CRÉDITO: BAPTISTÃO_2019
O pit bull do papai
Os tormentos e as brigas de Carlos Bolsonaro, o filho mais próximo do presidente
Malu Gaspar | Edição 154, Julho 2019
Na noite de 25 de agosto de 2016, Jair Bolsonaro estava reunido com os filhos Flavio e Eduardo, mais assessores e aliados, num camarim do Oi Casa Grande, teatro onde seria realizado o primeiro debate dos candidatos a prefeito do Rio de Janeiro, pela Rede Bandeirantes. A tensão era geral e o calor acentuava a irritação – o ar-condicionado estava quebrado. Era a primeira vez que um membro da família Bolsonaro disputava um cargo executivo e participava de um debate na tevê. Flavio, o candidato a prefeito, e seu pai vinham se desentendendo havia algum tempo. Jair Bolsonaro não via com bons olhos a candidatura do primogênito, então no quarto mandato de deputado estadual. Temia que um eventual fracasso pudesse prejudicar sua própria campanha à Presidência, dali a dois anos. Fenômeno emergente da política brasileira, Bolsonaro vinha sendo recebido em aeroportos e eventos da direita aos gritos de “mito”. Flavio, porém, insistiu na candidatura. Argumentou que havia espaço para alguém com seu perfil e que sua campanha impulsionaria a do pai, mesmo em caso de derrota. Foi apoiado entusiasticamente pelo Pastor Everaldo, presidente nacional do Partido Social Cristão (PSC), que abrigava todos os políticos da família.
Naquela noite, Bolsonaro andava de um lado para o outro, soltando farpas contra Flavio, que se mantinha quieto. “Vê lá o que você vai fazer! Não era nem para você estar aqui! Não vai fazer merda aí!” Havia outro motivo para a irritação: o fato de alguns empresários terem oferecido doações à campanha. Um dos bordões mais repetidos por ele era que os Bolsonaro não precisavam de dinheiro para se eleger. Tanto Flavio como Pastor Everaldo, porém, defendiam as doações, ressaltando que estavam dentro da lei – naquela época, embora doações de empresas não fossem mais permitidas, os empresários ainda podiam dar dinheiro, como pessoa física, diretamente às campanhas*. Bolsonaro não engoliu a explicação. Achava que o pastor queria se aproveitar do filho para encher as burras do partido, e até gravou, dias depois, um vídeo pedindo que não dessem dinheiro às campanhas do clã.
O debate começou. No bloco com perguntas dos espectadores, na sua vez de responder, Flavio cambaleou e pareceu que ia desmaiar. Foi amparado pelos adversários Carlos Osorio, do PSDB, e Jandira Feghali, do PCdoB. O apresentador rapidamente chamou o intervalo. Enquanto os auxiliares se apressavam em acudir Flavio em um canto do estúdio, Bolsonaro aproximou-se, gritando com Feghali, que é médica e tentava ajudar. “Essa médica de araque, não! Vai dar estricnina para ele!”
Flavio foi levado para um posto da Unimed em Copacabana. Nada de grave foi constatado – e até hoje não se sabe o que causou o mal-estar, se o calor, a tensão, ou ambos. Quando as coisas se acalmaram, os assessores redigiram uma nota dizendo que o candidato do PSC havia tido uma “intoxicação alimentar” e que ele agradecia “publicamente aos concorrentes Jandira Feghali e Carlos Osorio pelos gestos de solidariedade ao socorrê-lo”. O agradecimento a uma rival do Partido Comunista do Brasil, que Bolsonaro julgava ter agido por puro oportunismo, foi a gota d’água. Imediatamente, o pai ordenou que Carlos Bolsonaro – o filho Zero Dois, candidato a vereador na mesma eleição –, excluísse a nota das redes sociais, trocasse as senhas e tomasse o controle das redes do irmão, o Zero Um. Carluxo, como a família costuma chamá-lo, executou a missão com presteza.
A relação entre os irmãos, de temperamentos muito diferentes, é assim desde a infância: Carlos, mais rebelde, sempre teve ciúmes de Flavio, mais conciliador. Quando criança, o filho Zero Dois costumava dizer que o pai protegia o Zero Um, mesmo quando ele fazia besteira. Eduardo, o mais novo dos três filhos do primeiro casamento de Bolsonaro, dava-se bem com os dois, e não se metia em brigas. Naquele ano, porém, a disputa extrapolou para a política. O “sequestro” da senha de Flavio por Carlos deflagrou um conflito familiar que comprometeu todo o planejamento da campanha. A equipe do deputado – em terceiro lugar no monitoramento do Ibope – tinha esperanças de que as redes sociais alavancassem sua candidatura, sobretudo porque havia mais de cem postulantes a vereador na coligação do PSC querendo fazer campanha de rua ou aparecer nas redes sociais ao lado do Zero Um.
Nos dias seguintes, Flavio enviou vários emissários para tentar recuperar a senha com o irmão. Nada feito. O impasse continuou nos dez dias seguintes ao debate, até o início de setembro, quando em uma reunião dos caciques do PSC na sede do partido, no Centro do Rio, Pastor Everaldo cobrou uma solução de Carlos Bolsonaro. “O PSC tem regras, ninguém é dono de senha, isso não pode ficar assim”, disse Everaldo. Carlos resistia, dizendo que tinha de mantê-la, porque sua equipe era boa no manejo das redes sociais. O pastor desistiu de argumentar e ordenou: “Carlos, entregue a senha! Assim não dá para fazer campanha!” O filho Zero Dois, então, escreveu a palavra-chave num pedaço de papel e entregou a um membro da equipe de Flavio. Alguns auxiliares nunca esqueceram o código: era composto pela palavra USTRA, seguida de números – uma referência ao famigerado coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi, um dos centros de tortura da ditadura.
Encerrada a eleição de 2016, Flavio Bolsonaro ficou em quarto lugar, com 424 307 votos (ou 14%) – bem mais do que haviam previsto o Datafolha e o Ibope. Perdeu para Marcelo Crivella (PRB), o primeiro colocado, Marcelo Freixo (PSOL) e Pedro Paulo (então no PMDB). Mas conseguiu ultrapassar Indio da Costa (PSD), Carlos Osorio (PSDB), Jandira Feghali (PCdoB) e Alessandro Molon (então na Rede).
Carlos Bolsonaro, por sua vez, foi consagrado vereador campeão das urnas cariocas naquele ano, com 106 657 votos – 82 978 a mais do que na eleição anterior. Foi a quinta vez que se reelegeu para o Legislativo do Rio de Janeiro, desde que concorrera pela primeira vez, aos 17 anos.
Carlos Nantes Bolsonaro tem 36 anos e passou metade da vida na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. É o segundo filho de Jair Bolsonaro e Rogeria Nantes Braga Bolsonaro, que se conheceram no final da década de 70, quando o presidente ainda era cadete na Academia Militar das Agulhas Negras. A entrada de Carlos na política se deu numa época tumultuada para a família. Os pais estavam separados fazia três anos. Bolsonaro, no terceiro mandato como deputado federal, havia engatado um relacionamento com a assessora parlamentar de outro deputado, Ana Cristina Valle, com quem tivera um filho, Jair Renan Valle Bolsonaro – o pai o chama de Zero Quatro.
Rogeria também se envolvera com a política. Cumpria seu segundo mandato como vereadora e, em 2000, quis concorrer mais uma vez. Bolsonaro não gostou da ideia e decidiu lançar a candidatura de um dos filhos contra a dela. Pensou primeiro em Flavio, então com 19 anos, mas ele se recusou. Flavio e Eduardo tinham ido morar com a mãe quando os pais se separaram. Carlos, que havia ficado com o pai, aceitou a missão. Como tinha apenas 17 anos, foi feita uma consulta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Caso o eleito tivesse 18 anos no dia da diplomação, poderia tomar posse. Como o Zero Dois faz aniversário no dia 7 de dezembro e a posse ocorreria em 1º de janeiro de 2001, foram em frente com a candidatura contra a mãe.
A campanha registrou o mesmo padrão de brigas e acusações do processo de separação – tudo relatado em detalhes nos jornais da época. Bolsonaro reclamou ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) que a ex-mulher, para confundir o eleitor, destacava mais o sobrenome dele que o prenome dela nos panfletos e tinha escolhido um número parecido com o de Carlos Bolsonaro (o dela, 15 620; o dele, 11 620). Rogeria também fez suas queixas, inclusive a de que Bolsonaro só colocava nos santinhos o sobrenome, e não o prenome do filho, para que o eleitor pensasse estar votando no pai.
Bolsonaro e Carlos saíram vencedores. O filho teve 16 053 votos. Sua mãe, apenas 5 109. A derrota a deixou deprimida e gerou uma crise que só foi resolvida tempos depois. Carlos relembrou o episódio numa entrevista à jornalista Leda Nagle, em março deste ano. “Tivemos um pequeno problema familiar, sim, confesso para a senhora, porque não é simples ela ser uma dona de casa, e ela obteve depois dois mandatos como vereadora. E, num processo de separação do meu pai, meu pai teria que continuar com seu apoio político no Rio. Ela não entendeu na época que ele necessitava disso, achava que teria condições de manter o seu mandato. Ela concorreu comigo, mas passado aquele período eleitoral, eu falei: vem cá”, disse ele à jornalista, dando em seguida uma risada estrepitosa muito parecida com a do pai. Logo após, completou, emocionado: “Minha mãe é quase tudo para mim. Minha joia rara que vou carregar para o resto da minha vida.” Rogeria – hoje com 59 anos – se reconciliou com o ex-marido e nunca quis comentar o caso, nem mesmo ao ser procurada pela piauí.
Na época, Bolsonaro foi franco ao explicar a vitória de Carlos para O Estado de S. Paulo: “Transferência de votos. Além dos colegas de classe, quem mais votaria nele?” E deixou claro ao Jornal do Brasil que seria ele quem daria as ordens no mandato do vereador: “O gabinete dele será um apêndice do meu em Brasília.” Contou que proibiu o filho de tomar decisões sozinho: “Não quero que ele discuta nada particularmente com nenhum vereador.” Também proibiu entrevistas: “Podem querer abusar da inocência dele.” E assim foi. Na posse, Carlos ficou o tempo todo de mãos dadas com o pai. No primeiro discurso na Câmara, disse, ao microfone: “Falo não em nome do Partido Progressista (a sigla à qual era filiado), mas em nome do Partido do Papai Bolsonaro.”
