"Era o senhor que queria me bater pelo telefone, hoje de manhã?", perguntou a funcionária ao autor-colaborador-organizador de 77 livros FOTO: ROGÉRIO REIS_2006
O ortodoxo
Do exílio ao patrocínio oficial, o trajeto de Emir Sader, intelectual orgânico do petismo
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 3, Dezembro 2006
“Pensei que a aula ia ser no presídio”, brinca um dos alunos com o professor Emir Simão Sader ao entrar no auditório. Sader dá um sorriso sem graça. Como se não bastasse ter sido condenado, por injúria, num processo movido pelo senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, a Folha de S.Paulo lhe azedara o humor naquela manhã de outubro. No alto da prestigiosa página 2 começava assim: “Como intelectual, Emir Sader é um zero à esquerda. Não há registro de nada minimamente relevante ou inspirador no que escreve”. O autor era Fernando de Barros e Silva, editor de Política do jornal. “Fiquei chocado com a virulência e o reducionismo”, diz Sader, mestre em filosofia e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo. Seu currículo registra 77 “livros publicados/organizados ou edições”, a maioria deles em coautoria. Daqueles de que é o único autor, seu preferido é Estado e Política em Marx, que foi antes a sua dissertação de mestrado.
Enquanto os alunos do curso de extensão “Crise social, movimentos sociais e pensamento social na América Latina” se acomodam no Laboratório de Políticas Públicas, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Sader especula sobre as razões do artigo. “Talvez tenha sido um agrado ao Serra, já que a Folha é serrista até a medula”, diz, baixo e rápido. Imagina também que o artigo se deva à ligação do jornalista com intelectuais que Sader considera seus adversários, “como o Paulo Arantes”. “Ou então ele se irritou com as críticas do Marco Aurélio [Garcia, presidente interino do PT] à Folha e à imprensa.”
Aos 63 anos, Sader é um grisalho de meia calva, que dá aula de jeans e camisa lilás de manga curta. Na primeira pergunta da tarde, antes mesmo que ele comece a falar, uma aluna quer entender melhor os direitos dos acionistas da Petrobras. (Sader foi o organizador de uma enciclopédia de 1.348 páginas que teve patrocínio da própria e de outras estatais.) Na resposta, o professor parte do geral para o particular. “A burguesia é uma classe privada que tira suas vantagens através do Estado; é uma categoria conceitualmente difícil, complicada”, diz. Faz em seguida uma interpolação, referindo- se a uma reportagem sobre a revolta de Canudos, no século XIX. E volta a tangenciar o assunto levantado pela estudante, dizendo que quem banca o Bolsa-Família são o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, “e não o Bradesco”. Pouco depois, conclui: “A Petrobras tem lógica de grande empresa, mas não é a mesma coisa que a Shell”.
De quando em quando, o professor para e toma um gole da garrafinha de água mineral. Ele anda constantemente enquanto fala aos alunos, e alterna as mãos nos bolsos. Quando está parado, coloca a ponta do pé direito no calcanhar do pé esquerdo. É o que faz agora, ao tratar rapidamente da relação entre a Petrobras e Organizações Não-Governamentais, dos tempos em que a prefeita Luiza Erundina queria “cobrar impostos de entidades burguesas que não os pagavam”, ou do aumento do salário-mínimo. Os temas se sucedem velozmente. Geram frases como “Quanto mais cresce a economia informal, maior é o déficit da Previdência”; “Ter emprego ou não ter emprego muda a dignidade de uma pessoa”; “O salário é o valor que uma sociedade capitalista dá para uma pessoa”; “Os trabalhadores da Ford não são a mesma coisa nos Estados Unidos e no Brasil.”
Sader tira os óculos, limpa o canto dos olhos e propõe uma interrupção, para avançar um pouco naquilo que os alunos estão ali para aprender. O tema da aula é este: “A esquerda na América Latina”. Fala então da “revolução negra no Haiti”, da rebelião de Tupac Amaru no Peru, da revolta dos mineiros chilenos e seus três mil mortos, da revolução mexicana, do liberalismo tolerante com a escravidão dos negros e dos índios, da condenação de Saddam Hussein à forca, do filme Caminho para Guantánamo, da violência “da polícia de Geraldo Alckmin” e do programa Bolsa-Família. Ilustra a aula mencionando ou citando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o dramaturgo Bertolt Brecht, o historiador Eric Hobsbawm, o inventor Thomas Edison, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt, os filósofos Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu, os revolucionários Pancho Villa e Zapata, o cômico Cantinflas, o pintor Diego Rivera. Quase duas horas depois anuncia: “Vou parar aqui, para tomar providências em relação ao meu processo”.
