ILUSTRAÇÃO: NEGREIROS_2014
O guia de turismo
Ulisses Barros dá dicas para reconhecer compatriotas
Marcos Caetano | Edição 92, Maio 2014
Não acredito em numerologia – para mim, um nome não passa de um punhado de letras num passaporte. Mas não consigo deixar de achar gozado ser xará daquele sujeito da mitologia que viajou a vida toda para não ter de voltar para casa. Eu me chamo Ulisses e entendo de viagem como poucos. Já acumulei bastante milhagem – estou com 57 anos – e, se fosse escrever um livro com tudo que presenciei nessa profissão, tenho certeza de que seria um daqueles bem parrudos, que ficam em pé sozinhos, de escritor bom.
Como identificar um brasileiro no exterior? Seus hábitos e trejeitos? Simples.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que nós, ao contrário de todos os povos do mundo, nos vestimos de forma absolutamente padronizada quando vamos ao estrangeiro, em excursão ou não. Começo pelos homens. Há uma forma bem objetiva de se manjar um dos nossos: as camisas de futebol. Os brasileiros parecem acreditar que usar o manto sagrado de seu clube numa visita ao domo da Basílica de São Pedro é como equiparar, por meio de uma comunhão mística, a agremiação futebolística com a grandeza do lugar.
E mais: se a temperatura está acima de 25 graus, eles invariavelmente vestem bermuda de surfista, daquelas de náilon, estampadas. Seja em Paris, Tóquio ou na Moldávia: calor, bermuda. Se a temperatura cai, jeans. Duvido que alguém encontre uma calça social na mala de um brasileiro, mesmo na remotíssima possibilidade de ele ter planos de ir à ópera. Detalhe: é a mesma calça jeans para toda a viagem. Os filhos dessa mãe gentil sabem da importância de reservar espaço na bagagem para a muamba.
As mulheres, claro, também têm a sua indumentária padrão: calça jeans com salto agulha, camisetas e moletons da Abercrombie, Hollister, American Eagle ou Aéropostale. Sim, para nossos viajantes só existem essas quatro marcas de roupa – além do boné da John John, que elas compram no camelô achando que é coisa de gringo, mas é marca brasileira.
Homens e mulheres de feitio mais esportivo demonstram um desmesurado apego pelos tênis Nike Shox, aqueles com solado de mola. Certa feita, uma cliente saiu de um shopping de Dubai tão deslumbrada que caiu de pé e quicou de volta.
A experiência comercial é, para o brasileiro, um fato transcendental. Já vi compatriotas de todas as extrações sociais derramarem lágrimas diante de uma nova loja da Ralph Lauren ou da Lush. Não importa se vão a Miami, Roma, Machu Picchu ou Guiné-Conacri – nosso negócio será encher sacolas. Fartura, para nós, não é comer bem ou viajar com conforto. Somos pragmáticos.
De modo geral, sabemos que ninguém viaja por outra razão que não seja contar aos amigos. Um estudo feito pelos administradores da Torre Eiffel mostra que os brasileiros passam mais tempo lá em cima postando fotos e comentários nas redes sociais do que apreciando a paisagem. Segundo a minha própria observação, o mesmo ocorre em restaurantes, museus e outros pontos de interesse. Um cliente gastou tanto tempo escrevendo um post sobre a aurora boreal que, quando publicou o comentário, o fenômeno já havia terminado sem que ele o tivesse notado. Outro cliente, em visita a Marselha, se dedicou tanto a ajustar a angulação da luz sobre a sua bouillabaisse que o garçom acabou retirando o prato alegando que se era para comer frio que pedisse uma salada. Achei rude.
Afora a indumentária regimental, cultivamos o hábito de falar muito alto, costume chique que compartilhamos com os italianos – com a diferença de que o pessoal da Bota desconhece a manha de se fazer entender quando todos gritam ao mesmo tempo. Adoramos comentar todo e qualquer assunto na frente de quem quer que seja. E isso porque acreditamos que o português seja um idioma cifrado compreendido apenas pelo seleto grupo de compatriotas que tomou o avião conosco. Calculamos que é maior o risco de alguém entender uma frase em sânscrito do que decifrar o agudo comentário antropológico que acabamos de formular. “Esse metrô parisiense é bacana, mas se eles tomassem banho seria ainda melhor”; “Olha discreto para a boca da senhora atrás de você: não tem dentista na Inglaterra, não?”
E tem também outro maneirismo que acho adorável: a intimidade instantânea. Como fomos eleitos por aclamação o povo mais simpático do planeta, a gente pode tudo, inclusive fazer piada com quem atravessa nosso caminho, e sempre em português. Já ouvi meus PAXs (passageiros, em linguagem de agente de viagem) dizerem coisas tipo assim, na lata: “Que titica de cidade parada a sua, hein?”, “Você até que é legal, mas eu não vou com os cornos de alemão” e “Tua esposa bate o maior bolão”.
Quando cruzam com outros brasileiros, além dos tradicionais gritos de “Aê Brasil, é nóis mano!”, “Falaê, tricolor!”, a intimidade é ainda mais imediata. Somos feitos de material imantado: quando um brasileiro se aproxima de outro há uma irresistível tendência ao contato. Os encontros são tão efusivos, recheados de abraços e exaltados gritos tribais que os gringos acreditam estar diante de uma pessoa que deu de cara com alguém que lhe doou um órgão vital. É muito bonito.
Eu poderia perder horas descrevendo outras características de nossos turistas, como, por exemplo, a arte de furar fila sem arranjar briga com ninguém. Contudo, como o espaço é limitado, quero encerrar com a mais pitoresca de nossas compulsões: os esquilos. Jamais vi um brasileiro passar por um desses pequenos arborícolas sem bater uma foto. Podem reparar. Isto é: se vocês, como brasileiros, conseguirem reparar noutra coisa que não seja o esquilinho, que de fato é de uma graça sem fim.
Assim, meus caros, se toparem com um camarada vestindo a camisa do Grêmio em Maiorca ou uma loira de salto agulha correndo atrás de um esquilo no Tiergarten, lembrem-se de agradecer a Deus pela maravilhosa oportunidade de se haver com um brasileiro alhures. Aproximem-se e ganharão um amigo de infância. Mas só durante a viagem. De volta ao Brasil, o indivíduo se transformará outra vez em gente simples, trabalhadora, recatada e econômica. Tudo para, nas próximas férias, cair de novo na farra.
Não posso reclamar. Meu campo profissional só faz crescer e a vida está me sorrindo. Pesadelo mesmo, apenas um: que os esquilos acabem chegando ao Brasil. Aí ninguém mais viaja.
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