Papai Bolsonaro colocou a nova mulher, Ana Cristina Valle, que morava em Brasília e com quem Carlos não se dava bem, como chefe de gabinete do filho. Nas palavras de um aliado antigo, ela “dava ordens de Brasília e, quando aparecia no gabinete uma vez por semana, queria mandar em tudo”. A mulher de Bolsonaro manteve o posto por sete anos, até a separação do casal. Carlos era um vereador assíduo e apresentou onze projetos de lei nos primeiros quatro anos de Câmara. Era também cortês com os colegas, embora muito reservado e avesso aos microfones – um tipo casmurro. Antes do fim do primeiro mandato, em 2003, tatuou no antebraço a imagem do pai.
A vida de vereador, porém, não o agradava, e Carlos foi ficando cada vez mais desgostoso. No segundo mandato, quando por vezes se reunia com um grupo de vereadores e assessores em algum bar da Zona Sul do Rio, costumava expressar sua insatisfação: “Eu não gosto de política, não queria estar aqui.” Os colegas faziam a pergunta óbvia: Por que, então, continuava? “Só continuo porque meu pai quer”, ele respondia.
Naquela época, Carlos pensou seriamente em abandonar a política. Apreciador de esportes radicais, queria fazer o que não tinha feito quando adolescente: voar. Era aluno de ciências aeronáuticas na Universidade Estácio de Sá – curso que, segundo a ementa do vestibular, forma pilotos ou gestores de empresas de aviação e aeroportos – e planejava seguir na profissão. Por causa do dilema, chegou a ter crises de ansiedade. Formou-se em 2005, mas já havia então se acomodado na vereança. O pai venceu a batalha.
Em 2008, Carlos reelegeu-se para o terceiro mandato, com 28 209 votos. Na eleição seguinte, em 2012, teve um resultado um pouco mais tímido: 23 679 votos. Bateu seu recorde em 2016. Nos dezoito anos e meio de Câmara Municipal, aprovou dezessete leis. A mais lembrada por ele mesmo, nos sites e blogs da família Bolsonaro, foi a que, em 2004, proibiu a afixação de material de publicidade nas ruas, em postes, viadutos, pontes, monumentos públicos, árvores e praças. Outra lei que ele cita muito, de 2011, é a que determina que os servidores da saúde do município orientem as gestantes a buscar o serviço nacional de armazenamento do cordão umbilical.
Como orador, nunca foi dos mais pródigos. No site da Casa constam apenas sete discursos, e é possível encontrar alguns outros na internet. Somam, ao todo, pouco mais de meia hora de microfone, desde o primeiro mandato. Nesses momentos, falou contra políticas LGBT, contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e contra a concessão da cidadania fluminense a Jean Wyllys, ex-deputado do PSOL, a quem se referiu como o “ex-BBB arrogante e cínico”. Carlos defendeu Bolsonaro quando ele foi multado pelo Ibama por pescar em áreas interditadas da baía de Ilha Grande, em Angra dos Reis, e também quando foi acusado de agressão contra a deputada petista Maria do Rosário. (Por ter dito que ela não merecia ser estuprada, o presidente foi condenado pela juíza Tatiana Medina, da 18ª Vara Cível de Brasília, a pagar 10 mil reais de indenização à deputada e a divulgar um pedido público de desculpas.)
Em sua página na Câmara, Carlos afirma que os principais problemas do Rio são a miséria e a violência, e advoga soluções: para a primeira, controle da natalidade; para a segunda, redução da maioridade penal e valorização dos servidores da área de segurança. Seu salário de vereador é de 14 mil reais líquidos, ele tem vinte funcionários à sua disposição no gabinete e é vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Câmara.
Em 2017, os Bolsonaro se reuniram para decidir a estratégia eleitoral da família. Ninguém discutia o fato de que Eduardo, o Zero Três, seria candidato à reeleição para a Câmara dos Deputados por São Paulo. O problema começou quando a discussão se voltou para o futuro de Zero Um e Zero Dois, cujas bases eleitorais ficavam no Rio.
Carlos achava que chegara o momento de ele tentar voos mais altos, e comunicou ao pai que gostaria de se candidatar a senador. Flavio, porém, já vinha pensando nisso desde 2016, depois da campanha para prefeito do Rio. Criou-se um impasse. Em defesa de sua candidatura, Carlos argumentou que, se não ganhasse a eleição, poderia voltar à Câmara Municipal, ao passo que Flavio, cujo mandato de deputado estadual estava se encerrando, ficaria sem cargo nenhum, prejudicando o poderio do clã. Disse que o caminho ideal para o Zero Um seria tentar uma vaga para deputado federal – com eleição certa. O irmão não aceitou a proposta. Carlos é que deveria tentar a vaga na Câmara dos Deputados, sugeriu Flavio, que se julgava com cacife político e com o direito de tentar o Senado, depois da expressiva votação que tivera na campanha para a prefeitura.
Coube ao pai arbitrar a disputa. Bolsonaro chegou a considerar a hipótese de lançar os dois filhos para o Senado, mas concluiu que seria um passo demasiadamente arriscado. Acabou aprovando a candidatura de Flavio. A família então mudou de partido, indo primeiro para o Patriota e, depois, para o PSL – menos Carlos, que permaneceu no PSC. As leis eleitorais não previam, naquele pleito, janela de transferência de partidos para vereadores, e ele poderia perder o mandato. Depois da disputa, Carlos cogitou, durante algum tempo, ser candidato a deputado federal pelo PSC, mas acabou desistindo. Pesou, na decisão, o fato de que, se tivesse uma boa votação, acabaria engordando a bancada do Pastor Everaldo.
Os arranjos do pai não ajudaram a pacificar a relação sempre tensa entre Carlos e Flavio. Os dois só se encontravam em compromissos políticos e se estranhavam até mesmo na frente de aliados. Foi o que ocorreu antes de uma visita que Bolsonaro fez à Arquidiocese do Rio de Janeiro, entre o primeiro e o segundo turno de 2018. Carlos aguardava na casa do pai a hora de saírem juntos, quando o Zero Um chegou para se juntar à comitiva. Carlos virou-se para o pai: “Esse vagabundo também vai?” Flavio encrespou: “Que vagabundo o quê?!” O bate-boca estava perto de se transformar em briga, quando auxiliares apaziguaram os irmãos. Carlos ameaçou: “Se ele vai, eu não vou.” E assim foi: Flavio entrou no carro com o pai. Carlos ficou em casa.
O clima entre os irmãos ficou ainda mais tenso no final de 2018, quando veio à tona o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, mostrando que o assessor de Flavio, Fabrício Queiroz, era um dos 75 servidores e ex-servidores da Assembleia Legislativa do Rio suspeitos de entregar uma parte do salário a 20 parlamentares de diversos partidos, incluindo MDB, PT e PDT. Na folha de pagamento da instituição havia também familiares de Queiroz, como a filha – pessoas que, aparentemente, não trabalhavam ali. Flavio já se elegera senador, mas Carlos temia os danos que o caso poderia causar à reputação do pai. Em maio deste ano, soube-se que o Tribunal de Justiça do Rio tinha autorizado a quebra de sigilo de Flavio e de outros 85 funcionários e ex-funcionários dos gabinetes do clã Bolsonaro – incluindo o de Carlos.
O gabinete do filho Zero Dois passou a ser foco de atenção há alguns meses, quando começaram a pipocar notícias de que também abrigou funcionários fantasmas. É o caso de Nadir Barbosa Goes, de 70 anos, que recebia 4 271 reais mensais da instituição e afirmou à Folha de S.Paulo nunca ter trabalhado para o vereador. Tempos depois, uma reportagem da revista Época contabilizou dezoito parentes da segunda mulher de Bolsonaro que tiveram cargos em gabinetes da família. E localizou em Juiz de Fora, Minas Gerais, uma cunhada de Ana Cristina Valle, Marta Valle, que foi registrada como funcionária de Carlos entre o final de 2001 e o início de 2008, mas garantiu nunca ter trabalhado no gabinete. “Minha família lá que trabalhou, mas eu não”, disse ela. O vereador também empregou dois membros da família de Fabrício Queiroz.
Flavio não quis falar sobre o Zero Dois. Apesar de todas as semelhanças entre eles, Carlos se comporta como se fossem feitos de materiais diferentes. “Meu irmão é um politicão”, diz.
A descoberta das redes sociais renovou o ânimo de Carlos com a política. Incomodado com a profusão de menções negativas ao pai na internet, ele decidiu criar o blog Família Bolsonaro, hoje inativo. A primeira publicação foi feita em 15 de setembro do longínquo ano de 2010. Trazia uma foto dos irmãos Zero Um, Zero Dois e Zero Três, ainda crianças, brincando no mar de Araruama. O padrão se repetiu durante anos. A maior parte das fotos antigas da família Bolsonaro que circulam na internet foi extraída do blog.
A conta de Carlos no Twitter foi inaugurada ainda antes, em 2009. Assíduo na rede desde então, ele no início apontava suas baterias sobretudo contra o PT e o PSOL. Hoje, a mídia é o alvo de grande parte dos posts – especialmente os mais virulentos. Carlos é o membro da família com mais aversão à imprensa tradicional, que ele qualifica de “canalha”, “suja” ou “podre”. Para ele, a maioria dos jornalistas é de esquerda e passou a fustigar Bolsonaro mais agressivamente à medida que a campanha à Presidência deslanchava. Fiz vários pedidos de entrevista com Carlos Bolsonaro à assessoria do vereador, todos negados. Numa das vezes em que fui à Câmara tentar falar pessoalmente com um dos assessores, não me autorizaram a entrar no gabinete e ainda me disseram que não deveria mais ir até lá sem avisar.
Uma das afirmações preferidas de Carlos é: “Cada dia que passa, eu vejo menos televisão. Cada dia que passa, leio menos jornal. E eu acredito que, a cada dia que passa, eu estou sendo mais bem informado.” Desde a eleição do pai, ele deu apenas duas entrevistas – a canais do YouTube. Na primeira, quando a jornalista Leda Nagle perguntou se ele não gostava da imprensa, Carlos respondeu: “Confesso que estou aqui para bater um papo com a senhora como uma pessoa que considero uma pessoa boa, pessoa bacana, que me traz uma paz e uma energia muito boa. Porque, se dependesse de mim conversar com uma simples jornalista, eu não estaria aqui.”