O processo começou a tomar forma em agosto do ano passado, quando o senador Jorge Bornhausen fez uma palestra em São Paulo. O escândalo do mensalão estava no auge. Alguém na plateia perguntou se o senador estava “desencantado com tudo isso que está acontecendo”. Bornhausen disse: “Desencantado? Pelo contrário. Estou é encantado, porque estaremos livres dessa raça pelos próximos 30 anos”. Sader comentou a profecia do senador dias depois, num artigo intitulado “O ódio de classe da burguesia brasileira”, publicado no sítio Carta Maior. Escreveu que Bornhausen era “fascista”, “direitista”, “adepto das ditaduras militares”, “racista”, “repulsivo”, “odioso”, “pessoa abjeta”, “explorador” e “assassino de trabalhadores”.
A pedido do senador, o advogado Rafael Bornhausen, um de seus quatro filhos, processou Sader pelos crimes de calúnia, injúria e difamação. Em 24 de outubro, o juiz Rodrigo César Müller Valente julgou a ação parcialmente procedente, condenando Sader, por injúria, à pena de um ano de detenção em regime aberto – substituída por serviços comunitários, por ele ser réu primário – e à perda do cargo de professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sader recorreu da sentença, e o parecer do Ministério Público, emitido em novembro pelo promotor Renato Eugênio de Freitas Peres, afirma que Sader “não é um criminoso”, foi condenado a uma “pena de igual duração àquela que alguns juízes pretendem conferir a traficantes”, e indaga: “Como pode agora um professor universitário ser condenado por expressão de opinião?”.
Sader recebeu a solidariedade de um manifesto que, mais do que defendê-lo, repudiava a condenação como um “despropósito: transforma o agressor em vítima e o defensor dos agredidos em réu”. Assinado por centenas de professores e intelectuais, boa parte deles simpáticos ao PT, o manifesto afirma que a sentença quer “impedir o direito de livre expressão, numa ação que visa a intimidar e criminalizar o pensamento crítico”. Em seu artigo na Folha, o jornalista Fernando de Barros e Silva registra a circulação do manifesto pela internet e considera a sentença “absurda, de fazer inveja a Kafka, e deve ser revista. Mas não é absurdo nem autoritário o direito do senador de processar quem o chama de ‘assassino’, entre outros afagos”.
Depois da aula, o professor entra no banco de trás de seu Polo preto, dirigido pelo seu motorista, um mineiro silencioso de São Pedro dos Ferros, que mora há nove anos no Rio, e seguimos para o Instituto de Identificação Félix Pacheco, no Centro. Nada a ver com o processo. Sader precisava de um atestado de bons antecedentes criminais para apresentar à Embaixada da Argentina, exigência do processo de habilitação ao cargo, para o qual foi recentemente eleito, de secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, Clacso.
Libanês de Kfifen, próximo a Beirute, Nahul Sader desembarcou em Santos, em 1930, com apenas um ano de estudo. Passou pelo Rio, quando as tropas dos tenentistas chegavam à capital. Instalou-se em Sorocaba, onde mascateava em lombo de cavalo. Casou-se em 1940, já em São Paulo, com a professora de piano Ercília Simão. O comerciante se estabeleceu na Vila Mariana, e prosperou com uma confecção chamada Modas Guri. As etiquetas traziam a foto do primeiro filho do casal, Eder, nascido em 1941. Emir veio dois anos depois e Eliana, que é psicóloga, em 1949. Ao lembrar a infância, Sader menciona o Grupo Escolar Floriano Peixoto, o futebol na rua (“Eu era bom nisso”, diz, provocando um riso discreto do seu motorista), o braço quebrado num tombo de bicicleta e, sobretudo, os parentes da mãe: o médico Aniz Simão (pai do colunista José Simão, da Folha de S.Paulo, seu primo) e Aziz Simão, professor de sociologia da Universidade de São Paulo, intelectual de esquerda vinculado ao Partido Socialista Brasileiro. “Do tio Aziz veio a nossa influência maior, minha e do Eder”, diz Sader.
