Fora dos holofotes, o prefeito carioca por vezes chama seus aliados Dilma e Pezão de Fiona e Shrek. Segundo a vereadora Andrea Gouvêa Vieira, quando se lançou candidato ao governo, em 2006, Paes disse: "Eu não posso deixar o estado nas mãos desse bandido do Sérgio Cabral." Derrotado, tornou-se secretário de Cabral, seu maior padrinho político FOTO: RENAN CEPEDA_2016
O samba do prefeito
O legado e o gingado de Eduardo Paes
Malu Gaspar | Edição 114, Março 2016
O auditório do Museu do Amanhã estava lotado naquele fim de tarde de dezembro. Ministros, deputados, pesquisadores, empresários e celebridades acompanhavam a cerimônia de inauguração de uma das obras mais festejadas da gestão de Eduardo Paes, na zona portuária do Rio de Janeiro. Autoridade máxima, a presidente Dilma Rousseff seria a última a discursar. Ao anfitrião caberia abrir a solenidade. Paes trajava terno cinza-chumbo com um pin da prefeitura na lapela. Por baixo, apenas uma camisa social branca sem gravata – um modelito até que formal para alguém acostumado a vestir jeans e camisas largas para fora da calça no dia a dia. O estilo de falar era o de sempre, descontraído: “Por que tanta coisa acontece no Rio neste momento? Claro que tem um prefeito excepcional, maravilhoso… E modesto”, começou, logo colhendo risos da audiência. Dedicou em seguida alguns minutos de elogios à presidente, porque “a vida é difícil em Brasília”, para depois voltar a falar de suas próprias qualidades. “As Olimpíadas podem servir para se fazer muita coisa ou para não se fazer muita coisa. E é óbvio que eu me utilizei disso. Eu brinco com a presidenta Dilma que, quando ela era ministra da Casa Civil, eu dizia que era preciso liberar 600 milhões de reais para fazer os piscinões da Praça da Bandeira, porque o Maracanã podia alagar na abertura da Olimpíada. Só que tem um detalhe: em agosto não chove no Rio de Janeiro, então aquilo não alagaria nem por um decreto.” Fez uma breve pausa e colheu mais risos – inclusive da presidente, que estava de bom humor. Paes completou, satisfeito: “Enfim, ela liberou o cheque.”
Em seu discurso – quase todo lido, com alguns minutos de improviso –, a presidente retribuiu a gentileza de Paes, a quem qualificou de líder “que tira o que tem de melhor nas pessoas”, dono de “uma imensa capacidade de trabalho”. Paes a ouvia satisfeito, com um sorriso de canto de boca, por vezes passando uma das mãos sobre a cabeça, do lado esquerdo para o direito, como se organizasse os fios que começam discretamente a rarear. O gesto é repetido sempre – mais por cacoete do que por necessidade, pois o cabelo de Eduardo Paes nunca sai do lugar.
Terminada a cerimônia, o prefeito recebeu amigos, funcionários do museu, auxiliares e familiares para um coquetel “à carioca”, tendo por cenário uma vista noturna da Baía da Guanabara. Distribuíam-se cachorros-quentes Geneal, biscoitos Globo e saquinhos de pipoca, além de mate e cerveja. Paes circulava entre os convidados com uma lata de cerveja na mão, feliz da vida. Aproximei-me. “O senhor está muito bem com a presidente. Ela foi só elogios.” Ele gostou do comentário, mas não pôde perder a piada. “Menina, você viu quando ela abandonou o script e começou a improvisar? Eu até prendi a respiração!”
Desde que o Rio de Janeiro foi escolhido como sede da Olimpíada, em 2009, no primeiro ano de seu mandato, Eduardo Paes estabeleceu como meta ser protagonista do evento. Já na primeira reunião após a cerimônia do Comitê Olímpico Internacional (COI) para anunciar o resultado, o prefeito deixou claro que não daria espaço a mais ninguém. A prefeitura minou a liderança da Autoridade Pública Olímpica, a APO – instância prevista no caderno de encargos da candidatura brasileira para ser o órgão de coordenação dos governos nos jogos. Desde 2013, contribuiu com apenas 3 mil reais para a manutenção da agência, contra 250 mil do governo estadual e 73 milhões da União. Prefeitura e estado excluíam de reuniões importantes o presidente da APO, e quando o ex-presidente Lula tentou emplacar seu ex-ministro Henrique Meirelles no comando da agência, em 2011, Paes revidou criando a Empresa Olímpica Municipal, que assumiu a responsabilidade pela execução de quase todas as obras, incluindo as realizadas com recursos federais.
Agora, às vésperas do grande momento, é Paes, mais até do que o presidente do Comitê Rio 2016, Carlos Arthur Nuzman, o centro das atenções. À sua agenda, normalmente já repleta de eventos públicos, somaram-se inaugurações olímpicas – doze, desde o ano passado –, com direito a fotos “temáticas”. Percorreu de bicicleta e capacete especial o circuito da modalidade radical do ciclismo, o BMX; jogou hóquei na inauguração do centro dedicado ao esporte; desceu de bote, todo paramentado, o circuito de canoagem slalom construído na Zona Oeste; de cadeira de rodas, por ter quebrado a tíbia, jogou basquete paraolímpico na inauguração da arena reservada ao esporte. Tamanha visibilidade já lhe rendeu convites para palestras em fóruns internacionais como o Google Zeitgeist e o TED (Technology, Entertainment, Design), ambos voltados para experiências inovadoras em diversas áreas do conhecimento. No último ano, exerceu a presidência do C40, um clube de cidades comprometidas com iniciativas para mitigar o impacto das mudanças climáticas. Em todos os eventos a que comparece, no Brasil ou no exterior, ele dá um jeito de incluir nos discursos seu bordão predileto: “Eu sou o homem mais feliz do mundo, porque sou prefeito do Rio.”
Aos 46 anos, Eduardo Paes é hoje um político em ascensão. Seu nome é sempre lembrado como potencial candidato à Presidência da República em 2018, pelo PMDB. Ele nega, dizendo que vai ser candidato ao governo do estado. Em seu entorno, porém, todos concordam que ele monta satisfeito se o cavalo da candidatura presidencial passar selado. Como o cenário político no Brasil até 2018 é imprevisível, Paes trabalha com metas de prazo mais curto. Quer ser reconhecido como “o prefeito que mais transformou o Rio desde Carlos Lacerda e Pereira Passos”.
O slogan foi repetido várias vezes por aliados em conversas com a piauí. Saiu da cabeça do marqueteiro Renato Pereira, responsável pelas duas campanhas vitoriosas de Paes, a partir de um plano elaborado pela consultoria McKinsey. E foi exposto aos secretários junto com a ideia do prefeito “sempre presente”, que virou o lema da administração. Mais recentemente, com a aproximação dos jogos, uma nova divisa ancorou uma campanha publicitária nacional na tevê aberta. “A Cidade Olímpica é a Cidade Maravilhosa sendo maravilhosa para mais gente”, resumiu Pereira no final de agosto, num café de Ipanema, na Zona Sul do Rio.
Ex-antropólogo, do tipo que se embrenhava na Amazônia com os índios, Renato Pereira passou por uma produtora de cinema e publicidade antes de migrar para as campanhas políticas e se consagrar no PMDB. Diz ter tomado “muita porrada dos amigos” quando decidiu fazer a campanha de Paes, “o candidato do sistema”. Hoje, o marqueteiro afirma estar convencido de que o prefeito não é apenas um dos melhores do Brasil, como um ótimo candidato à Presidência. “Quando se abrirem as cortinas, vai ficar claro o que os Jogos Olímpicos significaram para o Rio. Do Alasca à Patagônia, todo o mundo estará olhando para nós.” Segundo ele, o maior beneficiário da atenção internacional dedicada à cidade será Eduardo Paes. “Só vai ser preciso conectar os pontos. E isso a gente faz.”
Recursos para as sinapses nunca faltaram. Entre 2009 e 2015, Paes aplicou 480 milhões de reais em publicidade e propaganda – treze vezes o que gastou o antecessor, Cesar Maia. Só em 2015, foram 133 milhões de reais, mais do que São Paulo e provavelmente um recorde entre as grandes capitais brasileiras. Desse montante, 18,6 milhões foram para a Prole, a empresa de Pereira, que levou o contrato em uma licitação com outras duas agências, a Propeg e a Binder.
O sol do final de janeiro fritava o asfalto da Cidade do Samba – complexo de galpões construído pelo ex-prefeito Cesar Maia para as escolas cariocas prepararem seus desfiles – quando Eduardo Paes se deu uma trégua e conversou com os jornalistas. As gotículas de suor se multiplicavam em seu rosto. Por mais de uma hora, o prefeito havia percorrido os barracões, abraçando e beijando carnavalescos, sambistas e dirigentes de agremiações, entre eles alguns bicheiros. Nos últimos anos, com a aproximação da Olimpíada, a presença de repórteres estrangeiros tornou-se frequente. A correspondente da BBC Brasil lançou a pergunta que estava na cabeça de todos. “Há uma grande preocupação internacional com o surto de zika, e muitos países estão aconselhando as mulheres grávidas a evitar viajar para os locais de epidemia. Como o zika pode afetar o Carnaval, e, mais à frente, a Olimpíada?” Paes respondeu em inglês fluente: “Obviamente, é uma preocupação para o nosso país. Mas não acredito que seja para a Olimpíada, porque nessa época do ano, em agosto, o mosquito que espalha a doença não estará na área. O mosquito é mais frequente no verão. Se a pessoa se cuidar, ele não será um grande problema.”