O canal preferencial de comunicação de Carlos são as redes sociais, onde tem, no conjunto, cerca de 3,83 milhões de seguidores: 1,8 milhão no Instagram, 1,23 milhão no Twitter e 800 mil no Facebook. Por volta de 2014, ele descobriu no Facebook uma página chamada Bolsonaro Zuero 3.0, feita pelo estudante cearense José Matheus Sales Gomes, com postagens e vídeos de humor com a imagem do ex-capitão. O criador da página, então com 22 anos, também foi o primeiro a chamar Bolsonaro de “mito” e aplicar em memes com a imagem dele os famosos óculos escuros ao som da música Turn Down for What, símbolos de “mitagem”. Como as postagens faziam sucesso, Carlos e Sales Gomes começaram a organizar bate-papos transmitidos pelo YouTube, os hangouts, em que Bolsonaro conversava com o estudante e um parceiro de canal.
Graças ao Zuero, Sales Gomes passou a frequentar as rodas de jovens de direita, como a da casa de Danilo Gentili, em São Paulo, e chegou a ser convidado pelo humorista para colaborar no programa dele, no SBT. Preferiu, entretanto, trabalhar como assessor de Carlos em tempo integral e, em 2014, foi contratado para administrar as redes sociais dos Bolsonaro. Nessa época, segundo Carlos, a página de seu pai no Facebook tinha 500 mil seguidores. Em 2017, juntou-se à dupla o paraibano Tercio Arnaud, criador da página Bolsonaro Opressor. Também ele virou funcionário do vereador na Câmara, embora, na prática, trabalhasse, durante a campanha presidencial, como assessor de imprensa de Bolsonaro.
Nos hangouts, nos posts e nos textos, os Bolsonaro vez por outra citavam uma referência comum: Olavo de Carvalho. O guru da nova direita, ex-astrólogo, ganhou projeção a partir dos anos 90, quando, pouco a pouco, começou a frequentar os grandes jornais. Rompeu com a imprensa tradicional em meados dos anos 2000, quando se mudou para os Estados Unidos, onde ministra um curso bastante heterodoxo de filosofia pela internet. O primeiro a ter contato pessoal com o guru foi Flavio Bolsonaro, que em 2012 viajou até a cidade americana de Richmond para lhe entregar uma Medalha Tiradentes, a condecoração mais importante da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Jair Bolsonaro só passou a citar Carvalho a partir de 2014, quando o guru começou a ser lembrado em manifestações de rua da direita no Brasil. Mas reconheceu não ter lido nenhum livro dele, num dos hangouts com os criadores do Bolsonaro Zuero. Disse que estava começando a ler O Mínimo que Você Precisa Saber Para Não Ser um Idiota, mas achava que não tinha o que aprender ali. “Tudo o que está aqui eu já conheço”, afirmou.
Recentemente, Carlos também reconheceu não ter lido nenhum livro de Carvalho. Tampouco acompanhou qualquer curso do guru. “O que eu aprendo sobre ele são de pessoas, os alunos dele. Eu aprendo muito com o que os alunos dele me contam. Eu não vejo muitos vídeos dele. Mas as experiências que os alunos dele me contam, eu acho muito legal. Eu tenho ele como uma pessoa muito bacana para influenciar o que tem dentro da minha cabeça”, disse Zero Dois.
Um desses alunos de Carvalho com quem Carlos diz aprender é Filipe Martins, assessor internacional da Presidência da República. Martins e Eduardo Bolsonaro aproximaram Carlos e Carvalho, e estes passaram a conversar com frequência, via internet. Com o tempo, o guru e o Zero Dois desenvolveram uma atuação coordenada no Twitter, elogiando-se mutuamente e atacando as mesmas pessoas.
Na manhã de 21 de novembro do ano passado, era grande a agitação nos corredores do Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB, onde estavam sediados os gabinetes de transição de governo em Brasília. O presidente e os ministros já escolhidos tinham acabado de realizar uma reunião de planejamento, em que discutiram a estrutura e as metas da futura gestão. Os corredores do CCBB estavam cheios de gente, indo e vindo. No meio da confusão, chamava a atenção dos mais observadores a conversa ao pé de ouvido entre o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o advogado Gustavo Bebianno, ex-presidente do PSL e coordenador da campanha de Bolsonaro.
Bebianno aguardava havia dias a sua nomeação para a Secretaria-Geral da Presidência, combinada com Bolsonaro logo depois de divulgado o resultado da eleição. Mas nada acontecia. Onze ministros já tinham sido anunciados por Bolsonaro, sempre pelo Twitter. A imprensa logo percebeu a hesitação do presidente. Aqui e ali pipocavam notas sugerindo que Bebianno vinha sendo fritado. Ele questionou Bolsonaro. “Eu nunca pedi nada, o senhor não tem nenhum compromisso comigo, mas não me faça passar vergonha”, disse – conforme contou a pessoas próximas. Bolsonaro se desculpou: “Você tem razão, vou resolver isso logo.” Nove outros ministros seriam nomeados nos dias seguintes, mas entre eles não estava Bebianno.
O advogado atribuía o impasse ao boicote promovido por Carlos. Não tinha esquecido de um episódio ocorrido em abril de 2018, logo que o filho Zero Dois do presidente desistira de disputar a eleição para deputado federal. Assim que ele comunicou ao pai e a Flavio que não seria candidato, a colunista Berenice Seara, do jornal Extra, publicou que Carlos saíra da corrida e que Bebianno se lançaria para deputado federal, funcionando como puxador de votos do PSL no Rio de Janeiro. Ao ler a notícia, Carlos ligou para o pai e, aos gritos, acusou Flavio de ter passado a informação à jornalista a fim de humilhá-lo. Dias depois, quando Bolsonaro evitou gravar um vídeo de apoio a Bebianno, o advogado sentiu que o patriarca do clã não queria sua candidatura e tirou o time de campo.
Naquela manhã de novembro no CCBB, durante a reunião dos ministros, Bolsonaro cochichou no ouvido de Lorenzoni que ele estava autorizado a anunciar a nomeação de Bebianno aos repórteres que faziam plantão diariamente no térreo do prédio. Lorenzoni perguntou se o presidente não iria junto fazer o anúncio. “Não, vai você”, respondeu Bolsonaro. Foi o que o ministro fez. Eram onze e meia da manhã quando ele pegou Bebianno pelo braço, desceu pelo elevador privativo e o apresentou à imprensa como o novo ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. “Um homem que está extremamente preparado e é da absoluta confiança do presidente da República para administrar essa importante pasta.”
No fundo, a demora na nomeação tinha a ver não propriamente com a pasta, mas com um órgão subordinado a ela: a Secretaria Especial de Comunicação da Presidência da República (Secom). Todos sabiam que essa era uma área de influência de Carlos, e que ele e Bebianno vinham se desentendendo desde a campanha. Daí a pergunta dos repórteres: a Secretaria de Comunicação continuaria subordinada à Secretaria-Geral, como no governo Temer? Bebianno disse que sim. E quem seria o responsável pela comunicação do governo? “Alguns nomes estão sendo estudados”, respondeu o recém-nomeado. “O filho do presidente, Carlos Bolsonaro, é uma pessoa que sempre esteve à frente dessa comunicação, desenvolveu um trabalho brilhante. Talvez sem ele a campanha não tivesse se desenvolvido tão bem, aliás é um trabalho que se desenvolve já há muitos anos, até bastante antes da pré-campanha. Então isso será discutido com ele, com o presidente, esse nome será encontrado.”
Assim que a entrevista terminou, Bebianno e Lorenzoni foram para o gabinete de Bolsonaro, que tinha outros compromissos e não os recebeu. Precisava resolver um problema mais urgente. Carlos tinha avisado o pai: se o desafeto fosse nomeado, ele iria embora e não pisaria mais em Brasília. Esse tipo de ameaça abalava Bolsonaro. Nos três meses em que trabalhei nesta reportagem, escutei de cinco fontes diferentes – aliados e ex-aliados – que, toda vez que Carlos ameaça ir embora ou retaliar o pai, Bolsonaro teme que ele cometa um gesto extremo. Familiares e amigos próximos compartilham da mesma preocupação, e por isso evitam entrar em choque com o vereador.
No mesmo dia, no final da tarde, Bolsonaro tentou fazer um agrado ao filho. Em uma entrevista ao jornalista Claudio Dantas, do site O Antagonista, deixou claro que pretendia entregar a Secom a Carlos, com status de ministério: “Sei que pode haver um tremendo de um desgaste o cara botar o filho, não sei o quê… Pô, bicho, o cara aí… é uma fera das redes sociais e tem sangue na boca, vamos assim dizer. Então, tem tudo para dar certo. Agora, está sendo estudado ainda.” Quando o jornalista perguntou se o filho estava animado com a proposta, Bolsonaro respondeu: “O Carlos está na dúvida. Está medindo prós e contras. O Carlos também é o meu pit bull. É importante ele estar do meu lado. Muitas vezes só ele do lado, ali, ele já ajuda bastante.”
Carlos não disse nada sobre a entrevista do pai. Postou apenas uma notícia com as declarações de Bebianno e fez o seguinte comentário: “Nada disso será tratado comigo! Boa tarde a todos!” Sua nomeação para o ministério já havia sido, então, desaconselhada por auxiliares mais próximos de Bolsonaro, preocupados com a lei que proíbe o nepotismo na administração pública. Mesmo havendo uma súmula do Supremo Tribunal Federal que abre exceção para agentes políticos, incluindo ministros, o desgaste seria evidente. No dia seguinte, bem cedo, Carlos cumpriu a ameaça feita ao pai: “O meu ciclo de tentar ajudar diretamente chegou ao fim. São dezoito anos de vida pública dedicados ao que acredito. Estes últimos três meses de licença não remunerada para acompanhar o que sempre acreditei se encerram. Semana que vem volto às atividades na Câmara de Vereadores do Rio. Complemento aos amigos que desde ontem não tenho mais, por iniciativa própria, qualquer ascensão às redes sociais de Jair Bolsonaro.”
Para ocupar a Secretaria de Comunicação Social, Bebianno havia sondado dois jornalistas: Augusto Nunes, colunista da Veja e comentarista da Jovem Pan, e Claudio Dantas, editor-
executivo do Antagonista. Nenhum deles aceitou o desafio. A escolha final, de fato, coube a Carlos, e recaiu sobre Floriano Barbosa Amorim, publicitário que trabalhava no gabinete de Eduardo Bolsonaro. Em consequência, o presidente tirou a Secom da alçada da Secretaria-Geral e a colocou sob comando da Secretaria de Governo, chefiada pelo general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Junto com Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Cruz era o militar do Planalto que há mais tempo conhecia o presidente. Eles tinham sido vizinhos na Vila Militar, no Rio, e Carlos elogiava publicamente o general sempre que tinha chance.