Aziz Simão, químico por formação, ficou cego em 1940. O sobrinho lembra: “Ele pensou em se suicidar, mas foi estudar sociologia. Uma vez, na faculdade, fez uma prova inteira na máquina de escrever. Depois de algumas horas entregou uma porção de páginas, todas em branco, porque a fita estava com defeito. O professor não teve coragem de lhe dizer. Quando se formou, fazia concursos para ser professor. Ganhava, mas era reprovado no exame médico, porque não enxergava. Só conseguiu quando o Lucas Nogueira Garcez foi governador e fez uma lei especial para que ele pudesse assumir”.
Eram os sobrinhos quem liam para Aziz Simão livros de Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Foi Simão quem os fez conhecer, ainda jovens, outros intelectuais de esquerda como Antonio Candido, Florestan Fernandes e Paulo Emílio Salles Gomes. Tanto Eder como Emir passaram a atuar no movimento estudantil secundarista de São Paulo. No final dos anos 50, os irmãos vendiam o jornal da Liga Socialista Independente, que se uniu com outros grupos para dar origem à Política Operária, a POLOP, à qual aderiram.
Sader sobe a rampa do instituto Félix Pacheco com rapidez, demonstrando bom preparo físico, resultado, talvez, como disse pouco antes, de caminhadas que faz na praia (provocando risos no seu motorista). Mal encosta no balcão e diz a que veio, a funcionária que o atende pergunta: “Era o senhor que queria me bater pelo telefone, hoje de manhã?”. Era, como demonstra o encabulado desconcerto de Sader. De manhã, quem sabe depois da leitura do artigo da Folha, o professor, irritado com as informações sobre os trâmites para tirar o documento, havia passado uma descompostura na servidora. O diálogo com a funcionária se encerra sem esclarecimentos ou pedidos de desculpas pelo entrevero.
O carro segue para o Leblon e é estacionado na frente da escola onde estuda o filho mais novo de Sader, de 11 anos. É um dos dois filhos de seu casamento com a jornalista Luciana Villas-Boas, diretora da editora Record. O outro é uma garota de dezesseis. Ele tem outro filho, de 40 anos, de seu primeiro casamento. O professor explica que teve seis relações amorosas mais longas, equivalentes a casamentos. Sader desce para pegar o garoto, que pouco depois é deixado na casa da mãe.
Entramos no apartamento onde Sader mora, no 18o andar de um prédio a quatro quadras na praia do Leblon. Ele conta ter recebido naquela manhã um telefonema “de solidariedade” do presidente Lula. “Mas você não vai publicar isso”, ele diz. “É claro que vou”, retruco, sem réplica.
O professor resume sua relação com o governo Lula da seguinte maneira: “Apoio crítico, centralmente contra a política econômica, a favor da política internacional, contra as práticas da direção tradicional do PT, responsáveis pelo mensalão e pelo dossiê”. Apesar de ter mais motivos de discordância do que de elogio, nem por isso Sader rompeu com o governo. Fez campanha pela reeleição e, no segundo turno, foi um dos oradores de um encontro do presidente com intelectuais no Canecão, no Rio. Elogiou a política externa de “não-submissão a Washington” e ganhou um efusivo cumprimento do candidato. “O PT ainda é o melhor lugar de acumulação de forças para um projeto de esquerda no Brasil”, afirma. Ele define o PSOL, onde se alojaram dissidentes expulsos do PT, como a senadora Heloísa Helena, como “uma combinação de sectarismo e oportunismo”. E como ele se define ideologicamente? “Sou um militante socialista”, diz Sader. Instado a elaborar a resposta, ele acrescenta: “Sou, essencialmente, um anticapitalista”.
O apartamento de Emir Sader tem três quartos e uma sala com vista para o mar. Ele ouve os recados da secretária eletrônica – um deles deixado pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim –, e se senta para conversar. A sala é repleta de livros e miniaturas artesanais, trazidas por Sader de suas muitas viagens. A maioria delas é de bichos, principalmente gatos. Numa estante há fotos de Sader com os filhos, abraçando Fidel Castro e conversando com o sociólogo e historiador Perry Anderson, ex-editor da revista New Left Review. Nas paredes há uma pintura do cubano Alfredo Sosabravo, um cartaz da Praça John Lennon, em Havana, e uma reprodução de Guernica, de Picasso.