Além do zika, a poluição é outro tema recorrente na imprensa internacional. No final de julho de 2015, uma análise de amostras de água da Baía da Guanabara e da Lagoa Rodrigo de Freitas, realizada por especialistas a pedido da Associated Press, mostrou que em ambas havia uma concentração de vírus pelo menos 30 mil vezes mais alta do que as consideradas alarmantes nos Estados Unidos e na Europa. A promessa do governo do estado de tratar 80% do esgoto despejado na baía não foi cumprida, e o trabalho de despoluição fracassou.
No início de agosto de 2015, ao participar do evento-teste do remo (que terminaria com queixas de náuseas e vômitos de treze dos 563 atletas), Paes se irritou com um repórter da rede da tevê americana CNBC que lhe perguntou se o COI nunca pedira à prefeitura para testar a qualidade das águas. Depois de assegurar que o Comitê não lhe havia pedido nada, o prefeito apontou para a lagoa: “This is our virus water. Enjoy it! (Esta é a nossa água contaminada. Aproveitem!)” E virou as costas.
Cinco meses depois, já mais habituado à renitente pergunta, saiu-se com um pouco mais de bom humor. “Se você morasse no Brasil, eu te diria para ligar para o mr. Big Foot, mas, como você não sabe quem é o Big Foot, eu tenho que responder”, disse sorridente, referindo-se ao governador Luiz Fernando Pezão, diante da correspondente de uma tevê alemã que registrava a inauguração da arena de basquete, em Jacarepaguá. “Esse não é um problema olímpico. É um problema da região metropolitana do Rio. A lagoa não é problema e as regatas vão acontecer numa área limpa da baía.” A repórter não se conformou. “Mas os atletas ficaram doentes no evento-teste.” Paes balançou a cabeça e retrucou. “Não é verdade, não é verdade. Nenhum atleta ficou doente por causa da água. Eles ficaram doentes porque foram ao Maracanã e depois comeram um cachorro-quente do lado de fora do estádio, o que não é algo seguro para se fazer em nenhum lugar, nem no Rio.” Ao final, pressionado, concedeu que havia uma dívida a saldar: “Do ponto de vista do legado, foi um erro. Nós deveríamos ter despoluído totalmente a baía.” Mas logo tratou de dar à frase um tom de brincadeira, encerrando a entrevista com um desabafo em português: “Chega! Já apanhei muito de gringo!”
Eduardo da Costa Paes, ou Duda para os mais próximos, nasceu no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, filho do advogado Valmar Paes e da dona de casa Consuelo da Costa Paes. Teve uma infância de classe média-alta, vivida entre o condomínio fechado onde morava, o Colégio Santo Agostinho, no Leblon, e o sítio da família em Mendes, no interior do estado. O pai não nasceu rico, mas teve boas oportunidades e prosperou prestando serviços aos estaleiros do Rio. Na adolescência de Duda, os Paes se mudaram para São Conrado e compraram uma casa em Angra dos Reis, onde o jovem passeava a bordo de uma pequena lancha batizada de Guidulê – referência ao nome do futuro prefeito e de seus irmãos Guilherme e Letícia. Aos 14 anos, Paes perdeu outra irmã, Daniela, que morreu de câncer no cérebro aos 12.
A bordo da lanchinha, o jovem circulava pela baía de Angra, comparecendo a todas as festas, tivesse ou não sido convidado. Articulado e expansivo, já então dava sinais de pendor para a política. “Ele vivia abraçando as pessoas, gostava de um discurso, queria ser o centro das atenções”, contou uma amiga de colégio. Apesar do estilo mauricinho, desde jovem frequentava roda de samba e torcia para o Vasco, o time do pai. Nunca economizou nos palavrões nem nas gírias, carioquíssimas, como “botar uma pilha” ou “ficar amarradão”. Do carioca típico, o prefeito do Rio só não tem um traço: não é muito fã de praia.
Apesar das manifestações precoces do dom para a política, Paes não chegou a se envolver no movimento estudantil. Seu ingresso nesse universo se deu pelas mãos do primeiro padrinho político: Cesar Maia. “Eu estava no Baixo Leblon, tomando a minha cervejinha, quando encontrei uma amiga, que estava com a Daniela, filha do Cesar. Eu o elogiei tanto que ela conseguiu uma reunião para que eu o conhecesse, no escritório dele.” Na época, Maia era deputado federal. “Tinham acabado de promulgar a Constituição, e ele me deu um exemplar autografado.” Naquele longínquo ano de 1988, Paes cursava direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio e estagiava num escritório de advocacia. O padrinho de vez em quando lhe pedia consultas sobre algum tema legal, Paes estudava e respondia.
Em 1992, Maia, então candidato a prefeito do Rio, chamou o jovem colaborador para trabalhar em sua campanha. Paes foi integrado à Juventude Cesar Maia com uma missão bem prosaica: “Eu dirigia o carro, porque ele não tinha motorista. Estudava e trabalhava durante a semana e, na sexta, pegava o carro e ficava andando com ele. Só largava no domingo.” A dedicação do jovem motorista compensou. Uma vez eleito, Maia o chamou para trabalhar na prefeitura, junto com administradores regionais, vários “jovens talentos” de sua campanha. Eram garotos bem-nascidos, saídos de boas escolas, sempre bem-arrumados e com o cabelo penteado. Foram imediatamente apelidados de “menudos”.
No grupo de Paes, convidado a assumir a Subprefeitura da Barra da Tijuca e Jacarepaguá, estavam Indio da Costa, hoje deputado federal, e Rodrigo Bethlem, ex-deputado e ex-secretário do atual prefeito. Pedro Paulo Teixeira, hoje o candidato do prefeito a sua sucessão, entrou para o time dois anos depois, indicado pelo próprio Paes para a gerência do Autódromo de Jacarepaguá.
Como subprefeito da Barra, Duda ganhou notoriedade com um mix de ações midiáticas e remoções de ocupações irregulares. Quando não estava envolvido com medidas como a pintura dos postes da Barra de lilás e verde – cores relaxantes segundo os critérios da cromoterapia – ou a criação do Museu do Surf, ele se envolvia em ações de mais peso, como a retirada de moradores de favelas, ou a remoção de aterros sanitários clandestinos, estacionamentos e pequenos galpões comerciais irregulares ou em áreas de preservação ambiental. Não raro surgiam conflitos com moradores desalojados, que acusavam o subprefeito de fazer o jogo das grandes incorporadoras. Nessas refregas, Paes chegou a tomar um soco no rosto e a ter o carro apedrejado. Sofreu, também, ameaças de morte. Tal hostilidade, porém, não era compartilhada pela imprensa local. Uma visita aos arquivos dos jornais cariocas mostra que, naquele início da gestão Maia, as ações de Paes eram vistas com simpatia pelos jornais, e constituíram uma bela vitrine para o subprefeito. A ponto de transformá-lo no vereador mais votado do país em 1996, com 82 mil votos.
Era sua primeira eleição, mas ele já estava na segunda legenda, o PFL, egresso do PV. Dizia ser a favor da legalização do aborto, da união civil dos homossexuais e da distribuição de seringas descartáveis aos dependentes de drogas. E tinha grandes ambições: “Sonho ser secretário-geral da ONU, isso depois de ser prefeito, governador e presidente da República”, declarou em 1995 ao Jornal do Brasil, sem nenhuma ironia aparente. Tinha, então, 26 anos.
Elegeu-se deputado federal em 1998, e três anos depois voltou ao Rio para ser secretário municipal de Meio Ambiente de Cesar Maia, então reeleito. As relações entre os dois começaram a degringolar em 2002, quando Paes se desligou da prefeitura para ser candidato a deputado federal, e trocou o PFL pelo PSDB. A razão do rompimento é até hoje tema de especulações entre aliados e ex-aliados dos dois, com versões mais favoráveis a um ou a outro, conforme o interlocutor. Existe, porém, um enredo comum: embora Paes fosse o mais votado, havia no clã Maia – sobretudo por parte da primeira-dama, Mariangeles – a vontade de viabilizar a carreira de Rodrigo, filho do casal. Paes fazia sombra a essa ambição.
As tensões foram se acumulando, até que em 2002 Cesar teria pedido a Paes que não se candidatasse a deputado, para não tirar votos de seu filho. Na versão do prefeito, tudo se passou de forma mais sutil – teria havido mais um afastamento do que propriamente uma ruptura. “Eu nunca tive uma briga com o Cesar. Mas eu sentia que tinha um climão. O Rodrigo ia entrar na política… Não sei se tinha ali uma ciumeira, mas às vezes eu me sentia no meio de uma relação de pai e filho. Eu falei: ‘Cara, eu nunca fiz terapia na minha vida privada. Vou ficar fazendo terapia de grupo na minha vida pública?’”
Em 2004, quando Cesar Maia se candidatou à reeleição, Paes, deputado federal, ainda o apoiou. O rompimento público só ocorreria quatro anos depois, quando Paes, candidato a prefeito, renegou em campanha a gestão de Maia, criticando duramente algumas de suas iniciativas mais importantes. Uma delas foi a construção da Cidade da Música, obra polêmica por ser extremamente cara, suspensa assim que Paes pisou na prefeitura, em 2009. O prédio só viria a ser inaugurado em 2013, rebatizado de Cidade das Artes. Pessoalmente ofendido, Maia não foi à cerimônia de transmissão do cargo. Tornou-se, nos anos seguintes, um feroz opositor de seu menudo preferido.