Uma vez empossado, Bebianno tentou resolver pessoalmente as diferenças com Carlos. Segundo relato que fez aos principais aliados, na época, ele chamou o filho do presidente para uma conversa privada, depois de uma reunião. Fecharam-se numa sala do Planalto, e Bebianno disse a Carlos que os desgastes entre eles eram desnecessários. Pediu que o Zero Dois falasse sem delongas sobre o que o incomodava – e resolveriam o assunto ali mesmo, em particular, sem expor publicamente suas disputas. Carlos apenas balbuciou algo como: “Não ligue para isso, eu sou assim mesmo, cheio de altos e baixos.” Deu um tapinha nas costas de Bebianno e saiu. O pit bull só se revelava mesmo nas redes sociais. Ali, estava sempre em guerra – com a mídia, os inimigos do PSOL e do PT, mas também com os ex-aliados aos quais queria passar recados.
Apesar do barulho em torno de sua volta ao Rio, Zero Dois continuou próximo do pai. No dia da posse, decidiu no último momento que acompanharia Bolsonaro e a mulher, Michelle, no tradicional percurso do Rolls-Royce presidencial pela Esplanada dos Ministérios. O próprio Carlos explicou o episódio a um youtuber amigo, Daniel Lopez (foi a segunda das entrevistas que concedeu): “Cinco minutos antes de ele embarcar, eu falei com ele: ‘Vou contigo.’ E ele: ‘Tudo bem, vamos comigo.’ E o cerimonial falou: ‘Não tá no cerimonial’”, contou e fez em seguida, na entrevista, um muxoxo de quem não está nem aí. “Não vou te falar as palavras que eu utilizei no momento, mas…”, disse, engatando sua típica gargalhada. Só não revelou na entrevista que, por baixo do terno, levava um revólver.
A imagem do primeiro-filho sentado no banco de trás do Rolls-Royce presidencial marcou a posse. “Foi algo simbólico, mas também que eu quis fazer, então faria de novo”, disse Carlos na entrevista ao youtuber. “Desci do carro, fui para o meu cantinho. Não quero aparecer, não quero holofote. Graças a Deus, eu tenho abertura para conversar com ele, às vezes de maneira ríspida, às vezes de maneira amável… A partir do momento que ele determina que eu cale a minha boca, eu calo minha boca, e a partir do momento que ele permite que eu fale, eu falo. Ele é meu pai, e essa liberdade que a gente tem nem todo mundo tem um com o outro. Mas eu não tenho essa capacidade de manipulação que muito idiota tenta colocar.”
A verdade é que quem bate de frente com Carlos dificilmente fica no posto. No final de fevereiro, ele e Bebianno voltaram a se chocar – pela última vez. Era notícia, então, a descoberta da Folha de S.Paulo de que o PSL tinha dado 400 mil reais a uma candidata laranja em Pernambuco. Como Bebianno era presidente nacional da legenda durante as eleições, proliferaram as especulações sobre o risco de demissão. Bolsonaro estava no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para tirar a bolsa de colostomia, mas trocou com ele áudios via WhatsApp. Uma repórter do jornal O Globo questionou Bebianno sobre o caso, e ele disse que estava tranquilo. “Não existe crise nenhuma, só hoje falei três vezes com o presidente.”
A declaração provocou uma reação indignada de Carlos, que foi ao Twitter desopilar: “Ontem estive 24 horas do dia ao lado do meu pai e afirmo: É uma mentira absoluta de Gustavo Bebianno que ontem teria falado três vezes com Jair Bolsonaro para tratar do assunto citado pelo Globo.” Para provar, Carlos divulgou um áudio em que o presidente dizia a Bebianno estar “complicado de falar” e recusava-se a atendê-lo. Pouco depois, novo post do pit bull. “Não há roupa-suja a ser lavada! Apenas a verdade: Bolsonaro não tratou com Bebianno o assunto exposto pelo Globo como disse que tratou.” As mensagens foram retuitadas na conta do presidente, o que engrossou a crise. À noite, numa entrevista à TV Record, Bolsonaro disse que Bebianno poderia “voltar às origens” caso estivesse envolvido em irregularidades.
Nos bastidores, os generais e os aliados de Bebianno no palácio entraram em cena para tentar segurá-lo, e argumentaram que uma demissão, naqueles termos e naquela situação de constrangimento público, poderia gerar problemas com o Congresso, já que o ministro era o responsável pela articulação política. Bolsonaro chegou a concordar, e os bombeiros saíram anunciando aos jornalistas que Bebianno ficaria. No íntimo, porém, o presidente não estava tão certo disso. Em paralelo, eles vinham trocando duras mensagens via WhatsApp em que Bolsonaro defendia Carlos e atacava Bebianno. O presidente não considerava que os áudios trocados pelo celular podiam ser chamados de conversa. “Você não falou comigo nenhuma vez no dia de ontem. Ele esteve comigo 24 horas por dia. Então não está mentindo nada, nem está perseguindo ninguém.” Bebianno retrucou: “Ele não pode atacar um ministro dessa forma, nem a mim nem a ninguém, capitão. Isso tá errado. Por que esse ódio? Qual a relevância disso? Vir a público me chamar de mentiroso? Será que o senhor vai permitir que eu seja agredido desta forma? Isso não está certo, não, capitão. Desculpe.”
Os áudios todos só viriam à tona depois da queda de Bebianno. Ele mesmo os entregou à revista Veja, para provar que havia, sim, falado com Bolsonaro. Percebe-se que, à medida que as mensagens se sucediam, o presidente ficava cada vez mais irritado. Chegou a ponto de dizer que não falaria mais com Bebianno, deixando evidente que a situação era irremediável. Em meio às negociações para a saída, Bolsonaro aceitou gravar um vídeo – enviado para os veículos de comunicação, mas não para as redes pessoais do presidente comandadas pelo filho Zero Dois – em que elogiava Bebianno e reconhecia sua dedicação. Ainda assim, o ministro saiu magoado. A primeira coisa que fez foi dar uma entrevista a um grupo de jornalistas liderados por Augusto Nunes na rádio Jovem Pan, responsabilizando Carlos pela queda. “Minha indignação é a de ter servido como um soldado disposto a matar e morrer, e no fim ser crucificado e tachado de mentiroso porque o Carlos Bolsonaro fez uma macumba psicológica na cabeça do pai.”
Jair Bolsonaro nunca negou ter uma relação especial com o segundo filho. No aniversário de Carlos, em dezembro, entre a eleição e a posse, o presidente declarou-se publicamente no Facebook: “Confesso que se não fosse seu intuito em tomar iniciativas e se antecipar a problemas talvez não tivéssemos chegado tão longe. Muito mais acertos que erros, Carlos sempre foi e é decisivo em nossas conversas. Eu, por ser mais velho, tenho mais experiência, paciência e absorvo cada conselho e irritação, mas sempre tudo muito bem escutado colocando na balança suas palavras e procurando crescer. Quem dera todo pai tivesse um filho como esse. Se enganam os que creem que irão nos separar. Nossos laços vão muito além de algo comum.” A foto que ilustrava a mensagem mostrava Carlos amparando o pai no corredor do Hospital Albert Einstein.
A facada e os dias no hospital deixaram marcas tanto em Bolsonaro como no filho. Sempre que lembra do episódio, Carlos se emociona. “Eu vi meu pai indo embora duas vezes. Eu vi meu pai duas vezes girando os olhos dele. E ainda tem canalha que olha para a gente e diz que a facada foi fake! Você entende a minha raiva? Você entende? Você entende o contexto do que a gente vive?”, desabafou, chorando, a Leda Nagle.
Para Carlos, o agressor de Bolsonaro, Adélio Bispo dos Santos, pode ter pensado em atacá-lo também. Dois meses antes da facada, Bispo foi ao Clube e Escola de Tiro .38, na região metropolitana de Florianópolis, onde Carlos e os irmãos costumam praticar – e ficou lá por uma hora, treinando. No mesmo dia, o Zero Dois estava na cidade e havia programado ir ao clube de tiro, mas, como ele mesmo contou, desistiu na última hora. “Aloprei com um amigo meu e disse: Não vou para aí. Estou indo para o hotel e dane-se.”
Carlos e Bispo voltaram a estar próximos um do outro exatamente no dia da facada, como revela um vídeo que circulou na internet. As imagens mostram o agressor rondando o furgão preto da Polícia Federal que transportava o candidato. Bolsonaro está em cima do carro, de pé, acenando para a multidão. Carlos aparece filmando o pai, que está de costas. É possível ver Bispo surgir no canto esquerdo da tela, contornar o carro – enquanto o Zero Dois entra no veículo –, dar mais alguns passos e fazer meia-volta quando Bolsonaro desce para se misturar à multidão. A impressão que se tem é que Bispo está estudando uma forma de se aproximar do presidenciável. Mas Carlos interpretou as imagens de outra maneira. “Teve um determinado momento que eu saio do carro e ele vem na minha direção. E eu por acaso volto pro carro e quando eu entro no carro novamente ele recua, porque viu que não conseguia chegar até mim”, declarou. Ao contar a história novamente, concluiu: “Não digo que a facada era em mim, mas, sem dúvida nenhuma, ia rasgar o coração do meu pai.”
Bolsonaro enfrentou duas internações – uma mais longa, de 24 dias, e outra de dezoito dias, para a retirada da bolsa de colostomia. Nas duas vezes, Carlos ficou todo o tempo ao lado dele. Controlava quem entrava no quarto e quem saía, estabelecia o que podia ser dito ao pai e continuou manejando as redes sociais do presidente, junto “com meus moleques”, como ele mesmo contou.
Durante a campanha, a casa do Zero Dois muitas vezes foi usada como cenário para as transmissões ao vivo e para as fotos postadas nas redes dos políticos da família. Ele mora no mesmo condomínio do pai, na Barra da Tijuca, no Rio. É solteiro e até o início deste ano dizia namorar Paula Bramont, funcionária da Prefeitura de Florianópolis, cidade que é o seu destino preferido em muitos feriados e onde gosta de frequentar o clube de tiro. No Rio, ocupa o tempo livre em churrascos com os amigos – que não são muitos. Também gosta de pesca e automobilismo. No início do governo, Carlos ia muito a Brasília, de onde postava várias fotos em reuniões com ministros e assessores do pai. Quando o assunto virou pauta dos jornais, começou a diminuir a frequência das postagens e também as idas ao Planalto.