Ele foi aprovado no vestibular da faculdade de Filosofia da USP em 1961. Trabalhou como professor de cursinhos e colégios e se graduou em 1965, ano em que casou, na igreja e no civil, com Neusa Barbosa, também formanda em ciências sociais, com quem namorava havia quatro anos. Sob a orientação do professor Ruy Fausto, fez então o mestrado, apresentando a dissertação Estado e Política em Marx a uma banca da qual participaram os professores Bento Prado Jr. e José Arthur Giannotti. Quando o trabalho foi publicado, anos depois, Sader escreveu na introdução: “A defesa da tese se fez com a faculdade ocupada pelos alunos em solidariedade com a greve de Osasco e a guerra contra o Mackenzie. A sala da congregação teve que ser aberta quebrando-se os vidros da porta, para que por seu buraco entrassem todos”.
“Não me lembro de nada disso”, diz o professor Ruy Fausto. Bento Prado Jr. recorda ter participado da banca, mas não do arrombamento da porta. Giannotti lembrou de Sader como aluno seu no curso clássico – “muito interessado nas aulas, e muito interessante” –, mas não do resto: “Não me lembro, mas sou ruim de memória”.
Ruy Fausto diz que a sentença contra seu ex-orientando é “absurda, mas prefiro não falar sobre Emir Sader nem me pronunciar sobre as opiniões políticas dele”. Bento Prado Jr. afirma que, “entre o despotismo do Bornhausen, com quem estou cada vez mais horrorizado, e o Emir, eu fico claramente com o Emir. Li um texto recente em que ele fala sobre a dificuldade de ser de esquerda hoje em dia e, no geral, me reconheci”.
Cioso, Sader registra como produção intelectual absolutamente tudo aquilo em que aparece o nome dele, inclusive as notícias em que é citado. São 670 citações entre o final de 1999 e o primeiro semestre deste ano. Constata-se que, entre 2000 e 2003, ele esteve presente com frequência nas páginas da Folha de S.Paulo, de O Globo e de O Estado de S.Paulo. Aos poucos, essa participação diminuiu. Em 2006, há uma única aparição na Folha, em janeiro. Sader quase não criticava a grande imprensa quando era citado ou escrevia artigos para ela, a começar pela emissora de televisão Globo News, na qual foi comentarista de internacional. Saiu da emissora, segundo diz, porque “os sionistas me tiraram de lá”. Suas críticas à imprensa se tornam cada vez mais abrangentes, na proporção que é menos procurado pelos jornais. No dia 10 de outubro, ele escreve no sítio Carta Maior que, com exceção do seu primo Zé Simão (cujo parentesco é omitido), “nenhum outro colunista regular dos órgãos de maior tiragem e maior audiência deixa de se identificar com a posição dos proprietários das publicações onde trabalham”.
Toca o telefone. É a psicanalista Maria Rita Kehl. “Estou granjeando simpatia e afetos”, ele comenta, agradecendo a solidariedade. “Acho que aquela frase do Marco Aurélio sobre democratizar a redação da Folha deve ter irritado o Fernando”, diz-lhe, referindo-se ao presidente do PT e ao jornalista da Folha. “O juiz é parente de um deputado do PFL”, diz-lhe também. Ao longo da entrevista, Sader repisou que o juiz que o sentenciou tinha relação indireta com Bornhausen. “O pai dele, desembargador em São Paulo, é de Santa Catarina”, disse, sugerindo ligações subterrâneas com o senador carioca-catarinense.
O juiz Rodrigo Valente nega os vínculos: “Não tenho vinculação partidária, não conhecia o réu, não tenho parentesco direto ou indireto com o autor e só o conhecia pela televisão; decidi de acordo com a minha convicção e baseado estritamente na lei”.
Paulistano, Valente tem 33 anos, e é juiz desde 1998. “Não me surpreendi com a repercussão, mas, como juiz criminal, aprendi que a gente não deve se abalar”, diz.