Num dia atípico na rotina de Eduardo Paes, livre de compromissos públicos, ele me recebeu para um almoço no Palácio da Cidade, sede administrativa do município. O palácio é um belo casarão branco em estilo georgiano, construído no final dos anos 40 para abrigar a Embaixada do Reino Unido e comprado pela prefeitura quando a capital federal se mudou para Brasília. Apesar de estar encravado numa rua movimentada de Botafogo, o local é silencioso, cercado por amplos jardins, quase aos pés do morro do Corcovado, com vista para o Cristo Redentor. Ao redor de um jardim de inverno, vários salões e saletas sobriamente decorados abrigam o gabinete do prefeito, o cerimonial, o protocolo e duas coordenadorias. Paes despacha no palácio em eventos e ocasiões especiais. No dia a dia, prefere trabalhar no gabinete do Piranhão, como é conhecido o complexo de edifícios próximo do Centro, onde também funciona grande parte das secretarias. Às sextas-feiras, procura dar expediente no Palácio Madureira, um casarão histórico da Zona Norte com apenas um escritório e algumas salas que a prefeitura restaurou no ano passado.
Desde o primeiro dia de mandato, o prefeito mantém uma agenda frenética. Tem pelo menos um evento público por dia – chega a trabalhar cerca de dezoito horas, acordando os subordinados para cobrar algum número ou iniciativa. Tira apenas uma semana de férias por ano e reconhece que passa muito pouco tempo com a família. “No álbum de férias dos meus filhos, quase não tem foto minha.” Detalhista e desconfiado, analisa planilhas e documentos, e gosta de conferir as obras in loco. Durante a construção da Transcarioca, linha de transporte rápido de ônibus (BRT) que liga o aeroporto do Galeão à Barra da Tijuca, passou algumas madrugadas fiscalizando os trabalhos.
O prefeito pode se exaltar e ser impiedoso nas broncas. Quando isso ocorre – e ocorre sobretudo nas reuniões de secretariado –, saca um de seus famosos bordões: “Eu faltei às aulas de recursos humanos na faculdade.” Dois secretários, Pedro Paulo e Alex Costa, já relataram episódios em que foram vítimas da fúria do prefeito. Contra o primeiro, Paes atirou um grampeador. O segundo quase foi atingido por um cinzeiro. “Não nego que sou explosivo. Todo mundo sabe disso. Sou um chefe exigente. Mas você acha que eu ia atirar algo em alguém para machucar? Nunca!”, justificou o prefeito, quando o questionei a respeito.
No dia do almoço, encontrei Paes sorridente num dos corredores do palácio. Usava calça jeans e camisa branca com o brasão da prefeitura – seu uniforme de trabalho. Andava de bota ortopédica e muletas – enquanto me conduzia ao salão de almoço, contou ter fraturado um osso da tíbia “pulando loucamente” na festa de final de ano dos funcionários da prefeitura. Pedi para acompanhá-lo num desses momentos de lazer – uma roda de samba, por exemplo. “Nem pensar”, ele reagiu.
Em poucos minutos, porém, começou a mudar de ideia, e sugeriu que eu fosse a uma roda de samba que ele promoveria no final do expediente da sexta-feira seguinte, no Palácio Madureira, para a qual também já convidara outra jornalista. O programa, porém, nunca aconteceu. Foi desmarcado, em razão de uma viagem a Brasília. A reunião na capital federal foi cancelada, mas o samba com os jornalistas não foi retomado. Um típico gingado de Paes.
Um garçom nos serviu a entrada, camarões marinados e algumas folhas de alface. “Eu posso ser trabalhador, talentoso, você pode me elogiar o quanto quiser. Mas eu tive um evento que serviu de justificativa para trazer um monte de coisas pro Rio”, diz Paes, já de saída, quando começo a perguntar sobre a Olimpíada. Pergunto se não está preocupado com o impacto que a economia do Rio sofrerá com o término dos jogos, quando cerca de 40 mil pessoas ficarão sem emprego. Ele argumenta que um novo pacote de Parcerias Público-Privadas deverá admitir boa parte dessa gente. Aposta que pode arcar com uma queda na arrecadação e até com as despesas extras dos dois hospitais estaduais que o município assumiu, para impedir que parassem de funcionar.
É difícil dizer o quanto a crise econômica e as despesas extras vão afetar as finanças da cidade. Mas o histórico da gestão nesse campo é respeitável. Logo no início do mandato, Paes buscou um empréstimo com o Banco Mundial para pagar a União, reduzindo o endividamento do município e alongando os vencimentos dos débitos. Enxugou despesas e tomou medidas que aumentaram a arrecadação, fazendo com que as verbas para investimentos saltassem de 400 milhões para 4 bilhões de reais. Durante anos, o Rio foi a única cidade do país a ter o grau de investimento fornecido pelas agências de risco, o que lhe permitia pegar empréstimos em condições mais favoráveis. No final do mês passado, porém, a dívida cresceu e a Standard & Poor’s rebaixou o status do município.
“Eu te garanto que enquanto eu estiver aqui não tem risco de o Rio quebrar. Sabe por quê? No Natal e no Réveillon, enquanto todo mundo está curtindo, eu estou trabalhando. No sábado e no domingo, quando o pessoal está descansando, eu trabalho”, afirmou o prefeito enquanto bebia o terceiro de cinco cafezinhos que ele consumiria em duas horas, entremeados de cigarrilhas.
De fato, a agenda do prefeito costuma estar tomada nos fins de semana, quando ele gosta de visitar obras e fazer inaugurações. Do contato com o empresariado, incorporou a iniciativa de metas anuais que garantem um bônus aos funcionários bem-sucedidos. Também adotou o planejamento estratégico, à moda das grandes empresas. Quando o questionei, ele não hesitou em se incluir numa hipotética categoria de políticos-CEOs. E procurou se definir ideologicamente: “Sou um humanista, eu me sensibilizo com as causas dos mais pobres. Esse é um lado mais de esquerda meu. Mas, ao mesmo tempo, sou um sujeito pró-mercado. Acredito pouco na capacidade do governo, não tenho raiva do privado e não tenho problemas com o lucro. Acho que esse é um lado meu mais de direita.” Aqui, de novo, eis o gingado de Paes. Comento sobre a falta de apego aos partidos – o prefeito já saltitou por cinco legendas. “Essa é uma coisa que estou mudando”, afirma, sem muita convicção.
O prefeito trabalha, mas também faz questão de deixar os eleitores a par disso. Num domingo recente, postou no Twitter e no Instagram uma foto da mesa de trabalho de casa. “E o domingo de sol começa com números, números e números.” Num sábado de fevereiro, outra foto, com a legenda: “Reunião de secretariado nessa manhã de sábado! Não dá p parar!”
Paes percebeu a importância das redes sociais durante as manifestações de 2013, que ceifaram a popularidade e o futuro político do ex-governador Sérgio Cabral. Embora tenha se mantido fiel ao colega de partido nos bastidores, em público Paes se afastou, mirando a própria sobrevivência. Reduziu o preço das passagens de ônibus por decreto e, em vez de se esconder, chamou para perto quem estava na rua. Em julho, no auge das manifestações, concedeu uma entrevista de mais de uma hora para o coletivo Mídia Ninja – e, segundo os próprios ninjas reconheceram, ganhou a discussão de goleada. Dali em diante, passou a promover hangouts, encontros via internet sobre temas diversos com entrevistadores influentes na rede. Por vezes, não resiste e entra num bate-boca com algum internauta. Ou então convida algum deles para uma visita ao Palácio da Cidade. “Fico pescando no Instagram pessoas que acho mais críticas, mas com densidade. Como um cara da Zona Sul, médico, que estava sempre criticando. Eu vi que era politizado, que não estava fazendo coisa profissional. Aí chamei o cara para o gabinete. Foi legal.” Os admiradores também são convocados, ele diz, para “potencializar os caras a favor”. “Notei quatro caras que sempre comentavam no Instagram. Um deles dizia: ‘Não disse que ele é foda?’ Juntei o grupo no direct messages e falei: quando é que vou tomar uma cerveja com essa galera? Aí, na semana passada, fomos juntos ao Palácio Madureira.” A experiência, porém, nem sempre compensa. “Ontem recebi um cara, do Twitter. Um cara esquisito pra caramba, veio com uma mulher lá da Tijuca.”
A grande arrancada de Eduardo Paes começaria justamente pelas mãos do ex-oponente, Sérgio Cabral, que no passado havia sido um dissidente das bases de apoio de Cesar Maia. Em 2006, no PSDB, Paes disputou a eleição para governador contra Cabral. Perdeu fragorosamente. Conseguiu apenas 5,3% dos votos no primeiro turno. A vaga no segundo turno ficou com a deputada federal Denise Frossard, do PPS – com quem Paes, então secretário-geral do PSDB, chegou a negociar uma coligação, mas desistiu na última hora.