Apesar do envolvimento permanente com a política e com quase todos os assuntos que dizem respeito ao governo do pai, nas entrevistas que dá, Carlos gosta de ressaltar que sofre por ser filho do presidente da República – é “doloroso”, costuma dizer. “Desde que eu soube que ele foi eleito presidente, eu não tive mais paz na minha vida, mas [eu]comigo mesmo”, disse ao youtuber Daniel Lopez. A Leda Nagle, foi mais longe: “Eu tenho um sonho de um dia ir pro meu cantinho, tomar conta da minha vida.” E emendou: “Eu me sinto cansado hoje.”
Aproximava-se o final de fevereiro quando um jovem alto, de terno, cabelos lisos e negros e barba bem desenhada chegou ao escritório da Isobar, uma das agências que faz o monitoramento das redes para a Presidência da República. Embora Leonardo Rodrigues de Jesus, o Léo Índio, não tivesse nenhum cargo na Esplanada, foi reconhecido por todos os funcionários que estavam em suas mesas naquela manhã. No planeta do bolsonarismo, o sobrinho do presidente é uma celebridade amplamente conhecida nas redes sociais, não tanto por causa do tio, mas por sua proximidade com Carlos Bolsonaro.
Filho de uma irmã de Rogeria, mãe de Carlos, Léo Índio sempre teve afinidade com o Zero Dois. Eles têm a mesma idade e, na adolescência e juventude, costumavam viajar juntos. Por um tempo, Índio morou na casa de Carlos, na Barra da Tijuca. Até ajudava o primo a cuidar de Pituka, a cachorrinha shitzu do Zero Dois, e o acompanhava nos churrascos e baladas. Mas o que realmente notabilizava Índio nos bastidores de Brasília era o fato de ele ter acesso aos principais gabinetes do governo. E, claro, fazer propaganda disso, prometendo ajudar funcionários públicos, empresários e políticos que tentavam se encaixar no novo xadrez da corte.
Naquele dia, quem escoltava Índio na visita à Isobar era o presidente de uma autarquia com a qual a agência pretendia negociar um contrato. Para que o tal contrato saísse, era preciso uma autorização da Secom, mas nem a agência nem o político conseguiam ser recebidos por Floriano Amorim e Santos Cruz. Então, o presidente da autarquia recorreu a Índio. E, ao chegar à reunião, foi logo explicando: “Trouxe o Léo para conhecer e ver o profissionalismo de vocês, a estrutura muito bem montada.” Os dois levaram com eles uma assessora da autarquia. “Indicação minha, indicação minha”, jactava-se o sobrinho do presidente. Depois de uma breve apresentação sobre o trabalho da Isobar, Índio disse que gostara do que vira. “Nós temos gente muito boa trabalhando em redes”, comentou, endossando as críticas. “O Floriano não recebe nem a gente. É um cara ultrapassado. É muito fiel ao meu tio, são amigos há mais de trinta anos, mas ele não entende nada de comunicação.” E se dispôs a ajudá-los.
Na verdade, a história era mais complexa. Alguns dias antes, O Estado de S. Paulo publicara que, desde o início do governo, o Palácio do Planalto havia registrado 58 visitas de Léo Índio. Até de reuniões com ministros ele participara, e continuou indo assiduamente ao local de trabalho do tio, mesmo depois que Carlos voltou ao Rio. Alguns funcionários que frequentavam o palácio já naquela época relatam que o encontraram em reuniões, batendo papo na sala de alguém ou circulando nos corredores. Tudo isso incomodava muita gente, pois não se sabia qual era exatamente a função do primeiro-sobrinho.
Até que alguém notou que estavam sendo quebradas algumas paredes de gesso no 2º andar do palácio para montar uma nova sala, de frente para o local onde fica o gabinete do chefe da Secom, na época Floriano Amorim. Dizia-se que a sala seria para Índio e mais dois policiais federais. Nunca se anunciou oficialmente que tipo de trabalho os três fariam, mas rapidamente circulou, entre as chefias de gabinete palacianas, que seria uma espécie de serviço de inteligência. A iniciativa foi rapidamente abortada pelos generais Augusto Heleno e Santos Cruz. Àquela altura, o currículo do sobrinho de Bolsonaro já havia sido submetido a diversos cargos em órgãos ligados à Presidência. Mas, como Índio não tinha curso superior e sua experiência profissional se resumia à de vendedor de loja, todas as indicações foram vetadas pelo ministério de Santos Cruz, responsável pela triagem dos funcionários.
A boataria sobre Índio já havia corrido Brasília no dia da reunião na Isobar, e ele aproveitou para dar a sua própria versão do caso. Disse que eram maldosos os comentários de que estivesse tentando “ganhar dinheiro” no Planalto. “É um absurdo ficarem insinuando essas coisas. Eu faço campanha para o meu tio desde os 8 anos, desde pequeno distribuo panfleto na rua de graça”, reclamou. Mas não parecia contrariado. “O lado bom é que, com essa notoriedade toda, já tem gente querendo me lançar candidato nas próximas eleições.”
O problema, o sobrinho explicou, é que ele não tinha nem dinheiro, nem equipe. Mas, quanto a isso, a Isobar nada podia fazer. Por ser multinacional, a empresa tem regras que vetam qualquer ajuda ou favor a agentes políticos. Portanto, nem cogitou realizar o trabalho de que Índio precisava para fazer sua carreira política decolar: textos, fotos e vídeos para postar no Instagram, a rede em que ele tinha sido mais ativo até alguns meses antes e para a qual pretendia voltar. A missão foi assumida por um amigo publicitário de Léo Índio, a quem este garantiu conhecer um empresário de joias do Rio de Janeiro disposto a pagar pelo trabalho.
Entre abril e maio, o publicitário elaborou posts, cards e vídeos em que Índio aparecia visitando “projetos que dão certo no país”, entre eles um ônibus itinerante de combate ao câncer no interior de Mato Grosso do Sul. Em meio a esse material, havia fotos de cenas familiares e com amigos, além de registros de suas idas aos ministérios, poses em reuniões e selfies com ministros – como Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, Abraham Weintraub, da Educação, ou Jorge Seif Junior, da Pesca.
No final de abril, Índio anunciou uma novidade aos seguidores: acabara de ser nomeado assessor parlamentar do senador Chico Rodrigues, do DEM de Roraima. “Agradeço ao senador pela confiança em mim depositada, sentimento que quero ser digno de despertar em todos que apoiam minha família.” Ganhou um cargo com salário de 23 mil reais e passou a ter um cartão de visitas. Confiante no novo status, procurou trabalhar em prol dos amigos. Um deles foi Marcello Pitrez, do Rio de Janeiro, que no governo Temer ocupou diversos postos no Ministério do Esporte, na gestão de Leonardo Picciani, inclusive uma assessoria especial. Em janeiro deste ano, Pitrez foi nomeado para uma secretaria adjunta no Ministério do Esporte, e sua mulher, Larissa, obteve uma coordenação na Funasa, a Fundação Nacional de Saúde. Vinte dias depois da nomeação, contudo, Pitrez foi demitido. Preocupado com o futuro do amigo, Índio vem tentando arranjar para ele uma diretoria de departamento no Ministério do Turismo.
A questão é que as movimentações do primeiro-sobrinho na capital federal têm sido pouco discretas e, pior que isso, em geral malsucedidas. Como o dinheiro do tal empresário de joias nunca apareceu, o publicitário parou de trabalhar na promoção da imagem de Índio, que também não conseguiu ajudar o presidente da autarquia a assinar o contrato que buscava. Com esses reveses, o que se fala nos bastidores a respeito de Índio é que ele promete aos interlocutores coisas que não pode cumprir. Os rumores chegaram à família Bolsonaro, que mandou avisar que quer distância dele. Até Carlos, contrariado com as coisas que ouvira, cortou o contato e parou de segui-lo em suas redes sociais.
O plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro estava movimentado na tarde de 24 de abril, quarta-feira, quando Carlos Bolsonaro entrou por uma porta lateral, vindo de uma antessala reservada aos parlamentares, conhecida como Sala Inglesa. Na tribuna da imprensa, um cercadinho de cerca de 2 por 4 metros, jornalistas que acompanhavam a sessão se alvoroçaram. O fotógrafo do Globo passou a disparar flashes na direção do filho do presidente da República, que parecia já estar esperando por aquele momento. Carlos levantou os braços, fez sinal de coração com as mãos e sorriu para as lentes com ar debochado. Manteve essa pose por tempo suficiente para ser bem fotografado, depois deu as costas e sentou-se em sua bancada, no canto direito da terceira fileira de cadeiras do plenário. Imediatamente, o sorriso se desfez. Minutos depois, ele voltou a se levantar. Era possível perceber, pelo volume que saltava de suas costas, o colete à prova de balas por baixo do terno.
O vereador estava agitado. Havia dois dias que protagonizava mais uma crise política no governo do pai. Ele havia postado, no canal de Jair Bolsonaro no YouTube, um vídeo em que Olavo de Carvalho acusava os militares brasileiros de se aliarem ao comunismo. Depois de ser obrigado a apagar o vídeo, Carlos escreveu em sua conta no Twitter – @carlosbolsonaro – uma mensagem de apoio a Carvalho bem ao seu estilo, provavelmente escrita de afogadilho, com alguns erros gramaticais: “@opropriolavo é uma gigantesca referência do que vem acontecendo há tempos no Brasil. Desprezar isto só tem três motivos: total desconhecimento, se lixando para os reais problemas do Brasil ou acha que o mundo gira em torno de seu umbigo por motivos que prefiro que reflitam.” Era fácil reconhecer o alvo: o vice-presidente, Hamilton Mourão, que, na véspera, comentando o vídeo, dissera que Carvalho deveria se limitar à função de astrólogo. Daí em diante, Carlos despejou no Twitter uma torrente de mensagens contra “o tal Mourão”, como ele escreveu. Foram dezessete num ritmo furioso, entre a noite de segunda e a manhã de quarta-feira, acusando o vice de conspirar contra o pai.
Quando Mourão disse que Jean Wyllys – que abriu mão do mandato de deputado federal e se autoexilou na Europa – deveria ter ficado no Brasil, pois o país tinha como protegê-lo, Carlos escreveu: “Caiu no colo de Mourão algo que jamais plantou. Estranhíssimo seu alinhamento com políticos que detestam o Presidente. Qualquer um sabe que Jean Willians não saiu do Brasil por perseguição, mas por uma esperta jogada política cultural.” Noutro post, comentando um vídeo em que o vice dizia que Nicolás Maduro tinha o apoio das Forças Armadas da Venezuela e que a população estava desarmada, o que evitaria uma guerra civil, o filho do presidente comentou: “Quando a única coisa que lhe resta é o último suspiro de vida, surgem estas pérolas que mostram muito mais do que palavras ao vento, mas algo que já acontece há muito. O quanto querer ser livre e independente parece ser a maior crueldade para alguns.” Outro ataque dizia respeito ao convite feito a Mourão para que ele falasse no Wilson Center, instituto de estudos brasileiros sediado nos Estados Unidos, onde tratavam o vice como “uma voz de razão e moderação”. Carlos postou, indignado: “Se não visse, não acreditaria que aceitou com tais termos.”