Seu pai é o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Marco César Müller Valente, 65 anos, quarenta de magistratura. “Nasci em Brusque, Santa Catarina, mas estou em São Paulo desde os quatro anos”, contou. Nas últimas eleições, o desembargador puniu o PT de São Paulo em pelo menos meia-dúzia de decisões. “A mim competia, por sorteio, julgar os processos relacionados ao PT e aos partidos coligados”, explica. “No exercício da judicatura, eu não tenho ideologia.” E como cidadão? “Como cidadão, eu me reservo a guarda do meu pensamento. Mas não tenho partido, acho que há pessoas boas e más em todos eles.” E como pai? “Não posso comentar sentenças, mas conheço bem o meu filho e sei que ele é tão íntegro quanto eu.”
No começo de 1968, os irmãos Sader passaram a militar num novo grupo, o Partido Operário Comunista, o POC. Não foi das organizações que defenderam prioritariamente a luta armada, mas antes o chamado trabalho de massas. O codinome de Emir Sader era Oto. Em 9 de agosto de 1970, com confissões obtidas por meio de torturas, dezenas de integrantes do POC passaram a ser perseguidos e presos. “No mesmo dia, o Emir saiu de casa, entrou de vez na clandestinidade e logo conseguiu ir embora do Brasil”, conta Neusa Barbosa, a sua primeira mulher. Sader tomou um ônibus em Santos, com destino a Porto Alegre, de onde seguiu para Montevidéu e dali para o Chile. Um ano depois, ele foi condenado, à revelia e por unanimidade, a dois anos de prisão.
Durante o exílio, Sader morou e trabalhou, como professor e pesquisador, em Santiago (até o golpe de setembro de 1973 que derrubou Salvador Allende), Buenos Aires, Paris, Roma e Havana, onde viveu de 1977 a 1983. Sobre o período cubano, não há nada no currículo de Emir Sader. Ele também não fala quase nada do que fez em Havana “porque o Diogo Mainardi pode se aproveitar disso para me atacar”. O escritor e colunista de Veja é uma figura aparentemente assustadora para ele. Com frequência, na maior parte das vezes para justificar silêncios ou histórias contadas pela metade, Sader invoca o nome de Mainardi. Sobre Cuba, a posição de Sader é de apoio irrestrito ao regime, ao governo e a Fidel Castro. Ele diz que a responsabilidade pela ausência de democracia na ilha é dos Estados Unidos: “Enquanto não terminar o bloqueio norte-americano, não se pode pedir nenhum tipo de ampliação do debate interno”.
No final da tarde, um outro telefonema interrompe a conversa. “Ô, Guido”, cumprimenta o professor. É o ministro da Fazenda, Guido Mantega. As frases de Sader ao telefone são entrecortadas: “Obrigado. Já está com mais de dez mil assinaturas. É um cara de Santa Catarina, ligado ao Bornhausen. Espero que vocês continuem como o núcleo do segundo mandato. Um abraço”.
Em 1976, quando morava em Paris, Sader viveu um drama: o desaparecimento de sua segunda mulher, Maria Regina Marcondes Pinto, em Buenos Aires, na mesma época em que desapareceu o pianista Francisco Tenório Jr., que acompanhava Vinicius de Moraes e Toquinho numa turnê. “O Emir sofreu demais”, diz Neusa Barbosa.
Na volta do exílio, em 1983, Sader retomou a vida de professor universitário e, entre 1985 e 1986, já filiado ao PT, foi assessor da presidência da Febem de São Paulo no governo de Franco Montoro, então no PMDB. Sader casou-se então pela terceira vez, com Vera Sílvia Magalhães, uma das sequestradoras do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. Ele se mudou para o Rio, em 1987, depois de passar no concurso para professor da UERJ. Pouco depois, concluiu o doutorado, na USP, com a tese “A crise hegemônica e sua ideologia – Teorias do Estado brasileiro durante o regime militar”, orientado pelo professor Francisco Weffort. Participou da banca o sociólogo Francisco de Oliveira, então ligado ao PT.
Oliveira rompeu com o PT em 2005, atacando os desvios éticos do partido e a política econômica do governo Lula. Foi processado pelo administrador confesso do caixa dois eleitoral, Delúbio Soares, e, apesar disso, não houve manifestos de intelectuais em sua defesa. Em compensação, Oliveira assinou o de defesa de Sader. “Ele não é, de nenhum modo, um zero à esquerda”, diz Oliveira. “Sua contribuição intelectual é notável, sua luta cotidiana através de vários veículos é insubstituível. Claro está que ninguém está obrigado a concordar com suas posições, mas em geral elas refletem alguns dos pontos do pensamento de esquerda sobre os quais há um enorme consenso.”
