultando em laços sociais e identidades menos restritivas – de fato, inteiramente livres de obrigações para além daquilo que Marx e Engels chamaram de bare Zahlung, ou dinheiro nu. Isto porque, em um mercado rico, comprar algo envolve apenas escolher aquilo de que você mais gosta (e pode pagar), a partir de um menu de opções, em princípio infinito, que aguardam a sua decisão, sem necessidade de negociar ou ceder como era preciso fazer nas relações sociais tradicionais.
Assim, a socialização pelo consumo é monológica e não dialógica, voluntária e não obrigatória, individual e não coletiva. É a partir dessa perspectiva que parece produtivo falar de uma política do consumo nas sociedades ricas de hoje. Nelas, é fácil sair das identidades coletivas que foram estabelecidas pela compra sem que esse passo precise ser validado pelas “pessoas significativas na sua vida”. É óbvio que essa condição é sentida, de modo geral, como uma libertação, quando ela é comparada não apenas com ter que comprar mercadorias padronizadas, fabricadas em massa, mas também com a natureza restritiva das comunidades tradicionais, como família, bairro ou nação, e das identidades coletivas fornecidas por elas. Na verdade, até mesmo a moda é hoje muito menos restritiva – também se poderia dizer menos opressiva – do que era sob o regime da produção uniforme. Há hoje inúmeras submodas, na música e nas roupas, a maioria durando apenas alguns meses antes de desaparecer, em rápida rotatividade.
Como é muito mais fácil abandonar uma comunidade de consumo que uma comunidade “real” tradicional, as identidades sociais passam a ser estruturadas por vínculos mais fracos, permitindo que o indivíduo passe de uma para outra, livre de qualquer pressão para explicar suas escolhas. Os mercados diversificados oferecem alguma coisa para todos, enquanto a internacionalização aumenta a variedade de produtos disponíveis e aguça o contraste entre as comunidades locais do passado e as sociedades sem fronteiras de consumidores, unidos temporariamente por uma aquisição – ou simplesmente por clicar no mesmo botão “curtir”.
A socialização por meio das redes sociais – Twitter, Facebook e afins – representa uma extensão dessa tendência, inclusive por oferecer às empresas mais um conjunto de ferramentas para um marketing altamente individualizado. Firmas, políticos e celebridades de todo tipo aprenderam a usar as mídias sociais para personalizar comunidades imaginadas de “seguidores”, prontas para receber mensagens pseudopessoais a qualquer momento do dia. Na política, a esperança é utilizar as novas tecnologias para compensar a atrofia crescente dos partidos tradicionais. Ao mesmo tempo, elas provocam uma personalização ainda maior da política; virá o dia em que Angela Merkel vai informar imediatamente aos seus “seguidores” o quanto apreciou a ópera a que acabou de assistir.
DE GOETHE A MURDOCH
A comercialização sem precedentes da vida social, que visava salvar o capitalismo da estagnação, afetou profundamente as relações que haviam sido estabelecidas nas economias mistas do pós-guerra entre o fornecimento de bens pelo Estado e o fornecimento de bens pelo mercado. E, ainda mais importante: mudou a relação entre os cidadãos e os Estados no que resta da esfera pública – e, portanto, a natureza da própria política.
O fato de que os Estados passaram a coexistir com os novos mercados dinâmicos de bens de consumo avançados ajudou a aumentar a pressão dos investidores pela privatização de vários serviços que até então eram públicos, incluindo telecomunicações, radiodifusão e televisão. Estes passaram a ser cada vez mais vistos, em seus formatos tradicionais, como antiquados, maçantes e insensíveis às demandas dos usuários, agora tornados consumidores. Quando o progresso tecnológico possibilitou que essas áreas antes controladas pelos Estados sofressem a mesma multiplicação e diversificação de produtos verificada na indústria manufatureira, os governos de todo o mundo aceitaram e ajudaram a legitimar o argumento de que só as empresas privadas poderiam satisfazer as expectativas crescentes dos consumidores, que agora exigiam produtos mais personalizados.