Os ataques foram tantos e tão intensos que o pai foi obrigado a se manifestar. No dia 23, durante o briefing diário aos jornalistas, o porta-voz da Presidência, general Otávio do Rêgo Barros, afirmou que Bolsonaro desejava “colocar um ponto final” na história. Embora no comunicado o presidente afagasse Carlos, “sangue do meu sangue”, também acarinhava o vice, que tinha sua “consideração e apreço”. Mourão, por sua vez, declarou publicamente que, “quando um não quer, dois não brigam” e que ia “virar a página”.
A tensão era grande também para Bolsonaro. Inconformado com a reação, Carlos fez com ele o mesmo que, dois anos antes, havia feito com o irmão, Flavio, a mando do pai. Trocou a senha do presidente no Twitter e bloqueou seu acesso por três dias. Quando entrou no plenário da Câmara Municipal, naquela quarta-feira, ainda mantinha o @jairbolsonaro sob seu controle. E recusava-se a atender às ligações do presidente, que tentava apaziguar a situação. De pé, rodeado por um pequeno grupo de vereadores, ele falava e gesticulava em tom inflamado, enquanto os discursos se desenrolavam ao microfone. A distância, não era possível saber o que Carlos dizia, embora fosse fácil, mesmo para alguém pouco treinado em leitura labial, identificar dois palavrões: “Foda-se” e “caralho”.
O vereador estava tão entretido com a própria conversa que não se posicionou na votação sobre a manutenção de um veto do prefeito a um projeto de lei que padronizava as ciclovias do Rio de Janeiro (que acabou derrubado). Mas, em seguida, ajudou a derrubar vetos a uma lei que criou um programa de incentivo à prática do futevôlei. Quando o presidente da Casa, Jorge Felippe, do MDB, determinou que fizessem um minuto de silêncio em memória de um gari comunitário da favela do Vidigal e do catador de papel que morreu ao tentar socorrer o músico Evaldo Rosa – os dois últimos fuzilados por militares –, Carlos deixou o plenário. Dezenove minutos depois, outro minuto de silêncio, em memória de um capitão da Polícia Militar morto a tiros na véspera, em Jacarepaguá. Dessa vez, o vereador, que já havia retornado ao plenário, continuou lá.
Assessorado por uma funcionária do gabinete, Carlos digitava seus votos sempre que solicitado, no tablet preso à bancada. Mas, na maior parte do tempo, estava de olho mesmo no celular. Enquanto era votado um projeto de lei que cria o concurso de melhor aluno do ano para os estudantes do ensino fundamental da rede municipal, ele postou mais um tuíte, como legenda para um vídeo anti-Mourão: “Vice contraria ministros e a própria agenda que elegeu Bolsonaro presidente.” Antes do final da sessão, solicitou votação nominal na deliberação sobre uma emenda de Tarcísio Motta, do PSOL, a um projeto de Marielle Franco apresentado em 2017. O texto da vereadora, assassinada em 2018, propunha que a prefeitura fornecesse assistência técnica gratuita para as famílias de baixa renda construírem habitação de interesse social. No rito do Legislativo, grande parte dos projetos é votada por consenso. As votações nominais, quando cada vereador tem de se posicionar individualmente, são solicitadas sempre que o projeto é polêmico ou quando um dos parlamentares deseja marcar posição. Uma vez realizada a votação, ficou clara a intenção de Carlos. A emenda era consensual, apenas corrigia detalhes da lei, e foi aprovada com 26 votos. Só houve dois contra: o dele e o de seu mais fiel aliado na Câmara, Leandro Lyra, do Partido Novo. A sessão foi encerrada meia hora depois. Carlos saiu pela lateral do plenário e foi embora de carro blindado, escoltado por seguranças.
Naquele momento, em Brasília, Mourão dava uma entrevista ao jornal francês Le Monde, marcada com um mês e meio de antecedência. Tinha os olhos vermelhos e estava visivelmente abatido. Quem esteve com ele naquele dia definiu seu estado como o de alguém “perplexo”. Mourão e Bolsonaro haviam tido uma conversa a sós no dia anterior, de onde o vice saíra convencido de que a situação se acalmaria. Funcionários do gabinete, igualmente surpresos, chegaram a comentar com a jornalista francesa Claire Gatinois que Carlos tinha “problemas psiquiátricos”. Na entrevista, Mourão disse: “Em nenhum momento eu busco ser contraponto [a Bolsonaro], até porque isso é antiético e desleal. O que eu busco apresentar é a minha opinião. Enquanto o presidente não tomar uma decisão, todos devemos apresentar nossas opiniões para que ele possa tomar uma decisão. Uma vez tomada, essa decisão será minha também. Eu sou um auxiliar, não sou um agente moderador, nem um intérprete do presidente.” Questionado sobre as críticas do filho Zero Dois, ele respondeu: “O vereador Carlos Bolsonaro não me conhece. Ao não me conhecer e nunca ter sentado para conversar comigo, da mesma forma que nunca sentei para conversar com ele, não vou emitir opinião.”
Não faltava quem achasse que os arroubos de Carlos eram estimulados pelo próprio presidente. Bolsonaro havia deixado claro a alguns aliados que não gostara da declaração de Mourão, feita no final de janeiro, a favor do direito de a mulher decidir fazer um aborto, nem do giro que o vice-presidente fizera em abril pelos Estados Unidos, adotando um discurso conciliador, pregando a tolerância e o respeito à democracia e deixando-se fotografar ao lado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Dez dias depois dessa viagem, o deputado Marco Feliciano, ex-colega de Carlos no PSC, hoje no Podemos, protocolou um pedido de impeachment de Mourão na Câmara dos Deputados. E dizia para quem quisesse ouvir que tinha o apoio de Bolsonaro na iniciativa. Rodrigo Maia rechaçou de pronto o pedido, expressando de forma clara a desconfiança geral: “Ninguém fica preocupado com Carlos, todo mundo tem convicção de que o Bolsonaro é que comanda isso”, disse ao site BuzzFeed News Brasil. E acrescentou: “Alguém coloca aquilo do golden shower, que colocou no Carnaval, sem o pai ver? O filho pode ser doido à vontade, mas num negócio daquela loucura só com autorização do dono da conta.”
O presidente da Câmara dos Deputados também já havia sido alvejado por Carlos. No final de março, no dia em que Moreira Franco, o padrasto da mulher de Maia, foi preso pela Lava Jato, Carlos postou no Instagram uma reportagem expondo as críticas de Maia ao projeto anticrime de Sergio Moro, provocando: “Por que o presidente da Câmara anda tão nervoso?” O deputado, que se convertera no principal articulador da reforma da Previdência, não perdoou. Numa ligação a Paulo Guedes, ministro da Economia, ele mandou um recado ao presidente que foi ouvido por outros deputados. “Estou aqui para ajudar, mas o governo não quer ajuda. Eu sou a boa política, e não a velha política. Mas se acham que sou a velha, estou fora”, afirmou. Bolsonaro botou panos quentes na história, declarando que não havia dado motivo para Maia abandonar o comando das articulações. Disse que iria conversar com ele. “Você nunca teve uma namorada? Quando ela quis ir embora, você fez o quê, não conversou?”, indagou.
Nos bastidores, o presidente vinha dizendo que não controlava o filho. Uma semana antes dos ataques de Carlos, um almoço foi oferecido pelo próprio Maia a Bolsonaro, seus ministros e ao presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli – que estava contrariado com um vídeo postado por Eduardo, o filho Zero Três, com ataques ao STF. Num momento de descontração, Toffoli sugeriu ao presidente que convencesse os rebentos a pegar mais leve nas redes sociais. Bolsonaro deu uma resposta curta e direta para encerrar o assunto: “Não controlo meus filhos.” No dia seguinte, o próprio presidente repostou o vídeo provocativo.
Uma das coisas que mais irritam Carlos Bolsonaro é ouvir que ele influencia as decisões do pai. Em 25 de abril, no auge da polêmica com Mourão, ele respondeu a um seguidor que o apoiou: “Obrigado pelas palavras. Sou apenas mais um como outro qualquer, que talvez conheça um pouco mais porque estou nisso desde os 17 anos, e de saco cheio de toda essa porcaria. Um forte abraço!” Dias depois, foi enfático ao negar que tivesse a intenção de influenciar as decisões da Secom. “O presidente diz que se eu quisesse um Ministério, assim o teria, algo que não acontece. Tenho interesses apenas que o Brasil dê certo. Então surge parte da imprensa alegando que tenho interesses na Secom. Segunda-feira e a manipulação boçal começa a mil por hora. É cada uma!” Cinco horas depois, escreveu outro tuíte sobre o mesmo assunto: “Vejo uma comunicação falha há meses da equipe do presidente. Tenho literalmente me matado para tentar melhorar, mas como muitos, sou apenas mais um e não pleiteio e nem quero máquina na mão. É notório que perdemos oportunidades ímpares de reagir e mostrar seu bom trabalho.”
As postagens desviaram as atenções do público bolsonarista para um general que, até pouco tempo antes, Carlos costumava celebrar: Alberto dos Santos Cruz, o então ministro da Secretaria de Governo da Presidência. O jogo havia se invertido e, agora, Santos Cruz estava na mira de Carlos, Olavo de Carvalho e seguidores.
A tensão entre o filho do presidente e o ministro-general começou em fevereiro, quando entrou em discussão, internamente, a campanha publicitária pela reforma da Previdência. O Ibope mostrava uma queda de quinze pontos percentuais na popularidade do presidente, o governo se consumia em polêmicas e cresciam as cobranças internas e externas para que a comunicação de Bolsonaro pusesse foco na reforma, em vez de consumir capital político em crises. A questão é que, embora mantivesse parte dos serviços de monitoramento de mídia e de opinião nas redes sociais, o governo ainda não tinha estratégia de comunicação definida.