Para o historiador Carlos Guilherme Mota, signatário do manifesto, a sentença se soma a outros casos “preocupantes de limitação ao exercício do jornalismo, como o do professor Demétrio Magnoli, que criticou o ministro Tarso Genro e está sendo processado por ele”. Diz Mota: “O que eu estranho é que os petistas só querem falar no caso do Emir”.
Demétrio Magnoli, professor de Geografia, foi processado por Tarso Genro por tê-lo chamado de “ministro da Classificação Racial”. Segundo o professor, ao defender o regime de cotas no sistema educacional, o ministro seria um “herdeiro inesperado do pensamento social racista”, que “está ensinando as crianças a definirem suas identidades segundo o critério da raça”. Demétrio Magnoli não assinou o abaixo-assinado em defesa de Sader “porque xingamento não é pensamento crítico”. Ele considera que o professor deveria ser condenado por injúria, mas sem afrontar a autonomia universitária, como aconteceu – “talvez obrigando Sader a pagar pela publicação da sentença”.
Sader reconhece que escreveu contra Bornhausen com emoção. “Escrevi com a bílis, respondendo a um ataque de guerra, para também desqualificar, sem pensar muito em estilo, o ódio de classe”, explica.
No caso do seu processo, Magnoli diz não ter insultado Genro. “Ele está processando porque quer me intimidar”, afirma. “O ministro deveria usar um advogado particular, e não o Advogado Geral da União, que por definição faz o que o governo quer.” Brincando, Magnoli avisa: “Se eu for condenado, não quero manifesto a meu favor”. Dificilmente ele o terá. Ou melhor, dificilmente terá um manifesto em sua defesa organizado pelos petistas: trotsquista na juventude, Magnoli escreveu durante a campanha eleitoral um artigo classificando Fernando Henrique Cardoso de “estadista” – e o ex-presidente é autor da apresentação de O grande jogo, livro do professor.
Magnoli nota, ainda, que o manifesto em defesa de Sader comporta uma esquisitice. Dependendo da fonte, Bornhausen disse a frase “estaremos livres dessa raça pelos próximos trinta anos”; ou, na transcrição do próprio Emir Sader, “a gente vai se ver livre desta raça por, pelo menos, trinta anos”. Ora, no manifesto, a frase foi transformada em “raça que deve ficar extinta por trinta anos”. A entrada da palavra “extinta”, na opinião de Magnoli, não ocorreu por acaso no texto. Foi colocada para aludir ao sobrenome germânico do senador, conferindo-lhe uma conotação nazista. “São falsificadores de frases”, diz ele, referindo-se aos organizadores do abaixo-assinado.
No sofá, Sader fala de Fernando Henrique Cardoso, que não assinou o manifesto em sua defesa: “Nós nos cruzamos na faculdade e no exílio algumas vezes, uma delas em Cuba, durante um prêmio Casa de Las Américas”. Já Fernando Henrique tem o seguinte a dizer sobre Sader: “Nunca li nada desse rapaz”.
No início da noite, Sader entende que perdi a ordem de seus casamentos e a põe de pé: Neusa, Maria Regina, Vera Sílvia, Luciana, a escritora Ana Miranda e Ivana Jinkings, sócia da editora Boitempo, que abrigou um dos projetos que o professor considera dos mais sérios de sua vida.
É a Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe, um volume de 1.348 páginas, com capa dura e papel cuchê, que custa 190 reais. Ela foi publicada pela Boitempo, em co-edição com o Laboratório de Políticas Públicas, do qual Sader é o coordenador. Os logotipos dos patrocinadores estão na página seis: Petrobras, Eletrobrás e BNDES. Os dos apoiadores também: Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Ministério da Cultura. Sader foi o organizador. Ele convidou 120 colaboradores para escrever os 980 verbetes (complementados por 1.040 fotos em cores e 136 tabelas).