A jornalista Andrea Gouvêa Vieira era então vereadora pelo partido e uma das mais próximas interlocutoras de Paes. Hoje na Rede, de Marina Silva, ela relembrou os acontecimentos daqueles meses num café de um shopping de Botafogo, na Zona Sul do Rio. “A chapa com a Denise Frossard estava praticamente certa. Fizemos até jantar na casa dela para combinar tudo. Mas, na última hora, Paes comunicou ao partido que ele mesmo seria o candidato, e abortou a aliança. Quando eu o interpelei, ele me disse: ‘Andrea, a Denise é muito fraca, não tem condições de ganhar. E eu não posso deixar o estado nas mãos desse bandido do Sérgio Cabral.’” Questionado sobre a afirmação da ex-correligionária, Paes foi taxativo: “Nunca disse isso. Não é verdade. A Andrea está querendo se contrapor a mim a todo custo.”
Durante aquela campanha, Paes foi aos poucos reduzindo seus ataques a Cabral e voltando as baterias contra Frossard. No segundo turno, apoiou o ex-rival. Terminada a eleição, a executiva local do PSDB se reuniu no escritório político de Gouvêa Vieira. A correligionária o admoestou. “Você não apoiou a Denise, dizendo que tinha que ganhar do Cabral, e no segundo turno já estava com ele. Ele não era um quadrilheiro? O que você viu que te fez mudar de ideia?”
A ex-tucana arregala os olhos e imita os gestos de Paes ao reconstituir a cena: “Ele se levantou da mesa e, como se fosse avançar para cima de mim, começou a xingar: ‘Sua vagabunda! Você pensa que não sei quais são seus métodos, como você atua? Quem você pensa que é, sua vagabunda, para me cobrar alguma coisa!?’” O episódio terminou com a própria vereadora deixando seu escritório, uma vez que Paes não parava de gritar. No mesmo dia, segundo ela, o atual prefeito passou a ligar desesperadamente para pedir desculpas. Foram necessários quinze dias de tentativas, recados e pedidos, até que ela o recebesse na Câmara.
Paes não nega o episódio, e baixa o tom de voz quando responde sobre o assunto. “Ela é supercalma, né? Mais explosiva que ela é impossível. Não me lembro de ter chamado de vagabunda. Mas tive uma discussão firme com ela. Pedi desculpas, mas ela também pediu.” Gouvêa Vieira diz que não se sentiu pessoalmente atingida. “Sei que não foi pessoal. Vagabundo é uma palavra corriqueira no vocabulário dele. Faça uma busca no Google, Eduardo Paes + prefeito + vagabundo. Vai ver que ele chama todo mundo de vagabundo – empreiteiros, funcionários públicos, inimigos políticos.”
Em maio de 2013, Paes se envolveu em outra pendenga, desta vez pública. Numa noite em que jantava com a mulher e amigos num restaurante do Jardim Botânico, o músico Bernardo Botkay, conhecido como Botika, aproximou-se e perguntou se ele era mesmo o Eduardo Paes. A resposta foi irônica: “Não, sou o Cesar Maia!” Botika afirmou que o prefeito era um bosta e se afastou da mesa. Em minutos, trouxe a namorada, que passou a esbravejar contra a gestão do município. A temperatura aumentou, até que Paes perdeu o controle e desferiu dois socos no rapaz. Amigos e seguranças apartaram, mas na confusão Botika ainda levou mais uns cascudos.
O músico saiu dali direto para a delegacia e registrou um Boletim de Ocorrência, mas logo desistiu de prosseguir com a queixa. Segundo disse à piauí, o boletim policial não fazia menção específica aos golpes do prefeito, e por isso ele não pôde sequer fazer exame de corpo de delito. Além disso, ao chegar em casa, Botika postou no Facebook ameaças contra Paes, e ficou com receio de ser processado. Para Paes, o que faltou naquela noite foi a presença mais próxima dos seguranças da prefeitura. “Se eles estivessem mais perto de mim, do jeito que o cara estava, agressivo e doido, poderiam ter segurado ele, impedindo minha agressão.” Pergunto se ele se arrependeu. “Sim! Eu vi que tinha feito merda naquele mesmo momento. Mas, na boa, o que dizem é que o cara é notoriamente imbecil, parece que é um débil mental.”
Em 2007, um ano depois da humilhante derrota nas eleições para o governo estadual, Paes tomou uma decisão que mudaria para sempre sua carreira política. Num lance que surpreendeu os tucanos, trocou o partido pelo PMDB e foi ser secretário de Turismo, Esporte e Lazer do governo Sérgio Cabral. “Um dia antes de anunciar a filiação, o Sérgio Guerra [presidente do PSDB, morto em 2014] me disse que o Eduardo havia acabado de garantir que não sairia. Ficamos estupefatos”, recordou Andrea Gouvêa Vieira. O próprio Paes admitiu: “Eu estava realmente decidido, mas o Cabral veio com tudo pra cima de mim, garantindo que eu seria o candidato a prefeito. Foi a decisão mais difícil da minha vida. Tive no PSDB todo o carinho do mundo. Mas o meu objetivo era ser prefeito do Rio, e quando o Cabral me convidou eu vi que poderia conseguir”, disse o agora peemedebista. Eis Paes, mais uma vez, sambando.
Em março de 2008, porém, ele viu o sonho da candidatura derreter. Num acordo feito diretamente com o então presidente Lula, Cabral selou uma aliança com o PT para a eleição municipal. E deu aos petistas a cabeça de chapa, que seria do deputado estadual Alessandro Molon. O PMDB ficaria com o vice, Regis Fichtner, secretário da Casa Civil do estado. No almoço em que Cabral comunicou a triste novidade a Paes, os dois choraram. O prefeito, naquele momento, até cogitou abandonar a política. Paes é parcimonioso ao comentar o encontro: “Ele se emocionou. Eu só pensava: ‘Porra, fiz uma maluquice do cacete, dei uma cambalhota e uma voadora, tudo para ser prefeito, e agora estou aqui sem nada.’ Fiquei puto. Liguei para meus aliados, para minha mulher, para os meus pais, e disse: ‘Olha, não vou mais ser candidato.’ E fui tomar um chopinho.”
Meses depois, uma nova reviravolta mudou o futuro de Paes. A aliança com o PT naufragou e o PMDB o reconvocou como candidato. Paes conseguiu passar para o segundo turno, contra Fernando Gabeira, então no PV. As pesquisas indicavam uma disputa renhida, e Cabral tentava a todo custo obter o apoio público de Lula para o pupilo. Havia, porém, um obstáculo: Marisa Letícia, a primeira-dama. “O Cabral me chamou e disse: ‘O problema do Lula é que a dona Marisa tem ódio de você. E, se você não se retratar do que disse do filho dela, não tem apoio, ela não deixa.’”
Paes deu uma baforada em sua cigarrilha e rememorou o caso. Quando deputado, ele havia sido um dos mais combativos membros da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Correios, que investigou o mensalão. Dedicou-se com afinco a denunciar a operação em que a Telemar fizera um aporte de capital na Gamecorp, empresa do filho do presidente, Fábio Luís da Silva, o Lulinha. No auge da CPI, chegou a viajar para a Suíça atrás de documentos que pudessem comprometer o jovem. Fez ainda vários requerimentos de informações sobre os voos de outro filho de Lula, Luís Cláudio, em jatinhos da Força Aérea Brasileira.
A princípio, a ideia de pedir desculpas incomodou Paes. “Pensei: ‘Eu nem conheço a mulher. Vou lá discutir a relação?’ E o Cabral disse: ‘Escreve um bilhete.’ Eu fiz uma carta dizendo: ‘Olha, dona Marisa, eu, diante das circunstâncias, sem os elementos necessários para isso, no jogo da política, ofendi um membro da sua família. Naquele momento era isso.’” Interrompeu a fala para fazer um parêntese: “Esquece as coisas como estão hoje. Se fosse hoje eu nem precisaria pedir.” E, voltando ao episódio, concluiu: “Eu tinha mesmo passado um pouco do limite da política. Mas em nenhum momento escrevi a palavra perdão.” Mais um exemplo do gingado do prefeito.
O bilhete cumpriu sua função. Lula gravou um vídeo de apoio para o segundo turno, que transcorreu tenso, sob o signo da divisão de classes. As elites cariocas não aceitaram o pedido de perdão a Lula. “Naqueles dias, eu não podia nem andar pelas ruas do Leblon. De repente, eu virei o capeta”, relembrou o prefeito, dando mais uma baforada na cigarrilha.
Os eleitores da Zona Sul e da Barra da Tijuca deram cerca de 70% dos votos a Fernando Gabeira. Empurrado pelas circunstâncias, Paes abandonou seus antigos redutos e migrou para o subúrbio, fazendo um discurso focado em melhorias na saúde e na educação. Com o apoio de Marcelo Crivella, da Igreja Universal, derrotado no primeiro turno, Paes percorreu bairros da Zona Oeste e da Zona Norte, participou de reuniões com comunidades pobres, dançou e cantou muitos sambas, cansou de orar em igrejas evangélicas. Saldo final: Paes derrotou Fernando Gabeira por uma diferença de apenas 55 mil votos, ou 1,6% dos votos válidos. Quase toda a sua votação – 96% – veio da periferia. Ao final daquela eleição, o deputado mauricinho da Barra havia se convertido num político popular – pelas circunstâncias, pelo marketing, por vocação.
“Ê, nega, tu tá foda, hein?! Vem cá! Hum, tá cheirosa!!!”