Na primeira reunião geral de assessorias de ministérios e órgãos federais, em meados de fevereiro, o chefe da Secom, Floriano Amorim, explicou que decidira abolir a contratação de agências externas e fazer o que no mercado se costuma chamar de in-house: um serviço próprio, “dentro de casa”, de produção de conteúdo. Vídeos, memes, textos, posts, tudo seria feito ali mesmo, principalmente para reduzir custos. “Para que eu preciso de agências, se o presidente com um tuíte consegue muito mais repercussão?”, era o que diziam Amorim e Santos Cruz.
Até então, estavam ambos alinhados com Carlos. Ele tinha instalado no 3º andar do palácio, a poucos metros do gabinete de Bolsonaro, seus ex-funcionários na Câmara do Rio: José Matheus Sales Gomes, do Bolsonaro Zueiro, e Tercio Arnaud, do Bolsonaro Opressor. Com salário de 13 600 reais, eles tinham como missão administrar as contas pessoais do presidente nas redes sociais. Carlos e os dois defendiam (e ainda defendem) que o conteúdo digital de Bolsonaro mantivesse, no governo, o mesmo tom da campanha. Foi assim, por exemplo, com o fatídico vídeo do golden shower, em 5 de março, Terça-Feira de Carnaval. Logo que o post foi publicado por Bolsonaro, auxiliares do presidente, preocupados, recomendaram que ele o apagasse imediatamente. Os rapazes de Carlos foram contra: “Isso é ele, foi assim que ele foi eleito! Não tira!” O próprio Twitter classificou o material como sensível, restringindo o acesso ao conteúdo. E, alguns dias depois, o tuíte foi apagado. Na entrevista a Leda Nagle, Carlos justificou a publicação: “Uma das propostas que ele carregou ao longo da sua trajetória para se tornar presidente foi exatamente quebrar uma linha cultural […] que a maioria dos candidatos a presidente nunca tentou quebrar. Ele foi claro. Ele falou o que acontece em muitos pontos do Carnaval. Infelizmente tem se tornado padrão em muitos locais no Carnaval…”
“Ele foi eleito assim” passou a ser o bordão a que os auxiliares mais próximos, no Planalto, recorriam sempre que alguém mencionava o estilo tosco dos posts e vídeos do presidente. A transmissão ao vivo que Bolsonaro faz todas as quintas-feiras, numa sala improvisada, com um mapa do Brasil colado na parede, é um exemplo. Quando souberam que o presidente faria essas transmissões, alguns assessores sugeriram preparar um cenário mais clean e iluminado, com câmeras profissionais e jeito de estúdio de tevê. Sales Gomes e Arnaud vetaram: “Ele foi eleito assim.”
Apesar de ter concordado, desde o início, com a estratégia de Santos Cruz, Carlos andava ansioso com a queda de popularidade do pai e a sensação de que a comunicação do governo patinava. Tanto que, no início de fevereiro, foi a Brasília em busca de aliados. Pediu conselhos a políticos e profissionais de comunicação e, surpreendendo os interlocutores, criticou o trabalho de Amorim, que todos sabiam ter sido nomeado com a sua anuência. “Ele é muito ruim, não dá.” A frase foi repetida no Ministério da Economia, onde Carlos foi recebido naqueles dias pela equipe de publicitários da campanha da reforma da Previdência, coordenada pela agência Artplan. Sua intenção, ele disse, era ajudar. Formal, falando baixo e chamando as pessoas de “senhor” e “senhora”, Carlos disse que poderia colocar “sua equipe” à disposição, postando o material em suas redes sociais e listas de WhatsApp. Ofereceu-se também para mobilizar seus “influenciadores digitais”. A recepção foi cortês, mas morna. Carlos saiu sem combinar nada com os funcionários do Ministério da Economia. Tampouco houve novos contatos. Nem ele os procurou, nem eles telefonaram.
Dias depois, Amorim apresentou à equipe da Artplan dois vídeos da produção in-house, propondo que fossem os primeiros a serem divulgados. Pela qualidade das imagens e pelo roteiro – um deles mostrava duas pessoas conversando numa rodoviária sobre os benefícios da reforma da Previdência –, o filmete foi considerado “tosco” e “infantil”. Mas, para Amorim, disseram apenas que era “muito amador”. Em defesa do material, o secretário de Comunicação recorreu ao bordão: “Mas ele foi eleito assim.” A equipe da Economia rebateu: “Vocês não estão mais em campanha. Precisam de uma linguagem profissional, que atinja todos os brasileiros.” Os filmetes foram sepultados, e os vídeos da Artplan estrearam em 20 de fevereiro, quando Bolsonaro foi ao Congresso Nacional entregar a proposta de reforma. Carlos reproduziu um dos vídeos, iniciando uma sequência de postagens sobre o assunto.
Internamente, porém, a insatisfação do Zero Dois – e, por extensão, a de Bolsonaro – com a Comunicação só crescia. As crises internas só pioravam a situação. E Olavo de Carvalho estava no centro de quase todas elas.
Primeiro, Carvalho atacou o próprio governo e exortou seus alunos a deixarem os cargos que ocupavam na administração federal, depois que Ricardo Veléz Rodríguez, então ministro da Educação, demitiu de uma secretaria um dos olavistas mais próximos do guru (a maior parte deles não obedeceu à ordem, mas o tumulto foi grande). Depois, passou a atacar Mourão por ele ter ido a um almoço com o governador de São Paulo, João Doria, quando substituía o presidente, que estava em visita oficial aos Estados Unidos. Por tabela, Carvalho atacou todos os militares, a quem chamou de “um bando de cagões” com mentalidade golpista. “Se nada mudar, o governo acaba em seis meses”, vaticinou. Dias depois, Santos Cruz disse à Folha de S.Paulo que Carvalho era desequilibrado. “Por suas últimas colocações na mídia, com linguajar chulo, com palavrões, inconsequente, o desequilíbrio fica evidente”, enfatizou.
Sob pressão, Amorim anunciou que deixaria o governo. Para substitui-lo, a bolsa de apostas de Brasília pendia para o nome do publicitário Fabio Wajngarten, que havia sido um apoiador bastante ativo de Bolsonaro durante a campanha. Assim que lhe contaram a notícia da indicação, em 12 de abril, Carvalho comemorou no Twitter: “Alguém me disse que o Fabio Wajngarten foi convidado para dirigir a Secom. Será uma notícia auspiciosa. Espero que se realize.” Podia ser auspiciosa para Carvalho, mas o tempo mostraria que não era nada boa para Santos Cruz. Wajngarten não tinha proximidade e nunca havia se encontrado com Carlos. Mas a bênção do guru de Richmond fez o filho Zero Dois encarar com bons olhos a indicação de Wajngarten, que também conquistou a simpatia de seus auxiliares, assegurando o endosso necessário para seguir adiante.
Foi justamente a campanha da reforma da Previdência que provocou o primeiro estresse entre Wajngarten e Santos Cruz. O publicitário queria 60 milhões de reais para dispor na campanha, mas o ministro previa gastar metade. Ao contrário de Santos Cruz, o novo secretário da Comunicação desejava fazer propaganda nos principais canais de tevê e ações de marketing – como veio a realizar, com as entrevistas dadas por Bolsonaro, nos meses seguintes, a Silvio Santos, Ratinho e Luciana Gimenez (a Globo também foi sondada pelo governo para fazer merchandising, mas não aceitou). Santos Cruz achava tudo um desperdício, mas depois de muita costura interna, acabaria liberando 40 milhões de reais.
Nos últimos dias de abril, porém, essa tensão em torno dos rumos da publicidade governamental, que até então estava intramuros, tornou-se pública. O Banco do Brasil havia preparado uma campanha publicitária que tinha como peça principal um vídeo com influenciadores digitais, incluindo uma transexual fazendo pose na frente do celular. Ao ver o comercial, o presidente telefonou para Rubem Novaes, o presidente do BB, e não só vetou a peça como mandou demitir o diretor de Comunicação e Marketing do banco, Delano Valentim. Depois disso, a Secom enviou um e-mail para as secretarias de comunicação dos ministérios, determinando que todas as propagandas de órgãos governamentais, incluindo as de estatais, deviam ser enviadas antes para a análise da Secom.
Santos Cruz imediatamente divulgou uma nota desautorizando a medida, que segundo ele era ilegal: “Não cabe à administração direta intervir no conteúdo da publicidade estritamente mercadológica das empresas estatais.” Bolsonaro não gostou. Três dias depois, Carlos postou o tal tuíte dizendo que estava “literalmente” se matando para melhorar a comunicação do governo, e iniciou uma onda de ataques nas redes que obrigou os militares a tomarem uma posição mais contundente.
O primeiro petardo foi lançado em 5 de maio, domingo, quando se espalhou um vídeo com uma entrevista de Santos Cruz à jornalista Vera Magalhães, para a Jovem Pan, em que o general comentava as controvérsias envolvendo o governo e as redes sociais. “Tem de usar com muito cuidado, para evitar distorções, e que vire arma nas mãos dos grupos radicais, sejam eles de uma ponta ou de outra. Tem de ser disciplinado, até a legislação tem de ser aprimorada.” Foi Olavo de Carvalho quem deu a senha: “Controlar a internet, Santos Cruz? Controlar a sua boca, seu merda.” Naquele dia, a hashtag #ForaSantosCruz ficou nos trending topics do Twitter por horas e chegou a ser a primeira no ranking nacional. Como se não bastasse, começou a circular o print de uma suposta conversa via WhatsApp entre Santos Cruz e um interlocutor não identificado, que se referia ao presidente como “covarde, que terceiriza ataques”. No print, Santos Cruz respondia: “Sim.”
O clima ficou tão pesado que o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, decidiu usar de sua autoridade para colocar ordem na casa. Em entrevista a O Estado de S. Paulo, em 7 de maio, disse que Olavo de Carvalho estava “prestando um enorme desserviço ao país”. “Em um momento em que precisamos de convergências, ele está estimulando as desavenças”, afirmou o general, que não economizou nas palavras. “Às vezes, ele me dá a impressão de ser uma pessoa doente, que se arvora com mandato para querer tutelar o país.” A reação de Carvalho acabaria por empurrar o guru para o corner. Ele escreveu no Twitter que “altos oficiais militares, acossados por afirmações minhas que não conseguem contestar”, estavam indo “buscar proteção escondendo-se por trás de um doente preso a uma cadeira de rodas”. Referia-se ao fato de VB, como é conhecido o general, ter uma doença degenerativa.