Foi nos setores privatizados da televisão e das telecomunicações que a comercialização mais avançou. Não por acaso, foi nessas áreas que algumas das maiores fortunas do final do século XX foram feitas, em especial por empresários do entretenimento como Rupert Murdoch e Silvio Berlusconi. Na Alemanha, não havia mais que dois canais nacionais de televisão até meados da década de 70, ambos públicos, com muitas reportagens de interesse público e uma missão educativa oficial. O resultado eram muitos programas mostrando peças de Goethe, Shakespeare e Brecht, assim como transmissão ao vivo dos debates no Parlamento.
Hoje, em comparação, é possível receber mais de 100 canais de tevê, muitos do exterior. Os dois canais públicos alemães estão confinados a uma pequena audiência de pessoas mais velhas – apesar de terem modificado sua programação para imitar os canais privados, mais voltados ao entretenimento e mais bem-sucedidos. Essa mesma tendência se manifestou em todos os outros países europeus.
As telecomunicações mudaram de maneira semelhante. No caso alemão, o sistema de telefonia nacional era administrado pelos Correios até o final dos anos 80, e seus lucros eram utilizados para subsidiar o serviço postal. O espírito do sistema pode ser ilustrado pelo aviso que as cabines de telefones públicos costumavam ter: Fasse Dich kurz, ou “Seja breve”. Pedia-se aos cidadãos que não abusassem do seu acesso privilegiado às preciosas linhas telefônicas estatais para jogar conversa fora. Em comparação, alguns anos atrás uma das muitas empresas de telefonia privada, com seus inúmeros planos personalizados, lançou anúncios mostrando jovens conversando em seus celulares com o slogan Quatsch Dich leer, ou “Jogue conversa fora à vontade”.
Um terceiro exemplo de como os novos padrões de consumo incentivaram a privatização de serviços públicos é o das piscinas. No pós-guerra, quase todas as comunidades alemãs tinham uma piscina pública. Eram simples, até austeras, mas muito frequentadas, devido à convicção generalizada de que eram boas para a saúde e que as crianças tinham o dever de aprender a nadar, tanto para reforçar seu caráter como para poder salvar outras pessoas do afogamento. Nos anos 70, porém, a frequência diminuiu e as piscinas estatais, ou Stadtbäder, sofreram uma crise financeira. Ao mesmo tempo, piscinas privadas, chamadas Spassbäder, começaram a surgir e prosperar. Ofereciam redemoinhos de água quente, saunas, restaurantes, praias artificiais, até mesmo shoppings. O preço da entrada era muito mais alto do que nas decadentes Stadtbäder, mas nelas havia muito mais diversão.
Com o tempo, cada vez mais comunidades fecharam suas piscinas públicas, ou as venderam a empresas privadas que prometeram reformá-las e oferecê-las como Spassbäder. Onde as piscinas continuaram públicas e as comunidades tinham dinheiro para investir, elas foram reformadas no espírito da competição com as empresas privadas, e muitas se recuperaram. Geralmente, porém, nessa área como em outras, começou a prevalecer a ideia de que apenas o setor privado era capaz de atender adequadamente às necessidades em transformação de uma clientela mais rica e mais exigente, e que a melhor coisa que o Estado poderia fazer nas circunstâncias era não atrapalhar – fechar suas instalações primitivas e convidar as empresas privadas para proporcionar diversão, cores variadas e, sobretudo, liberdade de escolha.
De muitas maneiras, tornou-se consenso político nos anos 80 e 90 que a diferença entre a oferta pública e a privada estava no fato de que o Estado impõe às pessoas aquilo de que elas supostamente necessitam – e que será sempre o mesmo para todos –, enquanto o setor privado oferece o que as pessoas realmente desejam, individualmente. Embora isso fosse uma forte motivação para a privatização, também se irradiou para as atividades do governo que, por qualquer motivo, não podiam ser terceirizadas para o mercado.
Os governos começaram a reconhecer a suposta superioridade inerente do setor privado sobre o setor público, incentivando os cidadãos a se verem, nas suas relações com as burocracias estatais, como consumidores. Os funcionários do Estado em contato com a população foram ensinados a agir não mais como representantes da lei, da autoridade pública legítima, ou da vontade geral, mas como prestadores de serviços em um mercado competitivo, movido pelos desejos dos seus clientes e pela pressão da concorrência.