Eduardo Paes agarrava e apertava efusivamente Tia Surica, uma das figuras mais emblemáticas da Velha Guarda da Portela, escola do coração do prefeito. Baixinha, agitada, simpática e vaidosa, toda de azul-claro, Tia Surica ainda apeava do carro prateado que a trouxera à Cidade do Samba, mascando chicletes à larga, quando o prefeito começou o agarra-agarra. Ela gostou e correspondeu, gargalhando: “Como tu tá?”
Com uma das mãos Paes segurava a bengala, com a outra puxou Tia Surica e saiu manquitolando ao lado dela em direção ao próximo barracão a ser visitado naquela última sexta-feira antes do Carnaval. Os dois se separaram no barracão da Mocidade Independente de Padre Miguel. Ele entrou. “É meu filho adotivo”, disse Surica, orgulhosa. “Para nós é uma satisfação ele ser portelense. O Brizola era mangueirense, o prefeito é portelense”, comentou, já contando que na semana seguinte faria a feijoada do almoço de abertura do Carnaval no Palácio da Cidade. Quando o prefeito deixou o barracão, perguntei se poderia acompanhá-lo na feijoada. “Nessa é que você não vai, de jeito nenhum!” Breque no samba.
O entusiasmo de Eduardo Paes pelo Carnaval vem desde cedo. Na juventude, ele cruzava a cidade para assistir aos ensaios da Portela. Até disputar a prefeitura, porém, seu envolvimento era o de folião. A relação entre samba e carreira política começou a ficar simbiótica na campanha para a prefeitura. Ao assumir, Paes passou a visitar a Cidade do Samba e participar dos ensaios técnicos das escolas e dos desfiles, além de dar apoio financeiro a quase tudo o que tivesse a ver com seu gênero musical preferido. A vereadora de oposição Teresa Bergher, do PSDB, fez um levantamento: dos 61 milhões de reais pagos pela Riotur em cachês desde 2010, 9 milhões de reais, ou 14% do total, destinaram-se à Portela. Outros 4,7 milhões foram aplicados pela prefeitura na reforma da quadra da escola. Outras seis agremiações tiveram suas quadras reformadas, em obras que consumiram mais 20 milhões de reais.
Ampliando uma prática inaugurada em 2006 por Cesar Maia, Paes também liberou, ano após ano, verbas para a realização dos desfiles – a chamada subvenção, combatida pelo Ministério Público do estado. “Consideramos que a Liga Independente das Escolas de Samba tem dinheiro suficiente para fazer o desfile, já que administra o Sambódromo durante o Carnaval. Mas eles sempre dizem que a festa dá prejuízo”, diz a promotora Gláucia Santana. Até 2015, a subvenção orbitava em torno de 1 milhão de reais. Mas a crise acabou com os patrocínios, e os bicheiros há vários anos já não têm a mesma potência financeira. Argumentando que a medida era necessária para preservar o Carnaval, Paes dobrou o valor da subvenção em 2016: 2 milhões de reais por escola – ou 24 milhões de reais.
Entre um barracão e outro na Cidade do Samba, uma repórter perguntou ao prefeito se era mesmo necessário dar tanto dinheiro às escolas em ano de crise. Paes nem piscou: “O Carnaval é um ativo desta cidade. Vá olhar os hotéis do Rio de Janeiro, vá ver o que eles estão pagando de INSS, de impostos”, dizia, quando o secretário de Turismo, Antonio Pedro Figueira de Mello, atalhou: “Oitocentos milhões de dólares!” O prefeito parou de falar, virou-se para trás e fulminou o secretário com o olhar, condenando a interrupção. Figueira de Mello abaixou a cabeça. “Desculpe”, murmurou. Paes voltou-se novamente para os repórteres e concluiu: “A gente tem muita alegria de poder ajudar o Carnaval carioca. Essa festa é linda, essa festa é incrível. A gente busca economizar naquilo que é supérfluo. O Carnaval não é supérfluo. É o nosso soft power.”
“Mantenha os amigos por perto, e os inimigos mais perto ainda”, diz uma velha máxima da política. Assim que ganhou a eleição para a prefeitura, Eduardo Paes saiu em busca dos inimigos. Primeiro, visitou o rival Jorge Picciani, cacique do PMDB no estado, e lhe ofereceu espaço no governo. Convidou alguns apoiadores de Gabeira para compor seu secretariado. Entre eles Eduarda La Rocque, executiva do mercado financeiro, que fizera a campanha de Gabeira e havia sido indicada por Joaquim Levy para o time do prefeito. Outro egresso da candidatura verde foi o ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Sérgio Besserman Vianna, que, além de comentarista e colunista de rádio e jornal, era presidente do Instituto Pereira Passos, da prefeitura. Besserman recordou o diálogo que teve com Paes: “Ele disse que queria que eu ficasse, trabalhando com mudanças climáticas e sustentabilidade. Eu respondi: olha, eu tenho uma outra vida, trabalho com opinião, falo no rádio etc. E ele: ‘Zero restrição. Seja por motivos republicanos, seja porque a sua opinião não vai mudar nunca o voto de ninguém. Mas o cara que é contra mim e sabe que você tá comigo, mesmo me criticando no rádio, esse cara já me respeita um pouco mais. E isso me ajuda bastante.’”
Numa conversa no Centro de Operações da Prefeitura, em fevereiro, Paes disse que procurar os antigos aliados de Gabeira foi uma forma de reunificar a cidade, após a conflagrada eleição de 2008. “O Rio estava rachado e eu era odiado pelos setores médios. Não iria conseguir governar se não chamasse esse pessoal para conversar”, afirmou, enquanto reabastecia nossas xícaras com o café de uma garrafa térmica fornecida pelo ajudante de ordens. Naquela manhã, em duas horas de conversa, seriam incontáveis reposições, acompanhadas de quatro cigarrilhas.
O prefeito comparou o clima de 2008 no Rio ao que se seguiu à eleição de Dilma Rousseff em 2014. Logo depois da reeleição da petista, ele foi a Brasília com o governador Pezão e diz ter dado um conselho à presidente: “Eu disse: presidenta, a sua eleição agora foi muito parecida com a minha contra o Gabeira. Eu ganhei por um pentelho, e os setores médios da sociedade carioca todos eram contra mim, mas contra com ódio, como estão com ódio da senhora agora. Minha vontade no dia seguinte da eleição era pegar um jipe de guerra e ir para a Ataulfo de Paiva (avenida movimentada no Leblon) e matar todo mundo. Guardei essa vontade no dia seguinte. E comecei a trabalhar para unir a cidade e acabar com esses ódios.” Perguntei qual foi a reação de Dilma: “Ela não disse nada.”
Daquela campanha, uma de suas piores lembranças foi um perfil que o jornal O Globo fez de sua mulher, Cristine Assed Paes – publicado ao lado de um sobre a mulher de Gabeira, Neila Tavares. Na matéria, a futura primeira-dama contava ter abandonado a faculdade de arquitetura para cuidar dos filhos, Isabela e Bernardo. Dizia que, por causa da rotina com as crianças, não dispunha de tempo para ler. Não tinha estilo arquitetônico preferido. Dizia que não lia jornais para não ver as notícias sobre o marido, e afirmava ter defendido Lula quando Paes era oposição (“Ah, amor, ele é tão fofinho”). “Aquilo foi muito cruel”, lembrou o prefeito. Desde então, a primeira-dama não dá mais entrevistas. Quando ele disputou a reeleição, em 2012, O Globo quis fazer um novo perfil da primeira-dama. As respostas foram enviadas por e-mail. (Nem Assed nem os pais do prefeito falaram com a piauí. O prefeito vetou.)
A má vontade que Paes identificou na cobertura do principal jornal do Rio de Janeiro deve-se, segundo ele, aos jornalistas, eleitores de Gabeira, e não à cúpula das organizações Globo. Mesmo assim, ele privilegiou o Grupo Globo em sua estratégia de aproximação com os “setores médios”. Sua primeira iniciativa como prefeito foi instituir o “Choque de Ordem”, agenda cara à classe média e ao jornal, que no final da administração Cesar Maia movera uma campanha contra o reiterado e persistente desrespeito às normas da vida civilizada no Rio. Além disso, o projeto do Porto Maravilha, uma das joias da coroa do prefeito, foi apresentado em primeira mão à redação de O Globo.
Ao longo dos anos, Paes também delegou à Fundação Roberto Marinho a administração dos dois novos museus do município, o Museu de Arte do Rio, o MAR, e o Museu do Amanhã. “Peguei o José Roberto [Marinho, presidente da Fundação] pelo braço e levei-o pessoalmente aos colecionadores”, contou Paes, certa vez, a um jornalista do grupo Globo. No governo Maia, a Fundação Roberto Marinho recebeu 11,5 milhões de reais para revitalizar uma igreja histórica. Na gestão Paes, foram 130 milhões, incluindo 30 milhões para conceber o Museu do Amanhã.
Na Câmara Municipal, Paes construiu ampla maioria. Dos 51 vereadores, 42 fazem parte da base governista. Para manter esse apoio, o prefeito diz cuidar diretamente do contato com a Câmara. Recebe pelo menos três vereadores por dia, telefona de manhã bem cedo para os aniversariantes, realiza almoços e encontros periódicos e, nos fins de semana, costuma levá-los na van em que circula pela cidade. “Minha relação com eles é na despesa. São obras, asfalto, uma escola, uma creche, enfim, o serviço público. A gente tem tendência a criminalizar o cara que pede obras. Mas tem muito vereador que representa uma parcela mais pobre da sociedade, que precisa mesmo. Eu atendo todo mundo e exijo que meus secretários também atendam”, explicou Paes.
