ILUSTRAÇÃO: NEGREIROS_2014
O cineasta pernambucano
Cinema é ereção. É uma vontade, uma necessidade que emana das vísceras
Renato Terra | Edição 89, Fevereiro 2014
O que me nutre é o sêmen dessa urbe anônima e brutal, repleta de pequenos burgueses que tremem de medo detrás das grades de seus condomínios de merda, enquanto tentam desviar os olhos das vísceras expostas desse Brasil que meu cinema denuncia e condena. Me chamo Pedro Ivo e o Recife entrou na minha corrente sanguínea como uma catuaba selvagem, expandindo a minha mente e aguçando a minha sensibilidade. O bom gosto me enoja. Não tenho medo de chafurdar no pântano e me lambuzar de sangue e bílis. O cinema da minha terra é tão autoral e criativo que inventei um novo gênero: a cineautobiografia visceral. Antecipo o roteiro de Soluço líquido, enquanto espero o resultado do Funcultura.
ATO I – O CANTO GUTURAL DE UM FREVO
Cena caseira filmada, em super-8, com os mesmos movimentos de câmera usados em Terra em Transe.
Uma mulher em trabalho de parto declama Uma Mulher Vestida de Sol, de Ariano Suassuna, aos berros, para se acalmar. O parto normal não caminha bem, mas o médico não sabe o motivo. O bebê não consegue sair. Decide fazer cesariana. Ao retirar a criança, o médico fica visceralmente estupefato.
MÉDICO: Descobri o que estava acontecendo. Seu filho nasceu de pau duro.
O pequeno cabra recebe a palmada e, em vez de chorar, entoa um trecho de O Barbeiro de Sevilha em ritmo de manguebeat.
MÉDICO: Parabéns, dona Armelinda, é um cineasta!
Dona Armelinda vai para o quarto e permanece estática. Num plano silencioso de quinze minutos, olha pela janela e reflete sobre as mudanças urbanísticas sofridas pelo Recife nesses últimos vinte anos.
MONTAGEM PARALELA
Corte seco: um tatuí é pisoteado no asfalto quente.
MONTAGEM PARALELA
Num puteiro, um latifundiário usa a primeira edição de Casa Grande & Senzala para seviciar uma puta. (Ponto de vista da lombada do livro.)
Inserção gratuita de entrevista de Lars von Trier, em dinamarquês sem legenda.
ATO II – A VALSA DA CARNE CRUA
Plano fechado de xoxota, imagem consagrada do cinema pernambucano. Fui eu, Pedro Ivo, que a incluí na Carta Visceral, nossa versão do Dogma 95, um conjunto de regras compilado pela Associação de Cineastas Viscerais de Boa Viagem.
A dita-cuja está com um baseado preso aos lábios. A brasa morre.
VAGINA (voz em off, sotaque pernambucano): Ô, Pedro Ivo, tu tem fogo?
Pedro Ivo, um jovem de 11 anos, abre o zíper.
PEDRO IVO: Serve?
A vagina não responde.
Magoado com o descaso, Pedro Ivo retalha o rosto com um canivete enferrujado, deixando uma cicatriz visceral que o acompanhará pelo resto da vida. Durante a cena, usa o próprio sangue para escrever na parede os nomes de John Cassavetes e Charles Mingus.
Pedro Ivo grita que o mar virará sertão até estourar cinco cordas vocais. Veste então uma camisa vermelha estampada com o rosto de Apichatpong Weerasethakul, ajeita o cabelo na boina cubana e, com um gesto visceral, pega o baseado, bate a porta e sai para desafiar o mundo. Está com uma ereção.
ATO III – EROS CICATRIZANTE
Bar Central. Cercado por críticos e donos de cineclube, Pedro Ivo, agora com 20 anos, bebe um coquetel de Natu Nobilis com benzina. Está com uma ereção. Quem o serve é uma garçonete sem calcinha com sotaque levemente francês.
CINECLUBISTA: Pedro Ivo, viste Tropa de Elite 2?
PEDRO IVO: Mais um desbunde de um bacana classe média que adora pobreza em contraluz. Coisa de caboclo que quer ser Hollywood, né, velho?
CINECLUBISTA: E O Palhaço?
CRÍTICO: Sentimentalismo burguês mascarado de filme de arte. Filme-anestesia, filme-Valium, filme-band-aid. Onde estão as entranhas, velho? O soco, o murro, o vômito?
Pedro Ivo vomita em cima do crítico.
CRÍTICO: Obrigado, velho.
CINECLUBISTA: O Cheiro do Ralo?
PEDRO IVO: O pior do lote. Estética radical chique, fingindo estar sob o cabresto de Tânatos quando não passa de angústia cheirosinha. Um Bukowski de convento carmelita. Cinema é ereção, cacete. É uma vontade, uma necessidade. Glauber dizia que o cineasta verborrágico tem de estar no topo da cadeia alimentar de um povo. É um processo de seleção natural que Darwin descreveu a 24 quadros por segundo. Recife une o talento de Florença à tecnologia do Vale do Silício.
Os amigos fazem um brinde – “Foda-se o eixo Rio–São Paulo!”. Em seguida, pedem uma porção de coração de galinha. As aves são trazidas vivas e têm seus corações arrancados à mão diante de fregueses pequeno-burgueses.
Olhos pulando do rosto aterrorizado das galinhas para a bunda carnuda da garçonete, Pedro Ivo tem uma epifania e decide fazer seu primeiro filme.
ATO IV – A NOITE DA VAGINA LOUCA
Com a verba arrecadada com a rifa de suas vísceras, Pedro Ivo compra um DKV Vemag e viaja pelo interior do estado com uma câmera na mão e centenas de ideias na cabeça. Sem gasolina, abastece o carro misturando esterco com sua testosterona. No trajeto, descobre as entranhas do Brasil profundo. Há muita prostituição pelo caminho. Num ambiente eivado de miséria e prazer carnal, Pedro Ivo abandona todo resquício de moral burguesa e se envolve sexualmente com um liquidificador Arno, ao qual chama de “minha cabrita”. Na bem-aventurança que se segue ao coito, Pedro Ivo ouve uma batida de maracatu e, num milagre, é recompensado com a devolução de suas vísceras.
Ao retornar ao Recife, Pedro Ivo se depara com uma cena dantesca: uma placa na porta do cinema da Fundação Joaquim Nabuco anuncia que o local será demolido para dar lugar a um edifício projetado por Hans Donner com fachada de Romero Britto.
Irandhir Santos, Hermila Guedes, Dira Paes, Matheus Nachtergaele, João Miguel, Leona Cavalli e Chico Diaz se chicoteiam em torno do edifício. Pedro Ivo lidera um levante para ocupar a Fundação, no qual todos os invasores usam máscaras de Falconetti em A Paixão de Joana D’Arc, de Dreyer.
Preso e torturado pela polícia de Eduardo Campos, Pedro Ivo termina seus dias crucificado no alto de uma árida colina em Garanhuns. A seus pés, brota um pé de maconha.
Corte para preto e legenda: FINAL, PORRA.
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