Foi nesse espírito que na Alemanha, durante as reformas promovidas pelo governo do social-democrata Gerhard Schröder (1998 a 2005), o antigo Arbeitsamt, o Departamento do Trabalho, foi rebatizado como Arbeitsagentur, uma “agência” que teve que aprender a se referir aos desempregados como seus “clientes”. O modelo para isso, é claro, foi a Terceira Via do Novo Trabalhismo britânico, que tinha muito a dizer sobre as ineficiências, supostas ou reais, dos serviços fornecidos pelo Estado, entre as quais sua falta de atenção às “necessidades reais” dos clientes. Na “nova gestão pública”, uma avalanche de indicadores quantitativos de desempenho passou a substituir o feedback corretivo do mercado comercial.
O VELHO E O NOVO
Os efeitos colaterais, por assim dizer, da nova “política do consumo” sobre o que se poderia chamar de “velha política” têm sido ainda mais importantes que a privatização das funções estatais. À medida que atividades antes públicas foram transferidas para o setor privado e a esfera pública passou a ser desacreditada, a base material para a legitimidade do Estado começou a encolher.
Mas o declínio da legitimidade política não ficou restrito à prestação de serviços. Aos poucos foi se estendendo até o próprio núcleo da cidadania. As relações tradicionais entre os cidadãos e o Estado se tornaram cada vez mais sujeitas a comparações desfavoráveis com o relacionamento entre consumidores e produtores nos mercados pós-fordistas de bens de consumo. Para ser mais explícito: a reestruturação do consumo destinada a restabelecer a dinâmica da acumulação capitalista após a crise dos anos 70 possibilitou – na verdade, estimulou e cultivou – atitudes e expectativas por parte dos consumidores-cidadãos que começaram a se irradiar para o que restava da esfera pública.
Em comparação com o novo regime de consumo, o Estado e os bens pelos quais ele ainda era responsável pareciam cada vez mais pobres e sem atrativos, tal como ocorreu com os mercados dos produtos uniformes da era fordista durante seu processo de saturação. Foi exatamente esse contraste que Monsen e Downs invocaram em seu clarividente artigo de 1971 para explicar a disparidade entre a pobreza pública e a riqueza privada.
Os dois autores não estavam nada felizes com a situação que descreveram. Em vez de se contentarem em celebrar a superioridade do mercado sobre o Estado, ofereceram uma série de sugestões para melhorar o equilíbrio entre a riqueza pública e a privada numa sociedade capitalista. Na verdade, alguns dos remédios que sugeriram parecem bem semelhantes ao que viriam a ser as reformas do setor público nos anos 90: menos uniformidade e mais diferenciação nos “bens públicos”; privatização do fornecimento de “bens que não precisam ser distribuídos pelo governo”; uso de “produtores privados de bens e serviços” como “fornecedores de bens governamentais”; e maior descentralização das atividades do governo para os municípios.
Essas propostas para restaurar a legitimidade da política, na competição com as atrações do setor privado, parecem notáveis, mas só podem servir ao seu propósito em uma gama limitada de atividades governamentais; sua aplicação em outras áreas seria, na verdade, contraproducente.
Existem bens coletivos que não podem ser personalizados e devem ser produzidos, ou pelo menos aprovados, por aqueles que se beneficiam deles, pela coletividade: a solidariedade social, a justiça distributiva e os direitos e deveres gerais que constituem a cidadania. São o que chamo de bens políticos. Estes precisam se tornar atraentes por outros meios que não a diversificação de produtos.
Mais especificamente, estou argumentando que a condição de cidadão é, por sua própria essência, menos confortável que a condição de consumidor. Se for medida pelos mesmos critérios de personalização e diversidade, vai perder a disputa. Se for vista em termos de direitos do consumidor, a estrutura da cidadania vai parecer semelhante à do consumo nos antigos mercados de massa, já que as pessoas precisam aceitar que apenas algumas das suas preferências particulares serão atendidas, e que deverão abrir mão de outras.