Os esforços do primeiro mandato foram recompensados em 2012, quando ele disputou a reeleição. Ganhou no primeiro turno, com 64,6% dos votos. Venceu, inclusive, na Zona Sul. O adversário era o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL.
A oposição acusa Paes de usar sua maioria acachapante para travar debates importantes. “Não se aprova nem requerimento de informações na Câmara se o Eduardo não quiser. Não houve nenhuma CPI em oito anos de mandato”, diz a tucana Teresa Bergher. A única comissão aprovada, durante as manifestações de junho de 2013, tinha como objetivo investigar irregularidades nos contratos da prefeitura com as empresas de ônibus. Mas, dominada por vereadores da base, a CPI não foi instalada e a oposição se retirou em protesto. “Quem quer CPI é oposição. Eu como parlamentar já fiz muita CPI. Mas você não pode querer que, como governante, eu aceite CPI. Como governante, trabalho para que não tenha CPI. Tenho controladoria, tenho tribunal de contas. Não vou aceitar CPI nunca”, afirmou.
No início do ano, a polêmica em torno da relação das empresas de ônibus com a prefeitura voltou à pauta. Paes concedeu aumento de 11,7% no preço das passagens e liberou as empresas do compromisso, assumido em contrato, de instalar ar-condicionado em 100% da frota até o final deste ano. A nova meta passou a ser de 70%. A Justiça suspendeu o decreto no final de fevereiro, mas a prefeitura vai recorrer para fazer valer sua posição. “O óleo diesel aumentou, o preço dos ônibus aumentou, a economia está pior e a capacidade do empresário de investir diminuiu. Atingir a meta neste momento aumentaria a tarifa em 15 centavos. There’s no free lunch”, explicou o prefeito.
Eram três da manhã da quinta-feira, 12 de novembro, quando Eduardo Paes telefonou para o ex-governador Sérgio Cabral. Estava ao lado do marqueteiro Renato Pereira e de Pedro Paulo Teixeira, deputado federal e secretário executivo da prefeitura. Depois de muitas conjecturas, haviam decidido arriscar. No final da tarde daquele mesmo dia, Pedro Paulo e sua ex-mulher, Alexandra Marcondes, dariam uma entrevista coletiva pra tentar debelar a crise que punha em risco os planos de Paes para seu pupilo (e para si próprio).
Quando era casada com Pedro Paulo, Alexandra Marcondes registrara dois boletins de ocorrência contra ele por lesão corporal. Os detalhes de um dos BOs, de 2010, haviam sido publicados pela revista Veja em outubro do ano passado, e desde então o homem de confiança de Paes estava sob forte tiroteio. As cenas descritas no documento mostravam mais do que uma briga de casal. O relato, bastante detalhado, dizia que, ao chegar em casa de surpresa após uma viagem, a mulher encontrou sinais de que o marido havia recebido visita à noite. E afirmava que, pelas imagens da câmera do condomínio, ela concluiu que a visita “tinha características” de travesti – hipótese que não conseguiu confirmar, porque o condomínio não deixou que ela revisse as imagens. Marcondes contou ter decidido expulsar Pedro Paulo de casa – mas ele, ao chegar e ver as malas prontas, teria reagido jogando-a no chão e chutando sua barriga repetidas vezes, entre xingamentos como “piranha” e “vagabunda”. A briga teria continuado no escritório do apartamento, onde o deputado tentou estrangular a mulher e desferiu um soco em sua boca. Só parou, segundo os registros do BO, quando a filha do casal chegou do parquinho com a babá. Ao boletim policial foi anexado um laudo do Instituto Médico Legal que descrevia as lesões, incluindo uma pequena quebra em um dente da frente da mulher.
Por três semanas, Pedro Paulo simplesmente se limitara a negar as acusações. Depois, reconheceu a agressão, mas disse ter sido um momento de “descontrole”, que ocorrera uma única vez. Naquela madrugada em que a cúpula estava reunida, porém, a imprensa questionava o deputado sobre um segundo registro de agressão, até então inédito. Este, do final de 2008, dizia que Pedro Paulo dera um soco no rosto de Marcondes durante uma discussão dentro de um carro, em São Paulo, na frente da filha, que na ocasião tinha 2 anos. O candidato que Eduardo Paes escolheu para sucedê-lo precisava reagir, e a solução lhe foi oferecida pela própria ex-mulher, que se dispôs a falar aos jornalistas e esclarecer que o ex-marido não era, afinal, tudo aquilo que os boletins de ocorrência diziam. Cabral se colocou contra a participação de Marcondes na entrevista. O melhor, na opinião do ex-governador, seria Pedro Paulo falar sozinho e pedir desculpas enfáticas, encerrando a história de uma vez. Alguns outros aliados, assessores e advogados também tentaram demover o trio da ideia. Mas Paes, Pereira e Pedro Paulo fecharam a questão.
No final da tarde do dia 12, Pedro Paulo e Alexandra Marcondes, uma moça loira de olhos azuis, cuja fala firme e decidida contrastava com os traços suaves e o rosto de boneca, sentaram-se à mesa de um hotel de Copacabana para a entrevista. Com a testa franzida e os olhos marejados, ele começou a falar. “Quem é que não tem nenhuma briga dentro de casa? Quem que não tem um descontrole? Quem não exagera numa discussão?” Marcondes o apoiou. “O Pedro nunca foi um cara agressivo. Eu vim de São Paulo hoje para dizer que vocês transformaram a minha vida, a vida do Pedro, a vida da nossa filha [de 10 anos] num inferno.” O apelo, porém, não aliviou o tom das perguntas (“O senhor então acha normal, de vez em quando, não sempre, o marido agredir a esposa?”). Um repórter questionou a mulher sobre o fato de haver um travesti na história. “O que eu disse foi: ‘Quando vi nas câmeras internas do prédio, a mulher parecia um travesti.’ Foi um comentário infeliz”, ela respondeu. Foi o bastante para Pedro Paulo mandar encerrar a entrevista. No mesmo instante, Eduardo Paes começou a disparar mensagens eufóricas aos aliados pelo telefone celular: “Alexandra para prefeito!” No dia seguinte, a foto que ilustrava as reportagens sobre o caso era a de Marcondes de cabeça baixa enquanto Pedro Paulo falava. Nas manchetes: “Pedro Paulo admite segunda agressão.”
Para Eduardo Paes, nunca houve dúvida de que Pedro, como ele chama o amigo e aliado, será o seu candidato à prefeitura do Rio. “Ele é o meu primeiro-ministro, o maestro do meu governo. Não é espancador de mulheres.” Desde outubro, ele repete essas mesmas frases sempre que o assunto vem à baila. Em sua defesa, Pedro Paulo enviou à Procuradoria-Geral da República, a quem cabe investigá-lo por ser deputado federal, duas peças que procuram desmontar completamente o relato feito por Marcondes lá atrás – um vídeo em que ela afirma tê-lo agredido primeiro e um laudo encomendado a um perito particular que considera possível que a ex-mulher do deputado tenha se autoflagelado para forjar as lesões constatadas em 2010.
Nos meses de novembro e dezembro, diversos aliados tentaram convencer o prefeito a trocar de candidato. Dois deles me disseram considerar que a candidatura de Pedro Paulo era inviável. O prefeito, porém, permanece irredutível. Está convencido de que a acusação de violência doméstica será derrubada no Supremo Tribunal Federal, dando ao seu candidato o álibi de que precisa para disputar a eleição. E não há nada que o faça desistir. “Ele está cego. Não quer ouvir ninguém. E todo mundo vai ter que engolir”, lamentou-se um desses aliados. Apesar dos insistentes pedidos da piauí, Pedro Paulo recusou-se a falar.
Uma fila de algumas dezenas de pessoas havia se formado na porta do Museu do Amanhã, antes que os organizadores do seminário “Os Jogos Olímpicos e a transformação do Rio de Janeiro” começassem a autorizar a entrada dos convidados. Lá dentro, o calorão daquela manhã de céu azul do final de janeiro podia ser aplacado com drinques e coquetéis servidos diretamente pela chef Flávia Quaresma no bufê à beira do espelho d’água. Promovido pelo jornal O Globo, o evento era patrocinado pela Odebrecht, construtora onipresente nas obras da prefeitura, do Porto Maravilha ao Parque Olímpico, passando pelas vias para o BRT.
Eduardo Paes abriu os trabalhos oferecendo à audiência um pot-pourri de suas frases preferidas sobre si próprio e a Olimpíada – com algumas inovações. “Fui melhor homem de negócio do que os homens de negócios”, disse, ao vangloriar-se de ter conseguido fazer o evento gastando um mínimo de dinheiro da prefeitura. Aplaudido, como sempre, deixou o auditório, manquitolando em sua bota ortopédica, para cumprir o roteiro habitual: cumprimentar algumas pessoas, dar uma entrevista rápida e sair pela lateral do museu rumo ao próximo compromisso. Nem bem havia dado alguns passos, teve de parar.