Segundo o professor, o patrocínio da enciclopédia “foi de R$2,052 milhões, pelas leis de incentivo à cultura”. Ele explica que a iniciativa foi inspirada por uma Africana, editada nos Estados Unidos. “Como a América Latina praticamente desapareceu dos jornais, das revistas e das livrarias resolvi que a enciclopédia preencheria esse espaço”, diz. Foram três anos entre a formalização do projeto e a publicação. Ao longo de dois anos, Sader recebeu mensalmente 4 mil reais, pela coordenação. Os autores convidados receberam 1.700 dólares por verbete. A tiragem foi de 10 mil exemplares, 2.500 deles destinados aos patrocinadores e apoiadores. O lançamento ocorreu no Hotel Glória, no Rio, em agosto, durante um congresso da Clacso, a entidade que Sader irá secretariar.
Sader se sustenta com a aposentadoria da USP, o salário da UERJ, os direitos autorais de seus livros, de seus artigos, de iniciativas como a da enciclopédia e de palestras remuneradas, com “análises de conjuntura da América Latina”, conforme explica, para empresas como Eletrobrás e Furnas.
Na manhã seguinte, Sader voltou à UERJ para dar o curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana no Laboratório de Políticas Públicas. Carregava tantos livros que os acomodou numa mala pequena, de rodinhas. Um dos alunos brincou:
– Professor, pelo tamanho da sua bagagem cultural, o senhor já está pronto para fugir.
– “Aqui tem até pijama”, respondeu, brincando, o professor. “Ou vou pra glória ou vou pro xilindró.”
A aula consistiu num ataque ao liberalismo, com referências a Adib Jatene, Hegel, Marx, Hannah Arendt, Bobbio, Condorcet, Darci Ribeiro, Sócrates, Millôr Fernandes, George Orwell, Umberto Eco, Chaplin, Adam Smith, Ricardo, Getúlio Vargas, Manoel Carlos (o da novela), Regina Casé, Jorge Luis Borges, Perry Anderson, Antonio Negri, John Kennedy, George W. Bush e Saddam Hussein.
Depois da aula, Sader disse que mantinha a disposição de não responder diretamente ao artigo da Folha. No dia seguinte, 48 horas depois da publicação de “Zero à esquerda”, o professor publicou, no Carta Maior, o artigo “Guia para ser ex-esquerdista”. Ele começa assim: “Servem [sic] para quem aceitou as famosas ‘propostas irrecusáveis’ e assumiu cargos de chefia em grandes publicações da mídia monopolista ou em alguma grande empresa privada, que exigem silêncio ou declarações adaptadas aos interesses dos ‘patrões’ (esquecendo-se de que não existem ‘propostas irrecusáveis’ mas sim espinhas dorsais excessivamente flexíveis)”. Reclamava também de “certos ‘intelectuais’ das universidades, que ganham em troca [de serem ex-esquerdistas] amplos espaços na grande imprensa”.
Fernando de Barros e Silva voltou à carga cinco dias depois, num novo artigo. Criticava, dessa vez, o manifesto contrário à sentença como “oportunista e hipócrita”. Oportunista porque “quem aprova a execução de dissidentes cubanos [Sader] não pode ser a favor da livre expressão”. E hipócrita porque “o petista mobiliza contra outro intelectual o mesmo instrumento que condena para si”. O jornalista revelou então que Sader era testemunha de acusação, num processo por calúnia e difamação como o de Bornhausen, contra César Benjamin, candidato a vice-presidente da República na chapa do PSOL. A queixosa, no caso, é Ivana Jinkings. Ela foi acusada por Benjamin de ter fraudado uma licitação e superfaturado a publicação do livro Governo Lula: decifrando o enigma, publicado pela editora Boitempo, de Jinkings.
Benjamin e Sader haviam sido colegas num projeto patrocinado pela Fundação Rosa Luxemburgo, da Alemanha. A instituição encaminhou 100 mil euros, cerca de R$340 mil na época, a César Benjamin. Ele destinou R$ 50 mil à Escola Florestan Fernandes, mantida pelo Movimento dos Sem-Terra. O restante foi alojado no Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, dirigido por Emir Sader. Com essa verba se encomendaram os artigos para a feitura do tal livro.
Num email de 2004, Benjamin acusou Ivana Jinkings de fraude e superfaturamento do livro. Jinkings entrou com o processo contra Benjamin. Mas a Justiça arquivou o processo por considerar que a queixa-crime de Jinkings foi feita fora do prazo legal. Tanto Jinkings quanto Sader negam as acusações.
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