Além disso, em vez de apenas consumir as decisões políticas, os cidadãos de uma democracia funcional são convidados – na verdade, obrigados – a participar da sua produção. Nesse processo, eles devem submeter seus desejos “crus” ao escrutínio crítico em algum tipo de debate público. Conseguir o que desejam pode exigir uma ação coletiva e não individual, o que demanda, por sua vez, investimentos consideráveis, sem garantia de que o resultado vá satisfazer ao gosto de cada um.
Na verdade, o papel de cidadão exige uma disposição disciplinada de aceitar decisões às quais inicialmente nos opusemos, ou que são contrárias aos nossos próprios interesses. Assim, os resultados raramente são ideais do ponto de vista do indivíduo, de modo que a falta de encaixe perfeito com as preferências individuais deve ser compensada pela satisfação cívica com o fato de que os resultados foram alcançados por meio de um processo democrático legítimo. A participação política em uma democracia exige, em particular, que estejamos preparados para justificar e recalibrar nossas preferências à luz de princípios gerais – desenvolvendo essas preferências não no sentido da diversificação, mas da agregação e da unificação.
Além disso, ao contrário do consumo, a cidadania exige que cada um apoie a comunidade como um todo, em especial pagando impostos, que podem ser usados por um governo legalmente constituído em coisas que não foram predefinidas. Isso contrasta com a compra de bens ou serviços específicos, pelos quais a pessoa paga, um de cada vez, preços de mercado.
As comunidades políticas são repúblicas que não podem, pela sua própria natureza, ser transformadas em mercados, não, pelo menos, sem privá-las de algumas de suas qualidades centrais. Ao contrário das comunidades de escolha, altamente flexíveis, que surgem nas sociedades regidas por padrões avançados de consumo, as comunidades políticas são, basicamente, comunidades de destino. Na sua essência, elas pedem aos seus membros que não insistam na sua individualidade separada, mas que aceitem uma identidade compartilhada coletivamente, integrando a primeira na segunda. Portanto, em comparação com as relações de mercado, as relações políticas são, por necessidade, rígidas e persistentes; elas enfatizam, e devem enfatizar, os fortes vínculos do dever, e não os fracos vínculos das escolhas. São obrigatórias e não voluntárias, dialógicas e não monológicas, exigem sacrifícios e insistem na lealdade – proporcionando, nos termos do economista Albert Hirschman, oportunidades de participação, enquanto reprovam quem as abandona.
Assim, a política não pode passar pela mesma reengenharia aplicada às empresas capitalistas e às linhas de produtos após a era fordista. Em vez de simplesmente servir aos desejos idiossincráticos dos indivíduos, ela deve sujeitá-los ao escrutínio público, com o objetivo de incluí-los na vontade geral, que agrupa e se sobrepõe às muitas vontades individuais.
A política sempre permanecerá, na sua essência, estruturalmente semelhante à produção em massa, e, portanto, vai se comparar desfavoravelmente com a facilidade e a liberdade de escolha nos mercados de consumo modernos. A diversificação e a inovação dos produtos políticos nunca serão capazes de manter o mesmo ritmo da diversificação e inovação do mercado consumidor. Como a política trata, basicamente, da criação e da regulamentação da ordem social, seus resultados não podem ser decompostos em diferentes produtos que atendam aos gostos individuais, assim como o consumo desses resultados e a participação dos consumidores na sua produção não podem, em última análise, ser voluntários.
Isso implica que, na medida em que os mercados modernos de bens de consumo se tornam um modelo geral para a satisfação das necessidades sociais, e os cidadãos começam a esperar das autoridades públicas o mesmo tipo de resposta individualizada que se acostumaram a receber das empresas privadas, eles vão se decepcionar, até mesmo e exatamente quando os líderes políticos tentam se fazer simpáticos, mantendo silêncio sobre a diferença entre bens públicos e privados. Disso resulta que a motivação para contribuir para a produção coletiva de bens cívicos vai acabar minguando, o que, por sua vez, prejudicará a capacidade do Estado de produzir os bens cívicos dos quais depende a legitimidade da política.
POLÍTICA COMO CONSUMO
Quais são as consequências da maior atratividade dos mercados, quando comparados à política, nas sociedades ricas? Em primeiro lugar, parece que a classe média, que detém poder aquisitivo suficiente para conseguir o que quer por meio do mercado, e não da política, perderá o interesse pelo complexo processo coletivo de definição das preferências e de tomada de decisões, e julgará que os sacrifícios da satisfação individual exigidos pela participação na política tradicional já não valem a pena.