Foi interrompido por uma mulher magrinha, mirrada, com o rosto curtido pelo sol e cabelos cacheados caindo sobre os ombros. Vestindo uma camiseta em que se lia “Viva a Vila Autódromo”, ela se colocou diante do prefeito. “Eu quero falar. Eu sou moradora da Vila Autódromo”, disse a acupunturista Sandra Maria de Souza Teixeira, uma das líderes dos moradores da favela de Jacarepaguá removida para dar lugar ao Parque Olímpico. “Na semana passada o senhor afirmou que havia trinta famílias que iam permanecer.” O prefeito assentiu com a cabeça: “Isso, isso. As que não querem sair.” Ela continuou falando. “Eu faço parte.” “Então relaxa”, ele respondeu, querendo se desembaraçar logo da situação. A moça fitava o prefeito nos olhos e emendava uma frase à outra sem interrupções. Como Paes também respondia rápido, ambos falavam ao mesmo tempo. Ela: “Nós estamos vivendo uma situação muito desumana. A Guarda Municipal proíbe a gente até mesmo de hastear bandeira do Brasil…” Ele: “Mesmo? Caramba! Cara pouco patriota, né?” Ela: “Tem vídeo na internet que mostra a Guarda proibindo o hasteamento de bandeira, reunião de moradores.” Ele: “Jura? Isso é ditadura, gente.” Duas mulheres que estavam com a líder comunitária fizeram coro. “É ditadura, é ditadura!” “Isso não pode”, reforçou o prefeito. “Não pode deixar isso aí não… Só um minutinho, meninas, vou dar uma entrevista ali”, emendou, saindo de perto. A moça o seguiu. “Mas eu tenho uma pergunta.” O prefeito e alguns auxiliares tentavam detê-la. “Só um minutinho, só um minutinho…” “Quando vai começar a urbanização da Vila Autódromo, prefeito?” As demais mulheres faziam coro. “Quando começa, prefeito?” Paes se posicionava para dar entrevista para um vídeo institucional do seminário. “Deixa eu dar entrevista aqui”, dizia baixinho, em tom de súplica. Alguns assessores acudiam. “Só um minuto, ele vai dar uma entrevista.” Elas não paravam. “Quando começa a urbanização da Vila Autódromo para essas famílias que vão permanecer?” E o prefeito, incomodado: “Não sei, não sei ainda. Já disse!” Uma das mulheres do grupo ensaiou um discurso. “A urbanização da Vila Autódromo seria um legado da Olimpíada para o Rio de Janeiro. Vamos mostrar que o Rio pode fazer Olimpíada com justiça social! Obrigada, prefeito.” Ele encerrou com um sorriso sem jeito: “Obrigado à senhora, um abraço.” E começou a responder às perguntas do entrevistador. “O Rio sempre foi uma cidade que fugiu dos seus problemas. A Olimpíada está mostrando que no Brasil você consegue fazer as coisas no prazo, dentro do custo. O Rio é uma cidade melhor a partir dessas transformações…” Paes voltava a desfilar diante da câmera depois de sambar miudinho.
A Vila Autódromo surgiu nos anos 60. Era então uma vila de pescadores que se instalou à beira da Lagoa de Jacarepaguá, no local onde, anos mais tarde, foi construído o Autódromo Internacional Nelson Piquet. Nos anos 90, quando subprefeito da Barra, Eduardo Paes tentou removê-la, sob o argumento de que era área de proteção ambiental, mas a resistência foi tão forte e os conflitos com os moradores, tão violentos que a prefeitura desistiu. Desde que se decidiu construir o Parque Olímpico exatamente ali, era óbvio que haveria novo confronto. Desta vez, a prefeitura venceu.
Já saíram da área 461 famílias, que ou receberam indenizações ou trocaram suas casas por apartamentos do Minha Casa Minha Vida. Algumas moravam dentro do perímetro do Parque Olímpico. Outras, do lado externo. Restam agora cerca de trinta famílias em meio aos escombros das demolições frequentes. O prefeito diz que elas não precisam sair, já que as obras estão quase concluídas. Mas as demolições continuam e os protestos também, chamando a atenção da imprensa internacional.
Num levantamento sobre o assunto publicado no ano passado, o arquiteto e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro Lucas Faulhaber e a jornalista Lena Azevedo afirmam que Eduardo Paes é o prefeito que mais removeu gente na história da cidade. Segundo Faulhaber e Azevedo, na gestão de Paes 67 mil pessoas foram retiradas de suas casas por razões diversas – de risco de soterramento a dano ambiental e realização de obras, incluindo as da Olimpíada.
No entorno da Vila Autódromo, a cada dia a paisagem amanhece um pouco diferente. De um lado, são as obras do Parque Olímpico, caminhando para a conclusão. De outro, a Transolímpica, via expressa de ônibus de alta capacidade que deve ser inaugurada em junho. Mais adiante, a Vila dos Atletas, um complexo de espigões que, depois da Olimpíada, se transformará num condomínio de apartamentos de alto padrão, o Ilha Pura. Do outro lado da Lagoa de Jacarepaguá, já quase na beira do mar, em uma área de proteção ambiental, fica o campo de golfe, onde também será construído um condomínio de luxo – parte do polêmico acerto entre a empreiteira responsável pelo campo e a prefeitura. A construção de tantas novas moradias e o investimento que está sendo feito na região suscitam críticas desde os primeiros movimentos do projeto olímpico em direção à Barra.
Um dos mais respeitados e provavelmente o mais enfático desses críticos é o urbanista Sérgio Magalhães, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-secretário de Habitação do Rio nos governos Cesar Maia e Luiz Paulo Conde. Atual presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, o IAB, uma entidade sem fins lucrativos, Magalhães é gaúcho de nascimento e de sotaque, mas carioca por adoção. Mudou-se para a cidade nos anos 60, época em que os planos urbanísticos encomendados por Carlos Lacerda recomendavam a expansão da malha urbana para a Barra, uma região até então pouco habitada, repleta de sítios, lagoas e praias praticamente virgens, o que resultou na expansão da cidade por uma área totalmente nova e de tamanho equivalente à já ocupada até então.
Era um tempo de grande entusiasmo com a ideia de cidade espalhada, com nichos dedicados a funções específicas – um local para morar, outro para trabalhar, a área de lazer, e assim por diante. Lucio Costa, o urbanista de Brasília, desenhou para a Barra um projeto que previa a implantação de dezenas de minicentros, e vaticinou que, um dia, o bairro não só se tornaria uma cidade à parte, como a capital do estado da Guanabara. Para integrar a cidade dispersa, previu-se a construção de 400 quilômetros de vias expressas, distribuídos em linhas batizadas por cor: Vermelha, Amarela, Azul, Verde, Marrom e Lilás. Ao longo das décadas seguintes, só as linhas Vermelha e Amarela foram de fato construídas. Em sua gestão, Eduardo Paes construiu, no mesmo trajeto onde antes era prevista a linha Azul, a Transcarioca – uma das quatro vias expressas de BRT feitas pela prefeitura. Além dela, outras duas vias – a Transoeste e a Transolímpica – ligam o resto da cidade com a Barra.
Em seu escritório, anexo à casa onde mora, no bairro do Jardim Botânico, Sérgio Magalhães mantém mais de 2 mil livros sobre urbanismo e arquitetura, acomodados em estantes brancas que cobrem paredes inteiras. O lugar de honra, porém, está reservado a um enorme mapa do Rio de Janeiro, para onde ele aponta enquanto explica por que considera nefasta a tendência de expansão da cidade para a Zona Oeste. “Se a Barra continuar nesse protagonismo, não há futuro para o Rio. Não há cidade grande que não tenha se revitalizado sem revitalizar seu centro.” Enquanto procurava um livro, Magalhães desenvolveu o raciocínio. “A população da metrópole parou de crescer, mas isso não quer dizer que os incorporadores vão parar de construir, porque os núcleos familiares estão cada vez menores. Se essas novas moradias foram erguidas em áreas hoje inabitadas, vai ficar inviável fornecer saneamento, infraestrutura e serviços”, disse.
Perguntei a Magalhães se a revitalização do Centro do Rio, na zona portuária, não é justamente o que ele reivindica. A prefeitura não cansa de propagandear que o Porto Maravilha é a maior Parceria Público-Privada do Brasil, com previsão de investimentos de 7,6 bilhões de reais na construção de túneis, novas ruas, praças e duas linhas de VLT, o Veículo Leve sobre Trilhos, que irão modificar totalmente o desenho da região – uma área de 5 milhões de metros quadrados, mais do que o dobro de Puerto Madero, o badalado bairro portuário que ganhou nova vida em Buenos Aires na década de 90. É ali que estão o Museu do Amanhã, o Museu de Arte do Rio e a Cidade do Samba.
Magalhães reconheceu que a revitalização, buscada desde os anos 80 pelos sucessivos prefeitos, empresários e urbanistas, é um avanço. Mas fez a ressalva: “Tenho uma frustração quanto a esse projeto, que está longe de ser o sucesso que tinha de ser. Por erro, por megalomania. Previram fazer várias torres de cinquenta andares, quando não há nenhuma torre assim no Brasil – nem em São Paulo. E o único projeto residencial que havia, o de erguer alojamentos para os jornalistas na Olimpíada, para depois convertê-los em apartamentos, empacou.” Magalhães lamentava enquanto buscava em seu laptop gráficos e dados para reforçar o que dizia. “Fiz estudos que mostram que só na região do Porto seria possível abrigar três Olimpíadas – e sobraria espaço”, falou, abrindo os braços, como se quisesse mostrar o tamanho da área. E concluiu: “O Eduardo assumiu num momento em que se oferecia uma chance de grandes investimentos com a Olimpíada, e ele, com a capacidade de trabalho que tem, a destreza e a juventude, não se preocupou em patrocinar um novo planejamento para a cidade. Preferiu tocar planos feitos lá atrás, com esse conceito ultrapassado.”