Os militares entraram em estado de alerta, com a agressão a um nome que é quase uma unanimidade nas Forças Armadas. Santos Cruz, que no momento do suposto diálogo estava voando de Brasília para São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, chamou o print de “crime malfeito”, cometido por um “desqualificado”. Muitos de seus aliados achavam que quem mostrara a mensagem a Bolsonaro havia sido Fabio Wajngarten. Para os generais, os “olavetes” haviam passado dos limites. Na semana seguinte, Mourão, Santos Cruz, Augusto Heleno e Villas Bôas reuniram-se na sala de Augusto Heleno, no Planalto, para discutir uma reação. Ali, chegaram a cogitar a hipótese de deixar o governo em bloco. Acabaram decidindo, primeiro, ter uma conversa com Bolsonaro. VB e Augusto Heleno, que é tratado pelo presidente com a deferência de um pai, fizeram-no entender que, se houvesse novos ataques, a própria aliança com Bolsonaro entraria em crise.
Não se sabe quem falou com o guru, mas funcionou. Os ataques de Carvalho e mesmo os de Carlos amainaram. O professor parou de fustigar os militares e passou os dias seguintes sustentando que nunca atacara VB. “Por que estão ‘se solidarizando’ com o general Villas Bôas, se até o momento não lhe respondi NADA? QUE FARSA MONSTRUOSA É ESSA?”, escreveu. Carlos, por sua vez, passou a tuitar sobre outros temas, como os já corriqueiros ataques ao PT, ao PSOL e à mídia, a publicar posts de apoio à reforma da Previdência e muitas fotos de si mesmo assinando documentos ou trabalhando no gabinete. No núcleo de amigos mais próximos, atribui-se à mãe, Rogeria Nantes, o empenho para convencer o filho a maneirar. Antes de silenciar, ele postou uma curta mensagem de apoio a Carvalho: “Deixo aqui um grande abraço e minha admiração ao @opropriolavo.” Naquele mesmo período, Flavio Bolsonaro teve o seu sigilo bancário quebrado e o caso Queiroz voltou às manchetes. Carlos ignorou o assunto. Não postou uma palavra sequer em defesa do irmão mais velho.
Nas conversas a portas fechadas, os militares fizeram ainda uma espécie de pacto: dali em diante, eles ignorariam qualquer provocação de Carlos e Carvalho. Ninguém deveria responder ou falar a respeito deles. Para todos os efeitos, era como se não existissem. Quando fui a Brasília, no início de junho, tive a impressão de que essa instrução havia se espalhado por todos os escalões, dos ministros aos assessores, passando inclusive por aqueles personagens que apenas gravitam em torno do poder, como prestadores de serviço ou lobistas. Mais de uma vez, meus interlocutores manifestavam o temor de estar sendo vigiados ou grampeados. E mesmo os políticos preferiam fugir de conversas a respeito do filho do presidente. Desde a cúpula da Câmara dos Deputados até o mais baixo clero, todos simplesmente se negavam a tratar do assunto – ou só falavam em off, sem serem identificados. Carlos tornou-se, em Brasília, Aquele-que-não-deve-ser-nomeado.
No partido de Bolsonaro, não é difícil ouvir críticas abertas ao autodenominado filósofo, mas nunca ao filho. Foi assim com o Delegado Waldir, de Goiás, líder do PSL na Câmara, para quem as interferências dos filhos têm de ser compreendidas: “É algo novo, é peculiar. Não tem modelo no mundo para comparar. Qual presidente tem três filhos políticos? Então, nós vamos ter que aprender a lidar com isso.” O deputado extrapolou a análise para o próprio bolsonarismo. “Você tem que entender que as brigas públicas são a nossa forma de fazer política. Antigamente, você tinha brigas escondidas, no palácio. Nossa briga é aqui, ó!”, disse, apontando para o celular. “Nós avançamos. O PSL não é aquele trem escroto, escondido. Nós somos o partido do ruído!” Mas ele achava que o comportamento de Carlos Bolsonaro era adequado? “Filhos podem tudo. Você controla seus filhos? Depois que ficam grandes, quem controla?”
O esquema de segurança na Câmara Municipal do Rio de Janeiro era fortíssimo naquela tarde de junho. Agentes da Presidência da República se espalhavam por todo o prédio, vigiando até os corredores de circulação de funcionários. No plenário, uma equipe vasculhou cada canto com detectores de metal antes de autorizar a entrada dos convidados, identificados por selos especiais que diferenciavam os VIPs dos convidados comuns. Nem os jornalistas que costumam cobrir a Vice-Presidência da República tinham autorização para entrar no local, onde seria entregue a Medalha Pedro Ernesto e o título de cidadão honorário do Rio a Hamilton Mourão.
Quatro meses antes, quando o vereador Jimmy Pereira, do mesmo PRTB de Mourão, apresentou a proposta, Carlos Bolsonaro não só subscreveu o pedido como o exibiu na internet, chamando o vice de “Grande General Mourão”. Às vésperas da homenagem, porém, Mourão rompera o pacto de silêncio dos generais e dissera à revista Época: “Alguém chegou para essa turma [os olavistas] e disse: ‘Chega.’ Acho que o próprio presidente pode ter feito isso.” E alfinetou: “Carlos sumiu.”
Na Câmara, enquanto bolsonaristas e vereadores ocupavam as cadeiras reservadas do plenário para a homenagem a Mourão, Carlos circulava pelos salões e corredores de calça jeans e uma camiseta de banda de rock, dizendo-se apressado para pegar um papel. Falou com algumas pessoas, cumprimentou outras e foi embora num carro blindado**. Uma passagem rápida, mas que durou tempo suficiente para, antes mesmo do final da cerimônia, alguns sites de notícias informassem que o Zero Dois não iria à cerimônia. Como sempre, Carlos não deu entrevistas. No dia seguinte, enviou um pedido de desculpas pela ausência ao colega que propusera a homenagem, alegando “compromisso anteriormente agendado”.
Nenhum desses movimentos, porém, podia atestar que Carlos saíra do ringue. No final de maio, em sua entrevista ao youtuber Daniel Lopez, ele dera uma declaração que não repercutiu, mas que, para bom entendedor, já anunciava o que estava por vir: “A gente percebe que a comunicação do presidente ainda é muito falha. Não a do presidente, mas de quem o cerca, de quem é responsável para que isso aconteça. O Fabio está enfrentando diversas barreiras ali dentro e tem vencido algumas. Com o passar do tempo, o presidente tem entendido que isso é importante e, com passo de tartaruga… O presidente está entendendo que é necessário que essa sementinha seja plantada lá dentro. Eu acredito que as coisas estão nascendo ali agora, nesse sentido.”
Três semanas depois da entrevista, Bolsonaro demitiu Santos Cruz. Interlocutores do presidente fizeram circular a versão de que ele estava insatisfeito com a demora do general em cumprir uma das promessas de campanha: acabar com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), a emissora estatal criada no governo Lula. Também circularam rumores de que Santos Cruz evitava abrir espaço para blogueiros e youtubers de direita na política de comunicação do governo. O general saiu, mas não em silêncio. Poucos dias depois da demissão, disse que o governo tinha de parar com o que chamou de “fofocagem desgraçada”. “Se você fizer uma análise das bobagens que se tem vivido, é um negócio impressionante”, afirmou. Santos Cruz também não quis dar entrevista à piauí. Enviou apenas uma mensagem de WhatsApp negando ter tido qualquer desentendimento com Fabio Wajngarten e dizendo que esperava que os autores do print – uma “falsificação comprovada e medíocre” – fossem responsabilizados criminalmente.
Gustavo Bebianno, por sua vez, ironizou a situação em declaração ao colunista do Globo Lauro Jardim: “Quando o presidente Carlos Bolsonaro toma uma decisão, não tem volta.” Carlos, porém, continuou mudo. Passou os dias dedicando-se aos rotineiros ataques à esquerda e ao Congresso Nacional. E introduziu em sua conta no Twitter uma novidade que deixou seus seguidores intrigados – postagens em código Morse. Algumas banais (“Boa noite a todos, durmam com Deus”), outras aparentemente cifradas (“Acionando Operação Urubu Dourado”) e provocações ao Congresso, como um post com a foto do personagem Nhonho do seriado Chaves, que os bolsonaristas associam a Rodrigo Maia, e a legenda em código: “Um dos atores mais famintos da tevê brasileira.”
Considerando o tamanho dos tumultos que ele já causara, a relativa calmaria levou muita gente a concluir – cedo demais – que o pit bull havia sido domado. Quem assistiu à sessão da Câmara Municipal do Rio em 26 de junho percebeu que é sempre arriscado apostar na domesticação do filho Zero Dois. Na véspera, um militar que viajava com a comitiva que preparava a visita de Jair Bolsonaro à Espanha fora preso em Sevilha com 39 quilos de cocaína escondidos na bagagem de mão.
O vereador Reimont Luiz Otoni Santa Bárbara, do PT, foi ao microfone do lado esquerdo do plenário para dizer que, mesmo sem ter ligação direta com o episódio, Bolsonaro tinha de dar explicações, porque o fato “envergonha o país”. Carlos, no microfone direito, partiu para cima: “O nome da minha família mais uma vez foi citado por um vereador que pra mim é um vereador zero à esquerda, literalmente, um vereador cabeça de balão, chamado Reimont.” Tarcísio Motta, do PSOL, pediu respeito ao colega e também acabou tomando uma invertida: “Respeito é o cacete! Eu respeito quem eu quiser! E você tem que ir pra Venezuela fazer um regime porque está muito gordinho, tá bom? As informações chegam totalmente distorcidas aqui dentro.”
O bate-boca não parou aí. Carlos explicou que o segundo sargento*** preso não estava no avião do presidente e também não tinha cargo na Presidência. “Mas é claro que a esquerda vai ignorar esses fatos”, disse. E provocou: “Eu sei que aquele pessoalzinho ali [indicando o local onde se agrupam os vereadores de esquerda] vai subir, vai sapatear, vai sambar, mas o presidente Jair Bolsonaro vai continuar presidente. O ministro Sergio Moro vai continuar sendo ministro. E a esquerda vai continuar sendo detonada, como vem sendo há muito tempo nesse país, porque nos destruiu, não economicamente, mas moralmente. Em todos os sentidos. Eles vão conhecer o lugar de onde eles vieram, que é a latrina. Ouviu, cabeça de balão? Um abraço ao senhor.” E deixou o plenário.
* Diferentemente do que consta na versão impressa, em 2016 as doações de empresas a campanhas eleitorais já não eram mais permitidas.
** Na versão impressa, este trecho afirma, incorretamente, que Carlos Bolsonaro estava com seguranças.
*** Trecho corrigido em relação à versão impressa, na qual o militar foi identificado como major.
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