Embora isso possa ser chamado de apatia política, não implica necessariamente que as pessoas deixarão de se manter informadas sobre o que está acontecendo e, por exemplo, parem de acompanhar as notícias. É verdade que muitos fizeram isso nos últimos anos; de fato, grande parte da geração que chegou à idade adulta nos anos 80 e 90 nunca teve esse hábito. Na Alemanha, quase ninguém com menos de 50 anos assiste a um dos dois canais de tevê públicos. Embora seus espectadores, já maduros, continuem votando nas eleições em números desproporcionalmente elevados, para eles, também, a política pode estar se transformando aos poucos em uma forma de entretenimento, um esporte cujos protagonistas são quase sempre vistos com desprezo: nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, os políticos e os partidos foram tão desprezados pelos cidadãos como hoje.
A migração em grande escala da política para os mercados não significa que as pessoas não consigam se fazer ouvir por meios não tradicionais de participação política. Tanto os jovens como a classe média abastada se tornaram muito competentes nisso, sempre que se sentem afetados ou insatisfeitos. Parece, porém, que a maioria dessas iniciativas não é a favor, mas contra alguma coisa – normalmente algo iniciado pelo governo. É claro que suspeitas de que projetos governamentais são mal concebidos ou mesmo corruptos são, muitas vezes, totalmente justificadas; mas isso não altera o fato de que a participação política do tipo não convencional é, em geral, tão avulsa quanto as decisões individuais de consumir ou não.
O que está em jogo para o participante não é saber se uma determinada medida se encaixa em um projeto coletivo mais amplo, mas sim se ele precisa “comprar” um bem público produzido por líderes políticos e imposto aos cidadãos pelas autoridades. A participação desse tipo é essencialmente negativa, sugerindo que os cidadãos esperam pouco do que pode ser fornecido de modo coletivo-político, e que os governos têm poucos projetos, ou nenhum, a oferecer, em nome dos quais as pessoas estariam dispostas a se submeter a decisões majoritárias que não correspondem plenamente às suas preferências.
À medida que a escolha individual predomina sobre a escolha política coletiva, a política vai ficando deslocada, sem contexto. Em vez de se relacionar com uma visão coerente de como a sociedade é ou deseja ser organizada, decisões políticas individuais são compradas ou rejeitadas uma de cada vez. De certa forma, isso se parece com o que era chamado, décadas atrás, de “o fim da ideologia”. Nos anos 60, porém, em uma sociedade muito mais organizada e reverente, elites “pragmáticas” eram capazes de lidar com “as questões específicas” com base em “seus próprios méritos”. Nas sociedades fragmentadas de hoje, a ausência de um contexto “ideológico” coerente e viável para as decisões de política pública gera uma onipresença de resistências setoriais a qualquer decisão que esteja em consideração.
Aqui há uma conexão óbvia com a perda de prestígio dos partidos políticos, que costumavam desempenhar o papel de intermediários, agregando as reivindicações de diferentes setores da sociedade em plataformas mais ou menos coerentes. Em muitos países, tais programas perderam sua importância tanto para os partidos como para os eleitores. Ou, como nos Estados Unidos, tornaram-se listas de temas e promessas, controladas pelas pesquisas de opinião e reunidas pouco antes de uma eleição, para serem descartadas logo depois.
A desarticulação da política contemporânea, com sua impressionante semelhança com a aleatoriedade e a irresponsabilidade coletiva do consumo privado, tem muito a ver com o fato de que os jovens, em particular, parecem menos inclinados que nunca a entrarem em um partido político e, desse modo, a identificarem-se com um programa que não combina integralmente com seus gostos individuais, mas que teriam que aceitar em nome da coerência programática e da unidade partidária. Novamente, isso não significa que os partidos não possam conquistar os jovens. Mas a experiência de um país como a Alemanha, com uma tradição de filiação partidária, sugere que a participação é maior quando se dá em torno de temas específicos e, principalmente, não exige uma aceitação formal de obrigações gerais, para não falar em disciplina partidária. (Aqui estão excluídos, é claro, os que entram em um partido para fazer carreira política.) A porta de “saída” deve estar sempre visível e aberta.