Quando almoçamos no Palácio da Cidade, no final de janeiro, Paes logo detectou a origem das minhas perguntas sobre a expansão do Rio para os lados da Barra. “Você falou com o Sérgio Magalhães”, comentou, esperando minha confirmação enquanto mastigava uma porção de arroz com moqueca de camarão. “Olha, o Sérgio é um cara que eu adoro. Mas ele tem uma visão de cidade ‘anos 50’. O planejamento na cabeça desse pessoal é aquela coisa rígida, e a cidade é dinâmica. Os teóricos ficam fazendo teoria. Levei o Sérgio outro dia para visitar o Parque Madureira, ele não fazia ideia do que era. Então assim, de Ipanema, é fácil falar, entendeu?” O prefeito deu outra garfada antes de prosseguir no contraponto entre o teórico e o prático: “Vamos lá. Eu tenho uma cacetada de ideia conceitual. Quero construir um mundo ideal. Mas nem sempre é possível. O meu governo está fazendo coisas que se falou a vida inteira, adaptando a uma visão menos anos 50 e 60.”
Paes se irrita diante da insinuação de que sua gestão tenha privilegiado a expansão para a Barra da Tijuca. “É muito doido. O desconhecimento da geografia carioca é assustador. Apesar de o deslocamento da Transcarioca se dar em direção à Barra, quem se beneficia é o pessoal do subúrbio. E a Transbrasil, outra via de BRT que estamos construindo, é totalmente fora da Barra.” Dias depois dessa conversa, a assessoria de imprensa da prefeitura enviou à piauí alguns números para ilustrar o argumento do prefeito. Segundo a prefeitura, três de cada quatro passageiros que embarcam no início da noite no Terminal Alvorada, o maior da Barra, pegam linhas que vão em direção aos bairros pobres da Zona Oeste e Zona Norte.
Por que, então, instalar os principais equipamentos olímpicos na Barra da Tijuca, onde terão lugar as competições de quinze dos 23 esportes que fazem parte da Olimpíada? “Não fui eu quem concebeu as áreas, foi o Cesar [Maia]. Mas defendo, porque sempre que se tentou colocar o Parque Olímpico em outros lugares, a proposta não foi adiante. A gente não ia trazer os jogos se não fosse dessa forma. Hoje, não tem Olimpíada mais espalhada que a nossa. Vai haver competições em outros bairros da Zona Oeste, na Zona Sul e no Maracanã”, disse.
Paes considera que seu maior legado não é nenhuma instalação olímpica, mas sim a transformação no Centro. “Pela primeira vez na história da expansão urbana do Rio, você tem um prefeito que volta às origens. Não tem nada mais simbólico do que o Porto Maravilha. O Rio está ocupando de novo seu Centro”, falou.
Para quem circula por lá, em meio a inúmeras ruas fechadas e num trânsito que dá nó na cabeça dos motoristas, é perceptível que as obras na região portuária prosseguem em ritmo acelerado. O transtorno provocado pelas interdições costuma aparecer nas pesquisas da prefeitura como uma importante fonte de insatisfação da população. No entourage de Paes, no entanto, aposta-se que o tormento está perto do final, uma vez que até junho as obras devem estar concluídas. No trecho antes ocupado pelo antigo elevado da avenida Perimetral (uma espécie de Minhocão carioca), passará a existir, já no final de março, um bulevar de 3,5 quilômetros às margens da orla. Embaixo, um túnel e uma via expressa farão a ligação entre o Aeroporto Santos Dumont e a ponte Rio–Niterói. Uma linha do VLT ligará o aeroporto à rodoviária, transportando até 300 mil pessoas diariamente.
Bancada com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a obra está a cargo de um consórcio formado por OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia – que, pelo contrato com a prefeitura, vai administrar a região e se encarregar da limpeza, iluminação e manutenção do bairro pelos próximos quinze anos. A PPP do Porto entrou na mira da Operação Lava Jato depois que um dos empreiteiros contou, em delação premiada, ter pago 52 milhões de reais em propina para que o deputado Eduardo Cunha ajudasse a liberar recursos do fundo de garantia para obras. Tanto Paes como a Caixa Econômica Federal afirmam que, se houve propina, ela não teve relação com o Porto Maravilha.
Essa polêmica, porém, não deve afetar o cotidiano da região. O que mais preocupa os urbanistas é a ausência de habitações, que pode transformar a área revitalizada em bairro fantasma à noite. Dos catorze edifícios já aprovados, apenas seis começaram a sair do chão – e nenhum é residencial. A prefeitura já ofereceu alguns incentivos para esse tipo de construção, por enquanto em vão.
Ainda antes de nos acomodarmos em sua sala no Centro de Operações da Prefeitura do Rio, no final de fevereiro, Eduardo Paes quis saber que dados eram aqueles que eu estava pedindo a um de seus assessores. Expliquei que estava atrás dos resultados das pesquisas de popularidade feitas por seus marqueteiros. O prefeito parou, pensou por um átimo e perguntou: “Mas você quer os números de antes ou depois de Fiona e Shrek?” A referência jocosa a Dilma Rousseff e Luiz Fernando Pezão mostra que ele reconhece o potencial impacto negativo do apoio aos dois aliados sobre sua imagem.
Paes saiu em defesa de Dilma quando Michel Temer rompeu com a presidente, e fez tudo o que estava ao seu alcance para que Leonardo Picciani, deputado federal alinhado ao governo, fosse eleito líder do PMDB na Câmara. Com a crise financeira no estado, assumiu a gestão de dois hospitais estaduais na Zona Oeste da cidade, onde fica o grosso do seu eleitorado, além de custos extras de mais de 500 milhões de reais por ano. Paes diz que não se arrepende desses movimentos.
A cobrança, porém, já começou. Num jantar recente em Ipanema com membros de ONGs, professores universitários e empresários, perguntaram ao prefeito se ele não se sentia incomodado por continuar apoiando Dilma. “Pelo Rio faço qualquer coisa. Abraço quem tiver que abraçar”, respondeu. “Chama a presidente de presidenta?”, quis saber um dos comensais. “De presidenta e até de fofa”, disse.
Para Fernando Gabeira, ex-adversário de Paes em 2008, a tendência é que o prefeito vá se descolando progressivamente e sem alarde de Dilma e de Pezão, assim como fez com Sérgio Cabral em 2013. Encontrei-me com Gabeira em um café no final de janeiro. Estava descontraído, de calça jeans, camiseta e sandálias Birkenstock. Depois de frisar que não pretende mais disputar cargos executivos, discorreu sobre os cenários possíveis para o prefeito. “O apoio a Dilma e a Lula foi suficiente para levá-lo ao poder e mantê-lo no poder. Mas o preço a pagar pela carona é alto. Esse núcleo de que ele faz parte é uma ruína histórica. Eu não subestimaria o estigma que existe hoje sobre Lula, o PMDB e esse modo antigo de governar.” Veio então o arremate: “O Eduardo Paes é um deles, mas vai tentar fazer a mágica de mostrar que não é.”
De um desses antigos aliados, Paes já se descolou. Até 2014, o prefeito contava com o apoio entusiasmado de Eduardo Cunha, que o ajudava nas liberações de verbas e na aprovação de medidas no Congresso. Uma delas, que deu isenção tributária a empreiteiras envolvidas em obras olímpicas, está no foco da Lava Jato, por causa das mensagens entre Eduardo Cunha e Léo Pinheiro, executivo da OAS. O Ministério Público afirma que, pela inclusão de emendas do interesse das empresas no texto das medidas, Cunha recebeu 2 milhões de reais.
Antes de o caso vir à tona, Paes passou o Réveillon de 2013 para 2014 na companhia de Cunha. Quando o presidente da Câmara foi acusado de receber 5 milhões de dólares em propina do ex-representante da Samsung no Brasil, Júlio Camargo, o prefeito estava entre os peemedebistas que enviaram mensagens de solidariedade, exibidas com orgulho por Cunha aos repórteres de Brasília: “Querido presidente, nessas horas de desafios a fofoca é a arma dos fracos. Não há por parte de seus companheiros aqui qualquer tipo de ação tolhedora de sua conduta na defesa de sua honra e dignidade. Grande abraço, Eduardo Paes. Em tempo: as notas plantadas também não me incluem.”
Quando perguntei ao prefeito sobre a mensagem, ele não se lembrou de imediato. Exibi uma reportagem e ele então se recordou. “Eduardo Cunha pediu para mim, o Pezão e sei lá mais quem para fazermos um gesto de solidariedade. Eu achei conveniente fazer. Quando você está na vida pública, você pode escolher ser estilingue ou estar em posição de poder, em que você tem que se relacionar com pessoas que não são iguais a você. Mas você tem um limite para dar a mão. Você vai até um certo ponto. Senão, depois, você para e fala: Olha, se explica aí, se me convencer eu volto a te dar a mão.”
Leia Mais