Os compromissos individuais limitados e efêmeros, característicos da política baseada em questões isoladas, não são, estruturalmente, muito diferentes da compra de um determinado automóvel ou telefone celular. Se o produto parar de empolgar o consumidor, este pode abandoná-lo sem culpa. Assim, os atos de participação política viram atos de consumo, ou de busca hedonista de satisfação individual. A lealdade generalizada não é solicitada; e se fosse, talvez ninguém aparecesse para se manifestar. A participação política como dever do cidadão dá lugar à participação política como divertimento: é uma preferência pessoal como outra qualquer.
Os sistemas políticos bem que tentaram imitar os mercados. Os gastos com pesquisas de opinião e propaganda parecem ter explodido, junto com a volatilidade dos consumidores. A inovação dos produtos, contudo, ainda é rara na política, e a diferenciação entre eles é difícil. Note-se, porém, o número crescente de partidos de nicho em muitos países, como o Partido Pirata na Alemanha, e o declínio dos velhos partidos de massa – produtores “fordistas” de consenso político –, num processo semelhante à fragmentação dos mercados.
Outra consequência da penetração dos hábitos modernos de consumo na esfera pública é que a imagem da política é cada vez mais reduzida a jogos de poder egocêntricos, escândalos e travessuras egoístas de quem ainda se dedica a ela. Claro que, se a política é tida como irremediavelmente inferior ao mercado quando se trata de atender aos interesses das pessoas, ela pode estar fadada a parecer cada vez mais autorreferente. E pode ser forçada a se mover nessa direção, se os assuntos sérios são relegados às forças do mercado e o que sobra são as personalidades políticas, seu estilo e aparência.
Conforme a classe média e as gerações pós-fordistas transferem suas expectativas de ter uma boa vida do consumo público para o consumo privado, aqueles que, por falta de poder aquisitivo, continuam dependentes do provimento público também são afetados. O desgaste da esfera pública os priva do seu único meio potencialmente eficaz de se fazerem ouvir, desvalorizando a moeda política por meio da qual eles poderiam compensar sua falta de moeda comercial. Os que estão na camada inferior da sociedade não têm lugar nos mercados e em seu regime de distribuição de recursos, mas poderiam se beneficiar de alianças eventuais com grupos mais poderosos que eles, em coalizões políticas que precisem do seu apoio.
Além disso, melhorar a vida dos mais pobres poderia figurar como um objetivo importante na visão política coletiva de uma boa sociedade, enquanto os mercados sempre podem prescindir deles. Na verdade, os pobres sofrem de várias maneiras com a despolitização da satisfação dos desejos nas sociedades ricas. Não é só que a classe média potencialmente reformista tenha deixado de ter muito interesse ou muita confiança nos projetos coletivos. À medida que busca o que precisa individualmente, no mercado, ela resiste mais a pagar impostos. Com o declínio da relevância social da política e do respeito por ela, a resistência aos impostos aumentou em quase toda parte, até mesmo na Escandinávia, e os níveis de tributação caíram em quase todas as democracias ricas.
Diante de um sistema político carente de legitimidade e de recursos materiais, reduzido à política como entretenimento (ou politainment, como já se diz em inglês), as classes mais baixas passam a seguir o exemplo da geração mais jovem. Se abstêm de votar, em números cada vez maiores, recusando-se a participar mesmo simbolicamente do que poderia ser o seu último recurso na busca de uma vida melhor. Na Europa Ocidental, o cenário é cada vez mais parecido com o dos Estados Unidos.
A transformação da democracia sob o neoliberalismo também nos faz lembrar a observação de Albert Hirschman sobre as ferrovias estatais da Nigéria: conforme os mais ricos perdem o interesse pelo serviço coletivo, e se voltam para as alternativas privadas – mais caras, mas, para eles, acessíveis –, sua saída acelera a deterioração dos trens públicos e desestimula o seu uso, mesmo entre aqueles que dependem deles porque não podem pagar por alternativas privadas.
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